sábado, 24 de abril de 2010

CII - Acerca da ideologia de legitimação do autoritarismo presente no subtexto do curta-metragem “Steamboat Willie” (Walt Disney, 1928)

.
.
.

§ 102





Dando continuidade à crítica às histórias infantis desenvolvida nas postagens anteriores, o presente capítulo é dedicado ao curta-metragem Steamboat Willie (Walt Disney, 1928), o qual é descrito pela Wiquipédia da seguinte maneira:

Steamboat Willie (Vapor Willie) é um curta-metragem da Walt Disney Studios de 1928 estrelado pó rMickey Mouse. É famoso por ser o primeiro desenho de animação com som da História. Conta a história de um ajudante do navio Steamboat Willie que quer tomar o lugar do comandante. Mas logo chega o comandante Bafo-de-onça e o tira do comando. Chegam ao porto e pegam uma vaca. Logo chega Minnie, mas o navio já partiu e, com o auxilio de um gancho, Mickey a puxa para o navio. Minnie deixa cair uns livros de música e a vaca os come. Logo a vaca começa a tocar música, enquanto Minnie roda a cauda dela. Mickey começa tocar os animais como instrumentos. Mas chega o comandante e coloca Mickey para cortar batatas e um periquito fica zombando dele.





Diferentemente do que ocorre n’ O pequeno príncipe (conforme visto no capítulo anterior), Disney não cai na ridícula pretensão de criticar o real e apresentar um ideal emancipador protagonizado pela “pureza infantil”. Ao contrário, o que ocorre nos produtos Disney é que o ideal é apresentado como real, e a catarse do espectador (e do produtor) é realizada simbolicamente pelo consumo do mundo ideal imaginado. Esse mundo ideal localiza-se, historicamente, em algum lugar no qual a realidade do espectador (e do produtor) já foi historicamente superada. Não há transformação social a fazer pelo simples fato de que já se atingiu, no mundo ideal de Disney, o fim da história (o qual, também, já foi ridiculamente anunciado, no mundo real, por Francis Fukuyama), a realização suprema e final da civilização.

Novamente (como já vimos n' O Pequeno príncipe e como ocorre na indústria cultural em geral, mas de forma mais explícita e gritante nos produtos voltados às crianças), vemos a reificação substituir a ordem causal da materialidade concreta (da realidade histórica, social, física, biológica, etc.) por uma ordem causal onírica, que passa por cima dos complexos processos causais da realidade e a reduzem a uma simplificação simbólica, animista e caricata, forjando assim um mundo no qual reina a “imaginação” e no qual o bem está condenado a vencer o mal (sendo ambos definidos de maneira maniqueísta e estereotipada). Disney não inventou a reificação, mas apenas reproduz a reificação secularmente presente na literatura infantil.

O aprofundamento da reificação presente na realidade cotidiana é visto como um caminho emancipador, quando, na verdade, esse aprofundamento só faz o indivíduo afundar ainda mais na prisão na qual ele revira-se frivolamente e da qual não consegue evadir-se, assim se constituindo, em última instância, num mero escapismo cuja função é reproduzir a realidade tal qual ela se encontra.

A utilização do corpo animal como instrumento musical, a redução do outro inferior à condição de coisa, de objeto, se repete insistentemente nesse curta-metragem dos primórdios da indústria da animação.

A forma sádica com que Mickey trata os outros animais (lembrando que ele também é um animal, mas como está antropomorfizado representa a figura humana) seria inaceitável para os padrões atuais do “politicamente correto”. Como podemos ver na fotomontagem que ilustra essa postagem, a mesma reificação se repete no longa-metragem A pequena sereia (1989), mas, nesse caso, num contexto mais “suave” no qual todos os animais se divertem e usufruem livremente, mas com um descontraído respeito, dos corpos alheios – o que, aliás, lembra uma orgia, como muito bem aproveitado pelo vídeo satírico Lugar de dar (que trabalha sobre um fragmento do longa-metragem original), disponível no YouTube.





