sábado, 27 de março de 2010

### 32 – Laisser faire, laisser passer – 11.

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A indústria cerâmica de Staffodshire foi objeto de três inquéritos parlamentares durante os últimos vinte e dois anos. Os resultados deles figuram nos seguintes relatórios: o de Scriven de 1841, dirigido aos “Children’s Employment Commissioners”, o do Dr.Greenhow de 1860, publicado por determinação do diretor médico do Conselho Privado (“Public Health, 3rd Report”, I, 102 a 113), e finalmente o de Longe de 1863. Para o nosso estudo, basta extrair alguns depoimentos de crianças exploradas, encontrados nos relatórios de 1860 a 1863. Pelo que ocorre com as crianças se pode deduzir o que se passa com os adultos, numa indústria ao lado da qual a fiação de algodão e outras atividades semelhantes pareciam agradáveis e sadias.

Wilhelm Wood, um garoto de 9 anos, “tinha 7 anos e 10 meses de idade quando começou a trabalhar”. Lidava com formas (levava a mercadoria modelada à câmara de secagem para apanhar, depois, as formas vazias) desde o início. Chega, todo dia da semana, no trabalho, às 6 horas da manhã e acaba sua jornada por volta de 9 horas da noite. “Trabalho até 9 horas da noite, todo dia da semana. Assim, por exemplo, durante as últimas 7 a 8 semanas.” Quinze horas de trabalho por dia para um garoto de 9 anos! J. Murray, um menino de 12 anos, depõe:

“Lido com formas e faço girar a roda. Chego ao trabalho às 6 horas da manhã, às vezes às 4. Trabalhei toda a noite passada, indo até às 6 horas da manhã. Não durmo desde a noite passada. Havia 8 ou 9 garotos que trabalharam durante toda a noite passada. Todos menos um voltaram esta manhã. Recebo 3 xelins e 6 pence por semana. Nada recebo por trabalhar a mais a noite toda. Na semana passado trabalhei duas noites.”

(Karl Marx, O Capital, Livro I, capítulo 8.3.)





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Os agentes econômicos respondem a estímulos na sua ação racional (i.e., ação capaz de formular estratégias e que não erra sistematicamente) e voltada ao seu interesse próprio (i.e., que busca a maximização de sua satisfação por meio do atendimento ótimo das suas necessidades).

sexta-feira, 19 de março de 2010

XCIX - Acerca de esboços sobre as "ilusões" do eu, do ego e do indivíduo.

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§ 99








Esse é provavelmente um dos capítulos mais “amadores” e confusos desse blog, pois o tema que eu vou tratar aqui eu não entendo o suficiente para escrever um texto mais adequado, mais responsável intelectualmente. Por isso, caso algum leitor (especialmente o Silas... :P) se ofenda com a minha ignorância sobre o assunto, eu peço-lhe paciência. Mais do que qualquer outro capítulo, esse aqui levanta mais perguntas do que respostas.


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Aqui, novamente, o filme não vai muito longe. Na memorável cena na sala de espera do Oráculo, que decidirá se Neo é o "Escolhido", uma criança que é vista dobrando uma colher com a mera força do pensamento diz a Neo (surpreso) que o jeito de fazer aquilo não é convencendo a si mesmo de que é capaz, mas sim convencendo-se de que não existe colher...Porém, e quanto ao eu mesmo? O filme não deveria ter dado um passo além, aceitando a proposição de que o eu, o eu mesmo, o sujeito, não existe? (Slavoj Zizek no ensaio Matrix: ou os dois lados da perversão, escrito para o simpósio internacional Inside The Matrix, e publicado no livro Matrix - Bem-vindo ao deserto do real, livro disponível em: http://www.scribd.com/doc/6623870/Matrix-Bem-Vindo-Ao-Deserto-Do-Real97)

(Eu ainda vou escrever um capítulo em que falarei do papel da cultura de massas em geral, e da triologia Matrix em particular, de promoção da catarse mediante a sublimação da pulsão de morte associada à estetização. Provavelmente será o capítulo CIII.)





Já cansei de ouvir frases do tipo “se eu tivesse nascido na Idade Média”, “se eu tivesse nascido mulher/homem”, “se eu tivesse nascido pobre/rico”, “se eu tivesse na Noruega [ou qualquer outro país]”, etc. O que me causa espanto ao ouvir isso é como as pessoas em geral não questionam a própria identidade: elas consideram que esse “eu” é uma coisa em si mesma, que não mudaria caso tivesse nascido em outras condições (ou seja, que é independente do espaço, do tempo e da causalidade). Creio que esse pensamento é típico de quem acredita em uma alma, nem que implicitamente. Isso quer dizer que mesmo agnósticos e ateus acabam usando esse tipo de raciocínio falho, sem perceber o conteúdo religioso que ele pressupõe, por ele já estar imiscuído há muito tempo na nossa cultura.