O fato doa animais “inferiores” de Steamboat Willie não apenas não se rebelarem, mas, pelo contrário, ainda mostrarem satisfação na violação de seus corpos por Mickey - e, como nos lembra Foucault, o corpo é, em última instância, o locus do exercício do poder - e na sua redução à condição de coisas (instrumentos musicais) nos permite ver a reificação presente nesse curta-metragem (e em tantos outros produtos da indústria cultural, pois esse aqui é um mero exemplo qualquer) como uma simbolização de reprodução das ideologias de legitimação do autoritarismo e da exploração (e, portanto, de legitimação do establishment). Aqui cabe lembrar que a reificação não é apenas uma característica da relação de poder capitalista, mas sim de toda forma de poder. Assim, os animais-instrumentos do curta-metragem podem ser interpretados de diversas formas, de acordo com as relações de dominação presentes na sociedade real: podem ser os trabalhadores que, segundo a ideologia burguesa, se satisfazem em ser explorados no processo de produção de mais-valia; podem ser as mulheres que, segundo a ideologia machista, se satisfazem em ser reduzidas a objetos; podem ser, ainda, os animais que, segundo a ideologia pecuarista, se satisfazem em viver uma vida de reclusão e engorda forçada para, enfim, serem abatidos em honra ao apetite humano; etc.

O autoritarismo n’ A pequena sereia (no fragmento usado pelo vídeo satírico Lugar de dar) é suavizado pelo fato de que os “instrumentos musicais” (os animais reificados pertencentes à “sociedade submarina” ) interagirem entre si numa espécie de “orgia”, enquanto os animais de Steamboat Willie ficam na maior parte do tempo parados, à disposição de serem usados por Mickey. Todavia, o autoritarismo se faz novamente presente quando observamos que o personagem Sebastian (o siri) não participa da “orgia”, mas apenas é o seu regente, bem como quando percebemos que a função do espetáculo é servir de entretenimento para a desanimada Ariel (a protagonista), nota-se ainda que o personagem Linguado, amigo de Ariel e Sebastian, também não participa do espetáculo. Sem querer exagerar (e olha que eu não tenho o costume de exagerar...), podemos interpretar esse “espetáculo” como uma reificação do mundo do trabalho (que aqui se transforma numa festa), os “instrumentos musicais” como reificação dos trabalhadores (note-se que a fauna e flora marinha, reificada em instrumentos musicais, têm um papel subalterno na sociedade subaquática governada monarquicamente pelo pai de Ariel), os protagonistas como representantes da burguesia (do establishment político e econômico), e o “produto” (o espetáculo) como objeto de consumo conspícuo (capital simbólico) da classe dominante.

O ideal por meio do qual o consumidor (e o produtor) busca escapar à realidade revela-se, ao fim, uma simbolização que acaba recrudescendo as ideologias de legitimação e justificação justamente das relações autoritárias de dominação das quais o consumidor (e o produtor) tenta em vão evadir-se mediante um puro escapismo estúpido. Aqui cabe lembrar que a criança também está sujeita a relações autoritárias, de assimetria de poder, como aliás disseram os autores de Para ler o Pato Donald.

Por fim, a rebelião (algazarra) incitada por Mickey (que, apesar de antropomorfizado, é subalterno na estrutura hierárquica do navio – o que prenuncia uma luta de classes) é castigada pela autoridade estabelecida por meio do trabalho forçado, mas por um trabalho dessignificado. Como castigo, ele é colocado para descascar batatas. Mas para que as batatas são descascadas? Pois o navio parece não ter tripulação além de Mickey, Minnie (que, ao que tudo indica, embarcou de contrabando), o capitão, o papagaio e os animais de segunda classe (além do próprio navio e do gancho, ambos dotados de vida). O próprio ato de descascar as batatas aparece mais como uma destruição do que do que um descascar, o que reforça o seu o seu caráter inútil como componente de uma suposta divisão do trabalho (que, afinal, é inexistente porque redundante num mundo reificado e animista), reforçando assim a sua condição de mero castigo.

A palavra final é dada pelo capitão (a autoridade estabelecida, provavelmente o proprietário do navio), confirmando assim a onipotência e a legitimação do autoritarismo, contra o qual Mickey é impotente e ao qual ele, tal qual os animais-instrumentos, resigna-se e aceita como natural e historicamente inevitável.

Veremos, nos próximos três capítulos, novamente esse papel político conservador da indústria cultural.