Eu fiz uma experiência imaginária. Imaginei como eu seria se tivesse nascido mulher na Idade Média, depois me imaginei nascendo um beta I na Noruega em 1990. E sabe o que eu descobri? Que, fazendo-se a abstração de toda minha história de vida e criando outra, obviamente esse “eu” seria totalmente outro, ou seja, esse “eu” que parece uma coisa em si mesma é totalmente dependente do espaço do tempo e da causalidade (da “representação”, para usar uma linguagem schopenhauriana) . Fazendo-se a abstração da representação, a única coisa que sobra é um instinto de vida (a vontade schopenhauriana), ou, de um ponto de vista científico, sobra a carga genética comum a toda a humanidade, ou mesmo, a característica comum a todas as formas de vida: o impulso de auto-replicação (ainda escreverei mais sobre esse impulso num outro capítulo desse blog).



Aquilo que nos faz diferente do outro são justamente essas contingências, dependentes da representação (ou, em outras palavras, da materialidade histórica - sim!, eu estou misturando Marx com Schopenhauer, e também dedicarei um futuro capítulo para comparar os pensamentos desses dois autores), e são essas contingências que nós consideramos como sendo o “eu”, o mesmo “eu” que consideramos sem maiores reflexões como sendo uma coisa em si. É nesse sentido que esse eu é ilusório, é uma ficção que fundamenta a fantasia necessária para que possamos ser um organismo vivo auto-consciente. No fundo, por de trás dessa máscara construída ao longo de anos (e, portanto, dependente da representação, da interação do organismo com o meio no qual está inserido) subjaz justamente essa herança comum de todos nós (seja a vontade schopenhauriana, seja o instinto de vida, seja nosso código genético comum, seja a auto-replicação), a qual seria nosso “eu verdadeiro” (ou “eu profundo”, “Evo”, “Aevum”), o qual por sua vez pode ser considerado como o mesmo em todos: temos aqui uma espécie de monismo. A "substância" desse eu profundo é justamente o que nos faz todos iguais, por isso esse eu - usado justamente para nos separar dos outros - seria ilusório.



Esse caráter ficcional do “eu” levanta sérios questionamentos sobre a vacuidade do temor da morte, pois esse eu que supostamente morre a rigor não existe como uma unidade, como uma coisa em si, tal como ele imagina existir. E, seja como for, essa característica comum a todos certamente sobrevive à morte de um indivíduo particular. Raciocínio análogo a esse Schopenhauer desenvolve no capítulo XLI do tomo I d’ O mundo..., capítulo intitulado Da morte e sua relação com a indestrutibilidade do nosso ser-em-si.



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A afirmação de que o eu não existe não é nova. O livro A doutrina de Buda anuncia, por exemplo, três princípios búdicos: Anicca (tudo muda), Anatman (Não existe o “eu”), e Dukkha (o sofrimento é universal). E Georges Canguilhem, por exemplo, atacou a psicologia justamente onde ela acreditava residir a sua força: o conhecimento do eu.



A idéia de que de que o eu existe como coisa em si parece estar bastante ligada à idéia de liberdade. Fica difícil conceber que somos livres se admitimos que nossa identidade é uma construção histórica, e não algo em si mesmo (embora eu não duvide que seja possível articular uma argumentação nesse sentido; aliás, qualquer argumentação é possível de ser articulada, desde que se tenha a inteligência e a imaginação necessárias para elaborar os sofismas que a sustentam). Schopenhauer visa conciliar essa contradição por meio da dicotomia entre fenômeno e coisa em si, entre representação e vontade: o primeiro é o reino da necessidade, o segundo é o da liberdade; sentimos que somos livres porque todos somos essa mesma coisa metafísica que é em si pura liberdade, visto que está fora da representação - esse é nosso caráter inteligível; porém, enquanto representação (e isso inclui nossa identidade construída no espaço, no tempo e na causalidade - nosso caráter empírico), somos totalmente determinados, e portanto não livres, nossa arbítrio é um servo-arbítrio, não um livre-arbítrio Sobre isso, indico como leitura a dissertação de mestrado de Fábio Libório Rocha: O conceito de servo-arbítrio em Schopenhauer, a qual pode ser encontrada aqui. Com relação à obra do próprio Schopenhauer, remeto ao § 55 do tomo I d' O mundo como vontade e como representação, e ao ensaio Sobre o livre-arbítrio.



Ao que tudo indica, a visão freudiana também concebe o eu como tendo um forte caráter ilusório, e como dependente de outros. Ainda no que diz respeito a Schopenahuer, Pierre Raikovic, no seu livro O sono dogmático de Freud, nos lembra, no capítulo II, que “o autor de O mundo como vontade e como representação via o indivíduo prisioneiro de um remanejamento interior necessário a sua sobrevivência como indivíduo. E a finalidade que dava a essa estratégia era a de tornar mais suportáveis as representações que, se fossem livres para aceder, tais como são, à consciência, teriam constituído um perigo para a manutenção de uma individualidade que exige um mínimo de coesão interna, ainda que a custa de desconhecimento.”[A questão do desconhecimento remete ao conflito profundo que parece existir entre verdade e vida (há verdades cuja obscenidade é insuportável), e nos faz questionar até onde a busca pela verdade não é uma busca pela morte.]



Isso nos leva a questionar o conceito de “indivíduo” de forma análoga ao de “eu”: essa suposta individuação seria na verdade uma máscara que esconde um complexo sistema causal construído historicamente sobre uma herança biológica comum. O indivíduo, assim como o eu, seriam ambas ilusões fetichistas que querem transformar um devir num ser, algo contingente em algo necessário, um fenômeno numa coisa em si, algo determinado historicamente em uma coisa. Repetindo, essas ilusões serviriam como fundamento do nosso processo psíquico, e, portanto, seriam necessárias para a vida do organismo, principalmente para a vida no cotidiano medíocre duma "pessoa comum" (refiro-me à rotina circular família-trabalho-indústria cultural-religião, em torno da qual circula - tal hamster na roda - a "massa ignara" e sobre a qual também falarei melhor num próximo capítulo). Tal qual os escravos da Matrix (ou os prisioneiros da caverna de Platão), as pessoas nascem, crescem, se reproduzem e morrem dentro de um mundo que elas não conhecem mas supõem conhecer; noutras palavras: elas tomam suas decisões de vida com base em referenciais falsos, fictícios, ficcionais, mistificados. Isso é trágico. Não por acaso um sentimento de desencanto e desalento acompanha a vida das poucas pessoas que realmente conseguem entender qual é a condição humana, por mais que elas tenham fé numa possibilidade de emancipação e de superação dessa realidade miserável.



Esse “eu” seria uma máscara, uma superfície de contato de dois mundos determinísticos: o interno (a vontade, o instinto, a herança genética, a auto-replicabilidade) e o externo (a sociedade, a representação, o espaço-tempo-causalidade). A seguir direi exatamente o mesmo conteúdo só que em linguagem freudiana: O ego é uma máscara (do id) que acredita ser alguma coisa a mais do que isso. O ego está esmagado entre dois "outros": um interno que tudo quer (o id) e um externo que quase tudo nega (o superego). O ego seria esse algo indefinido e, em última instância, ficcional que é construído pelos dois outros: a volição interna (o id psicanalítico, que é a vontade em Schopenahuer) e o superego, que representa a repressão do meio: temos o “eu” esmagado entre, respectivamente, os princípios de prazer e de realidade.



Para Schopenhauer o mundo é simultaneamente vontade (coisa em si) e representação (a qual por sua vez pressupõe simultaneamente sujeito e objeto). A separação discursiva (no pensamento, pela linguagem) dessa realidade em partes é artificial (é, aliás, um mero conhecimento abstrato, uma racionalização do conhecimento intuitivo com o intuito de fixá-lo e comunicá-lo). Feita essa "ressalva", temos que a vontade é algo equivalente ao id da psicanálise: ela é "um outro" que se impõe ao ego, o qual é apenas uma máscara desse outro, embora não saiba disso e "ache" que é algo mais. O ego não é senhor de si e, em última instância, é mera "ferramenta" desse outro. Esse outro é "algo" que podemos conhecer parcialmente (na medida em que se revela em nós) e racionalizar (denominar) como sendo o corpo, o inconsciente, o instinto, o querer-viver. "Ora, o corpo, é a primeira manifestação da vontade, sob as condições determinadas pelo grau e o indivíduo de que se trata; e a vontade desenvolvida no tempo [o querer e seus atos] é, por seu lado, apenas a paráfrase do corpo, uma explicação do que ele significa, tanto no seu conjunto quanto nas suas partes; essa vontade é, portanto, apenas uma revelação da mesma coisa em si da qual o corpo é uma primeira forma visível." (O mundo como vontade e como representação, tomo I, §60)



Em Schopenhauer o sujeito dos atos é o "sujeito da vontade" (esse "outro", "algo", "id"), que é apriorístico (assim como na metapsicologia o id é atemporal) e constitui o "caráter inteligível"; o "caráter empírico" são os atos desse sujeito, pelos quais ele se desenvolve na representação (sujeito+objeto+espaço+tempo+causalidade) e se torna cognoscível (ou seja, se torna objeto para um sujeito, se torna representação); o "caráter adquirido" é o aprendizado que esse sujeito introjeta acerca de si mesmo: se ele sabe quem é, do que é capaz e o que quer e se ele passa a agir em conformidade a esse conhecimento, então ele terá "conhecido a si mesmo" e agirá "como se" tivesse mudado, como se o caráter inteligível tivesse mudado: diz-se que ele "adquiriu caráter", tornou-se "maduro". Mas o caráter inteligível, como coisa em si, não pode mudar, o que muda é a sua manifestação fenomênica, agora iluminada pelo conhecimento de si. Como coisa em si, o caráter inteligível é livre; como fenômeno, o caráter empírico (os atos do caráter inteligível) não é livre, é um "servo-arbítrio", pois, além de estar subsumido inexoravelmente na corrente causal e no espaço-tempo, ainda é mero reflexo de "um outro" atemporal e imutável, o qual, ainda por cima, lhe é em geral desconhecido, ou, quando muito, conhecido parcialmente.