***

Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

sábado, 17 de abril de 2010

CI - Acerca de esboços de uma metacrítica de orientação marxista ao livro “O pequeno príncipe”.

.
.
.


§ 101




Não gosto que leiam meu livro superficialmente. (O pequeno príncipe, capítulo IV)



Antes de ler este capítulo (o mais longo capítulo desse blog, talvez perdendo apenas para o capítulo LXXXIV, destinado à crítica da publicidade), sugiro a leitura do capítulo anterior (100), bem como do capítulo ### 33, os quais servem como um referencial teórico com o que é dito aqui. Recomendo também a leitura do capítulo XCVI, pois veremos aqui, na prática, como funciona a “teoria” do real e do ideal enquanto discursos.

Seria inviável escrever esta metacrítica de orientação marxista sem o conceito de reificação. Caso o leitor não o domine, eu sugiro ao menos a leitura do ### 5. Outros textos complementares: Fetichismo e semiformação numa época de reificação total e o seguinte artigo sobre o livro A sociedade do espetáculo, livro de Guy Debord. Infelizmente eu nunca me dei ao trabalho de expor didaticamente o conceito de reificação, tampouco achei algum dicionário eletrônico ou enciclopédia que fale algo decente (o artigo da Wikipédia está uma m..., por exemplo).



Chamo esse texto de "esboço" pois enquanto o escrevia percebi que, caso me dedicasse o suficiente, seria possível escrever um texto muito maior, mesmo um livro com centenas de páginas, utilizando-se, inclusive, de outras abordagens metacríticas além da marxista. Mas infelizmente eu nunca terei tempo livre o suficiente para me dedicar a um projeto desses que, todavia, eu reconheço ser totalmente exeqüível.

Por fim, antes vejamos o que a Wikipédia diz desse livro:

Le Petit Prince, conhecido como O Principezinho em Portugal e O Pequeno Príncipe no Brasil, é um romance de Antoine de Saint-Exupéry publicado em1943 nos Estados Unidos. A princípio, aparentando ser um livro para crianças, tem um grande teor poético e filosófico. É o livro francês mais vendido no mundo, cerca de 80 milhões de exemplares, e entre 400 a 500 edições. Também se trata da terceira obra literária (sendo a primeira a Bíblia e a segunda o livro o peregrino) mais traduzida no mundo, tendo sido publicado em 160 línguas ou dialetos uma das 11 línguas oficiais da África do Sul. Em Portugal, "O Principezinho" integra o conjunto de obras sugeridas para leitura integral, na disciplina de Língua Portuguesa, no 2º Ciclo do Ensino Básico.

***

Toda crítica pressupõe um discurso do real que é admitido como verdadeiro, pois a crítica nada mais é do que a demonstração da inadaptação do discurso criticado ao discurso que se admite como verdadeiro. Como indica o título desse capítulo, o discurso do real pressuposto aqui, nesse capítulo, como fiel descrição da realidade é o discurso marxista. Isso significa que a metacrítica aqui realizada tem por conteúdo comparar esses dois discursos críticos do real (cada qual, por sua vez, associado a um respectivo discurso do ideal) e demonstrar que o primeiro - O pequeno príncipe - não se adapta ao segundo - o(s) marxismo(s) -, que é admitido aqui como descrição "verdadeira" do real. Se é bem-sucedida a pretensão marxista de conhecer a realidade, essa é uma outra questão - certamente digna de consideração - que não é levada em conta no presente trabalho. Se você acha que é "covardia" opor Marx & cia ao pequeno (e ingênuo) príncipe, eu lhe pergunto o que é então um outsider empreender sozinho, no seu blog que ninguém lê, uma batalha contra um dos maiores best-sellers de todos os tempos.

Eu não me considero um marxista: eu sou um outsider, e, por isso, recuso-me a me encaixar em qualque "ismo", recuso-me a abraçar qualquer discurso do real como a verdade última, pronta e acabada. Mas, para todos os efeitos, eu tentei me comportar, nesse texto, "como se" fosse um marxista, assim como em outros textos desse blog eu me comportei "como se" fosse schopenhauriano, ou teórico da conspiração, ou militante das causas do ateísmo e do agnosticismo. Na "verdade" (seja lá o que for isso) eu sou todos esses "personagens" simultaneamente, ao mesmo tempo que não sou nenhum deles, por ser também outro que se sobrepõe a todos: um outsider (com relação ao que eu entendo por outsider, ver cap. CVII).