Do ponto de vista schopenhauriano (assimilação por dominação), a afirmação freudiana de que o indivíduo possui um "instinto de morte" (thanatos) (e vale lembrar que Freud negou que o animal social tenha de fato um "instinto de sociabilidade") parece sugerir que as idéias (schopenhaurianas) absorvidas pela idéia dominante (da qual o indivíduo é a expressão) (idéias essas, vale lembrar, que se mantém num conflito permanente) são de alguma forma capazes de constituir uma parte daquilo que é entendido como sendo o "eu". Uma interpretação como essa permite a concepção de um "eu" clivado e auto-conflitivo: as idéias vencidas e absorvidas continuariam a operar para a derrota da idéia que as dominou mesmo depois de derrotas na objetivação de ser, e emergiriam à (in)consciência do mesmo como auto-discórdia, como auto-destruição.




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Talvez uma ótima forma de entender o caráter ficcional de nossa identidade seja estudar os casos de múltiplas personalidades. Admito que nunca estudei esse assunto (e tantos outros) com a profundidade que ele merece. O que mais surpreende nesses casos é que muitas vezes cada uma das personalidades tem toda uma história de vida, vive num mundo e se relaciona com pessoas que a identidade “verdadeira” não conhece (pois essas pessoas nem existem).






Recorrentemente, também percebo que a maioria das pessoas se concebe como "habitando" o seu corpo, o qual é entendido como uma "ferramenta". Esse tipo de concepção ignora a unidade entre corpo e mente e novamente concebe a personalidade como uma coisa em si mesma, independente do corpo, ou seja, das condições materiais. Repete-se, assim, a velha antítese entre corpo e alma, entre carne e espírito, antítese que, para mim - e para tantos outros, como Spinoza e Schopenhauer - é totalmente falsa e descabida de profundidade analítica.



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Cabe aqui também fazer uma observação sobre o efeito que a crença no princípio do terceiro excluído tem sobre a questão da identidade individual. Muitas pessoas ficam surpresas (inclusive depois de usarem alucinógenos) quando percebem a inconsistência da sua identidade, o caráter multifacetado e fragmentário de algo que supostamente é uma unidade (que supostamente é indivisível – um “indivíduo”). Ora, o “átomo” já foi dividido e o seu estudo nos revelou um mundo novo e, porque não dizer?, chocante para a nossa cotidianidade, pois esse mundo destrói todas as nossas certezas, todas as nossas convicções, tudo o que os nossos sentidos nos dizem ser verdade. De forma análoga, a destruição do “indivíduo”, do “eu”, tem efeitos dramáticos e, talvez, impossíveis de se conciliar com a própria manutenção da vida (não por acaso o budismo que nega o eu é o mesmo budismo que prega o ascetismo).



Mas, voltando ao princípio do terceiro excluído, essas pessoas ficam surpresas ao se verem não como um “eu”, mas como um múltiplo de “eus”. Ora, por que não dar um passo além e reconhecer que o suposto eu não existe, que é uma ficção? Por que não reconhecer que o suposto eu não é indivisível, não é uma unidade, mas sim é uma amontoado de causas e efeitos (a começar pelas condições fortuitas da relação sexual que implicou na concepção) que depende da memória, da imaginação e do reconhecimento do outro para conceber-se como uma unidade estável ao longo do tempo? A resposta a isso parece estar na crença no princípio do terceiro excluído: o eu não pode ser concebido como auto-discórdia, como algo que é e não é simultaneamente, e, por isso, ele é dividido em vários “eus”, a unidade é substituída pela pluralidade como forma de manter a crença numa identidade. Aí, entra, então, o chamado "princípio da impermanênia", o qual pode levar o incauto a, novamente, à suspeição de alguma coisa em si não monística, individuada apesar do espaço-tempo (como, por exemplo, as idéias shopenhaurianas).



Admitir que o eu é múltiplo, e não indivisível, é um primeiro passo na perplexidade de reconhecer o próprio eu – a própria idéia de identidade – como uma ficção.


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Frequentemente me pego perguntando a mim mesmo: "quem eu sou?". Depois penso que, antes, devo responder à pergunta: "eu existo?". Aí surge a dificuldade de definir "eu" e "existência". E, assim, me perco num jogo de definições de palavras. Às vezes, contudo, lembro-me que essa dúvida por mim lançada, com respeito à minha própria existência, trata-se de um caso típico de negação (ou mesmo de repressão): ponho em dúvida a minha existência como uma forma de fugir à verdade amarga de que eu existo, sim senhor. Com relação ao "quem sou eu?", acabo sempre perdido na insuficiência de significado dos substantivos e adjetivos que me estão disponíveis. "Duan Conrado Castro", "homem", "piá de prédio", "outsider", "viadinho", "bancário", "economista", "brasileiro", "schopenhauriano", "pessimista", "ateu" (1), "vegetariano", "gama II": nada disso é suficiente para formar uma identidade, para me dizer quem ou o que eu sou. E, na ausência duma identidade, minha relação com o tempo fica comprometida: não há uma identidade a ser recordada do passado ou projetada no futuro. Assim, esse "eu" que desconhece a si mesmo se encontra preso num eterno vir-a-ser, num eterno e vazio presente; passado e futuro não fazem muito sentido: mais uma vez o fracasso em atribuir significado aos significantes dados. Os anos de 2037 e de 1999 são tão próximos e semelhantes quanto "ontem" e "hoje". Aliás, não há nenhum significado que consiga ser atribuido a fim de me fazer entender que "2037" vem "depois" de "1999" (ou que 2+2 não possa ser 5): tá legal, de um ponto puramente racional e matemático é fácil concordar que um vem depois do outro (porque eu fui ensinado a acreditar nisso); porém, no "mundo real" (seja lá o que isso for), a razão encontra-se obnubilada pela perplexidade causada pelo existir (o que nos faz pensar sobre a atemporalidade do inconsciente). Eu não vivo numa reta de números reais, mais sim num plano de números complexos. A ignorância é angustiante: é desesperante não se saber quem se é, nem porque as coisas são assim. São muitas respostas disponíveis, mas todas são insuficientes e irreconciliáveis entre si. Estou perdido por que não quero me encontrar? Tento viver num mundo surreal por que não quero admitir a realidade da minha própria impotência e mediocridade? É, eu sei.



(1) Eu sou ateu ou agnóstico? Com o tempo eu percebi que a palavra "agnóstico" se tornou um eufemismo para aqueles que não têm coragem de se opor explicitamente à religião e preferem adotar um comportamento mais politicamente correto (mas esse não é meu caso). Eu achava que para ser ateu era necessário ter fé na não existência de deus (em outras palavras: ter certeza que deus não existe) - e esse também não é o meu caso: eu não sei se deus existe ou não, porém desconfio fortemente que não, e vivo de acordo com essa desconfiança. Todavia, quando eu li no Dicionário Aurélio que "ateu" é aquele que "vive sem Deus" eu me senti confiante para me classificar por essa categoria. Segundo Engels, na introdução de Do socialismo utópico ao socialismo científico, o agnosticismo não passaria de um materialismo (e, portanto, de um ateísmo - de acordo especificamente com a visão marxista do que é "materialismo") envergonhado. Se o agnosticismo pode ser usado para justificar um ateísmo envergonhado e politicamente correto, ele pode, também, se constituir numa doutrina radical, niilista, irracionalista e iconoclásta que nega a toda forma de conhecimento e a toda sistematização do pensamento humano (inclusive o marxismo e os argumentos ateístas) a validade da sua pretensão de se constituir numa descrição fiel do objeto estudado e, portanto, da realidade. É com essa forma de agnosticismo radical e destruidor que eu me identifico.



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Tudo isso me fez lembrar da esquizofrenia.


A esquizofrenia na pós-modernidade (por David Harvey no cap. 3 do livro A condição pós-moderna, livro que atualmente é a minha leitura de ônibus):



O relato do pós-modernismo que esbocei até agora parece depender, para ter validade, de um modo particular de experimentar, interpretar e ser no mundo – o que nos leva ao que é, talvez, a mais problemática faceta do pós-modernismo: seus pressupostos psicológicos quanto à personalidade, à motivação e ao comportamento. A preocupação com a fragmentação e a instabilidade da linguagem e dos discursos leva diretamente, por exemplo, a certa concepção da personalidade. Encapsulada, essa concepção se concentra na esquizofrenia (não, deve-se enfatizar, em seu sentido clínico estrito), em vez de na alienação e na paranóia (ver esquema de Hassan). Jameson (1984b) explora esse tema com um efeito bem revelador. Ele usa a descrição de Lacan da esquizofrenia como desordem lingüística, como uma ruptura na cadeia significativa de sentido que cria uma frase simples. Quando essa cadeia se rompe, “temos esquizofrenia na forma de um agregado de significantes distintos e não relacionados entre si”. Se a identidade pessoal é forjada por meio de “certa unificação temporal do passado e do futuro com o presente que tenho diante de mim”, e se as frases seguem a mesma trajetória, a incapacidade de unificar o passado, o presente e o futuro na frase assinala uma incapacidade semelhante de “unificar o passado, o presente e o futuro da nossa própria experiência biográfica ou vida psíquica”. Isso de fato se enquadra na preocupação pós-moderna com o significante, e não com o significado, com a participação, a performance e o happening, em vez de com um objeto de arte acabado e autoritário, antes com aparências superficiais do que com raízes (mais uma vez, ver o esquema de Hassan). O efeito desse colapso da cadeia significativa é reduzir a experiência a “uma série de presentes puros e não relacionados no tempo”. Sem oferecer uma contrapartida, a concepção de linguagem de Derrida produz um efeito esquizofrênico, explicando assim, talvez, a caracterização que Eagleton e Hassan dão ao artefato pós-moderno típico, considerando-o esquizóide. Deleuze e Guattari (1984, 245), em sua exposição supostamente travessa, Anti-Édipo, apresentam a hipótese de um relacionamento entre esquizofrenia e capitalismo que prevalece “no nível mais profundo de uma mesma economia, de um mesmo processo de produção”, concluindo que “nossa sociedade produz esquizofrênicos da mesma maneira como produz xampu Prell ou os carros Ford, com a única diferença de que os esquizofrênicos não são vendáveis”.



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Por fim, ainda indico um texto, de orientação junguiana, escrito pelo amigo Silas Couto num dos seus blogs: "Individualidade, individuação, e as múltiplas personalidades". Depois da introdução, na qual Silas fica falando dele mesmo, o texto fica mais interessante (:P de novo). Ver também o meu comentário schopenhauriano ao texto dele.





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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

sábado, 13 de março de 2010

XCVIII - Acerca de um sonho edipiano – flashback # 11 – 31/08/2008.

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§ 98




Como eu disse no capítulo XCV, eu estou “enrolando” nesse blog (por "enrolação" eu quero dizer que esses capítulos de alguma forma fogem do conceito original do blog e que estão aqui para preencher um espaço de continuidade temporal enquanto eu não escrevo material que atenda à "linha editorial" do blog, e enquanto eu não escrevo a minha monografia de graduação, a qual eu estou procrastinando desde 2008 - e talvez esteja procrastinando justamente porque eu não sou mais a mesma pessoa que escreveu o projeto naquele ano). O capítulo ### 31 foi uma prova descarada disso, e novas provas virão. Pois bem, eu abri o arquivo no qual anoto o planejamento desse blog e consta lá que o capítulo 98 se chama “Acerca de um sonho edipiano”. Sim, eu vou aqui relatar um sonho que tive na madrugada de 31/08/2008 (é digno de nota que isso foi dias depois do meu aniversário e exatamente um ano depois de ter saído de uma breve estadia – de dois dias (não fiquei mais pois “sou muito ocupado e não tenho tempo para isso”) – num hospital psiquiátrico). Tive que ir procurar nos meus “diários” para encontrar o relato que transcrevo aqui agora.

Antes do relato, acho curioso que eu tenha tido um sonho edipiano bem na época em que estava sendo psicanalisado. Será que foi influência da psicanálise? Ou será que ela me permitiu lembrar do sonho? Durante anos eu não me lembrei de sonho algum (e isso obviamente tem uma significação psicológica, imagino), e até hoje me lembro de poucos, embora já lembre de alguns.

Conforme consta no meu diário eu tive o sonho no seguinte “contexto: dor de cabeça e desejo de morrer de câncer”. Bem, cabe salientar que eu quase nunca tenho dores de cabeça, tanto que faz anos que não tomo ácido acetilsalisílico. Desejo de morrer eu tenho de forma bem mais “leve” desde o começo de 2009 (aliás, quando eu “me dei alta” no psicanalista). Nessa época desse sonho eu estava bem mais depressivo e trágico do que estou atualmente, prova disso é o capítulo XXXI, no qual eu anotei os meus pensamentos depressivos na forma de versos (esse capítulo foi escrito ao longo de meses, antes e depois de ser postado; a postagem inicial tinha cerca de 100 versos, agora ele está com cerca de 300; faz muito tempo - uns 8 meses - que eu não penso em nada novo para colocar nele).

Segue a descrição do sonho.

“Está de dia. Na esquina oposta da quadra onde eu moro havia uma cela de cadeia no formato de ‘banheiro químico’ [como aquelas celas que aparecem em desenhos animados]. Embora ninguém tenha me dito, eu sabia que preso nela estava o meu “pai verdadeiro” [o meu pai e minha mãe no mundo real aparecem como figurantes no sonho, assim como o meu irmão], o qual não aparece no sonho noutra imagem que não nessa. Ele não aparece personificado, mas sim como uma escuridão dentro da cela, a sua presença é sentida como uma força obscura, como um “poder insidioso”. Sem que ninguém me informe, eu sei que o meu “pai verdadeiro” está preso ali por pedofilia; sei também que a menina com quem ele “pedofilou” engravidou e que eu fui o resultado dessa transa; por fim, eu também sei que eu fui o responsável pela prisão dele ali. Diante da cela eu vejo a minha “mãe verdadeira”; ela ainda se apresenta como uma criança, talvez tenha uns 13 anos (enquanto eu me apresento com os meus 22), ela está usando um vestido de verão florido e esvoaçante. Vejo a minha “mãe verdadeira” conversar com o meu “pai verdadeiro” e então se virar em direção à minha casa (que por sua vez é realmente a casa onde eu moro atualmente – digo isso porque quase todos os poucos sonhos que tenho se passam na casa onde eu vivi até os 11 anos, mesmo que nele apareçam pessoas que conheci recentemente). Ela não me viu vendo essa cena. Eu pressinto que ela quer se vingar por eu ter “feito justiça” e ter colocado o meu “pai verdadeiro” na cadeia; eu pressinto que ela ainda o ama e quer se vingar de mim. Por isso eu corro para me esconder, e, novamente, sei que ela não me vê fazendo isso, assim como não me vira vendo a conversa de ambos. A cena é cortada e eu estou trancado no meu quarto escuro. Aliás, desmentido o que eu disse há pouco, esse quarto é – tanto por dentro como por fora – uma mistura bizarra do meu quarto antigo e do meu quarto atual. De dentro do meu quarto eu escuto ela dialogar com o meu irmão, o meu pai e minha mãe. Ela está a minha procura, e eles inocentemente deixaram ela entrar portão adentro e, agora, o meu irmão diz para ela algo mais ou menos assim: “continue procurando”. Eles acreditam inocentemente que ela quer se desculpar comigo (pelo que eu não sei). Eu fico na dúvida, e meu medo diminui. Eu saio do esconderijo e me mostro para eles na janela do meu “quarto híbrido”. Eu digo para a garota que não quero que ela me beije (como ato de perdão? ou de amor/eros?), não quero que ela me toque (ou seja, não quero perdoá-la). Ela então se vira como se fosse ir embora, mas então eu mudo de idéia e digo para ela esperar. Eu pego na mão dela e digo que a perdôo [eu perdoar alguém, essa talvez seja a parte mais inesperada do sonho...]. Ela sorri e (na presença das três testemunhas) tira não sei de onde uma faca e me mata ali na janela. Antes de eu morrer eu digo “obrigado” e percebo que o sorriso que ela mantinha ao me matar desaparece quando ela entende que eu queria morrer, e que, portanto, esse não seria um “castigo adequado”. Talvez o castigo adequado seja mesmo me manter vivo. Acordo como num pesadelo (o que, aliás, é até divertido).”

Segundo consta na página seguinte do “diário” eu relatei o sonho para o meu psicanalista e “para ele, diferentemente do que para mim, o meu assassinato não teria ocorrido porque eu deseje morrer, mas sim porque eu quero ser castigado por ter desejado a minha mãe apenas para mim; a morte é preferível ao toque materno.”






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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

sábado, 6 de março de 2010

XCVII - Acerca do suicídio na obra de Schopenhauer.

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§ 97






O entendimento correto da questão do suicídio na obra schopenhauriana envolve a compreensão de algumas sutilezas do pensamento schopenhauriano. Não surpreende que Will Durant, em sua História da Filosofia, afirme o seguinte absurdo (que lhe confere um atestado de ignorância em Schopenhauer): "Existem outras dificuldades mais técnicas e menos vitais [sic] nesta notável e estimulante filosofia. Como pode o suicídio ocorrer num mundo onde a única força real é a da vontade de viver?" (Will Durant, História da Filosofia, capítulo VII.VIII, página 321, Companhia Editora Nacional, 1951). Lendo o capítulo VII desse livro, capítulo dedicado a Schopenhauer, encontrei muitos erros, e provavelmente encontrá-los-ia nos outros capítulos, dedicados a outros filósofos, se entendesse deles tão bem quanto entendo de Schopenhauer (mas não é esse o caso). (Uma coisa que gosto nesse livro, como fã de Schopenhauer que sou, é que ele não possui um capítulo dedicado a Hegel, que é tratado apenas em sete páginas dentro do capítulo sobre Kant).

Pois bem, no que concerne ao suicídio na obra de Schopenhauer, a coisa é mais ou menos a seguinte. (O que digo aqui está baseado nos seguintes textos de Schopenhauer: § 69 e § 71 do Tomo I de O Mundo como Vontade e Como Representação, § 41 do tomo II do mesmo livro, § 161 de Parerga e Paralipomena, especificamente no capítulo XIV - Contribuições à Doutrina da Afirmação e da Negação do Querer-Viver - esse capítulo foi publicado no volume Schopenhauer da coleção Os Pensadores da Editora Nova Cultural, em 2005)

O suicida quer viver, continua querendo desesperadamente a vida, mas não aceita as condições desfavoráveis nas quais é obrigado a viver (1). Por meio do suicídio destrói-se o indivíduo, o fenômeno, mas não a coisa em si. Porém é justamente o sofrimento, do qual o indivíduo busca escapar por meio do suicídio, que constitui um dos dois únicos caminhos que conduzem à negação do querer-viver, e portanto à libertação (o outro caminho é a faculdade de conhecimento que ultrapassa o princípio de individuação e apreende intuitivamente o monismo do universo). Nesse sentido, o suicida, nas palavras do filósofo alemão (cap. 69 do tomo I do MCR), assemelha-se a um doente que se recusa a realizar uma dolorosa operação que, uma vez concluída, iria curá-lo completamente.

A coisa em si, enquanto coisa metafísica que existe fora do princípio da razão suficiente (grosso modo: espaço, tempo e causalidade) não pode ser destruída por nenhum ato físico (aborto, assassinato, suicídio, etc.), mas apenas pode ser "destruída" pelo conhecimento. Essa "destruição" da coisa em si exige um esclarecimento adicional (e "técnico").

Como a coisa em si está fora da jurisdição do princípio da razão suficiente (o qual regula a representação, isto é, o mundo fenomenal), ela não pode conhecer mudança ou destruição, uma vez que essas pressupõem a atuação do tempo. O que ocorre é que a vontade, no fenômeno, uma vez iluminada pelo conhecimento (isto é, uma vez conhecendo a sua autodiscórdia essencial) renuncia, deixa de querer, à sua manifestação fenomênica. Como o mundo fenomenal, do qual fazemos parte, é a objetivação, regulada pelo princípio da razão suficiente, do ato de querer (afirmação do querer-viver), nos é apenas possível conhecer a coisa em si por esse ato de querer, motivo pelo qual não sabemos o que ela é quando se manifesta de forma diversa desta (e portanto não sabemos o que ela é e continuaria a ser, visto que ela não muda, quando simplesmente renunciasse ao ato de querer). Conhecemos a coisa em si pelo seu ato de querer, porém nada sabemos de positivo quanto ao ato de não querer (só sabemos o que ele não é, mas nada acerca do que ele é), e muito menos sabemos qualquer coisa acerca do sujeito que é capaz de decidir querer ou não querer. É nesse sentido que, no que concerne ao conhecimento da coisa em si, Schopenhauer se aproxima da agnosia kantiana: conhecemo-la apenas dentro desse perímetro restrito, e não completamente. A filosofia schopenhauriana está, portanto, longe de declarar um amplo e perfeito conhecimento da coisa em si: “Longe de nós, porém, o pensamento de afirmar um conhecimento absoluto e perfeito da coisa em si, mas antes reconhecemos bem que é impossível o conhecimento absoluto do que ela seja em si e para si mesma” (cap. 41 do tomo II do MVR).

P.S.: Muitas fotos de suicídios reais (e não a fotomontagem estetizada que usei para ilustrar esse capítulo) podem ser vistas no site http://www.assustador.com.br


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(1) Com isso parece concordar Émile Durkheim no se famoso estudo sobre o suicídio, quando diz o seguinte: "Disso resulta nos faltarem as razões para viver; porque a única vida a que nos poderíamos agarrar já não corresponde a nada de real, e a única que se fundamenta ainda no real já não corresponde às nossas necessidades" (O suicídio, capítulo III.VI). Recentemente eu soube que a sociologia atual praticamente descarta a concepção de Durkheim. Para a sociologia atual, segundo me disseram, o suicídio é compreendido como um ato final e trágico de recuperação da dignidade perdida e de rebelião contra essa perda.

Uma carta de mais uma suposta suicida (obtida numa fonte não muito confiável: uma comunidade no orkut, se não me engano foi numa comunidade chamada “Depressão, dor, ódio e suicídio”), que mostra como o suicida em geral acredita que de alguma forma vai continuar vivendo e influenciando o mundo dos vivos (uma vez eu li um livro sobre cartas suicidas e quase todas elas expressavam essa convicção de alguma forma de continuidade):

"Não chorem, não sofram, eu estou ABSOLUTAMENTE FELIZ! Era tudo o que eu queria: ter paz eterna com meu Deus e, se possível, com minha mãe. Eu não me suicidei, eu parti para junto de Deus. Fiquem cientes que não bebo e não uso drogas, eu decidi que já fiz tudo que podia fazer nessa vida. Tive uma vida linda, conheci o mundo, vivi em cidades maravilhosas, tive uma família digna e conceituada em Esteio, brilhei na minha carreira, ganhei muito dinheiro e ajudei muita gente com ele. Realmente não soube administrá-lo e fui ludibriada por pessoas de má fé várias vezes, mas sempre renasci como uma fênix que sou e sempre fiquei bem de novo. Aliás, eu nunca me importei com o ter. Bom, tem muito mais sobre a minha vida, isso é só para verem como não sou covarde não, fui uma guerreira, mas cansei. É preciso coragem para deixar esta vida [Concordo plenamente. Em vez de conceber o suicídio como um ato de covardia, eu o entendo como um ato de coragem.] Saibam todos que tiverem conhecimento desse documento que não estou desistindo da vida, estou em busca de Deus [Ou seja, ela acredita que existe uma vida além da morte e que, portanto, não morrerá com o suicídio]. Não é por falta de dinheiro, pois com o que tenho posso morar aqui, em Floripa ou no Sul. Mas acontece que eu não quero mais morar em lugar nenhum. Eu não quero envelhecer e sofrer. Eu vi minha mãe sofrer até a morte e não quero isso para mim. Eu quero paz! Estou cansada, cansada de cabeça! Não agüento mais pensar, pagar contas, resolver problemas... Vocês dirão: Todos vivem! Mas eu decidi que posso parar com isso, ser feliz, porque sei que Deus me perdoará e me aceitará como uma filha bondosa e generosa que sempre fui."

Outra suposta carta suicida obtida na mesma fonte da anterior, a qual também expressa uma convicção na continuidade da vida após o suicídio:

"Meu amor hoje estive no hospital e chorei de tristeza por não ter feito tudo q eu queria fazer por vc estou me sentindo fraco impotente covarde ignorante prepotente grosso to me sentindo o ultimo dos homens do mundo eu não sabia q te amava ao ponto de desejar estar morto.
quem le essa mensagem saiba q eu irei pro mesmo lugar onde a dora estara se acontecer algo com ela eu estarei do lado da minha amada pois nós somos eternos não quero mais viver se ela for embora
avisem a minha familia q eu não quero choro quero felicidade vou atras do meu amor eterno por favor orem por todos q precisem de deus no coração."

Um exemplo midiático dessa crença na continuidade da vida após o suicídio – e de que a vida após esse ato será melhor que a vida que o antecedeu – é dado pelo vídeo da música Pure Morning da banda Placebo. Esse vídeo também pode ser visto como uma simbolização da gratificação que o suicida experimenta ao antecipar imaginariamente o choque, a consternação, e, muitas vezes, o sentimento de culpa que essa ato causa nos outros.




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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.