***

Ninguém pode pois escrever sem tomar apaixonadamente partido (qualquer que seja o distanciamento aparente de sua mensagem) sobre tudo o que vai bem ou vai mal no mundo; as infelicidades e as felicidades humanas, o que elas despertam em nós, indignações, julgamentos, aceitações, sonhos, desejos, angústias, tudo isso é a matéria única dos signos, mas esse poder que nos parece primeiramente inexprimível, de tal forma é primeiro, esse poder é imediatamente apenas o nomeado. (Barthes, Crítica e Verdade)


Em vez de elaborar um corpo teórico que lhe permita fazer uma apresentação coerente da condição humana atual, bem como lhe permita apresentar sugestões consistentes para uma transformação política do real, o autor do livro O pequeno príncipe constrói uma crítica reducionista condenada a servir de mero escapismo, mera masturbação mental. Em vez de organizar-se politicamente, o autor (e o leitor), resolveu fugir para um mundo infantil, reificado, e, de lá, ficar resmungando contra o mundo burguês do qual ele é participante e cúmplice, mundo esse tipificado em seu discurso tosco como sendo antropomorfizado em “pessoas grandes”. Essa cumplicidade, a qual ele busca purgar em sua regressão a um mundo infantil, é a verdadeira fonte da “vergonha” que ele alega sentir quando o principezinho o acusa de agir como “as pessoas grandes” (no cap. VII)

A culpa e a frustração sentidas por Saint-Exupéry (o autor do livro) pela execução de uma prestidigitação barata dessas transparece repetidamente n’O pequeno príncipe. Ao remoer esses sentimentos, o autor parece entender que essa crítica inócua do real não irá eximi-lo – nem irá eximir o leitor – de sua responsabilidade para com a reprodução do establishment: em sua futilidade, esse exercício ficcional se esgota numa masturbação mental domesticadora, cujo discurso emancipador se revela totalmente contraproducente, e que, portanto, se reduz a um entretenimento, a um escapismo.

O “mundo dos adultos” (o mundo capitalista, com sua indústria cultural) é um requisito para que Saint-Exupéry escrevesse e divulgasse o próprio livro que ingenuamente acredita compreender a realidade e criticá-la com alguma coerência. Essa incoerência do autor não é mera hipocrisia; é, antes, testemunha da função social da indústria cultural na sociedade capitalista pós-industrial, uma sociedade que se transcende mistificadamente enquanto cultura: a função de promover uma catarse onírica da responsabilidade que cada membro da sociedade tem pela perpetuação da ordem social vigente, para assim desincentivar a transformação política do real, mantendo dessa forma o establishment. A suposta crítica de Saint-Exupéry ao mundo é utilizada por ele (o mundo) para manter tudo tal qual está, para manter o status quo.

***


Vamos analisar a história, em seus 27 capítulos, mais de perto. Obviamente o texto a seguir contém spoilers (revelações sobre o enredo), aliás, essa metacrítica será muito melhor entendida por quem leu o livro e lembra dos seus detalhes. Admito que essa não seria a forma mais eficiente de estudar o livro. O melhor seria organizar a metacrítica por eixos temáticos, e não pela cronologia do livro. Mas isso daria muito mais trabalho...


Capítulo I


Aqui o autor apresenta a dicotomia básica de seu sistema crítico do real, que, simultaneamente é a defesa do seu ideal (sobre o real e o ideal enquanto discursos, sugiro a leitura do capítulo XCVI). A dicotomia é a seguinte: “as pessoas grandes” (ou ainda “gente séria”) versus “as crianças”. As primeiras são a antropomorfização do establishment, que é criticado pelo autor, e as segundas são apresentadas como as autoras de um projeto de redenção e de superação do real.

O autor, e seu alter ego aviador, nem preciso dizer, é uma “pessoa grande” (assim como todos os autores de literatura infantil); portanto, ao referir-se aos adultos na terceira pessoa ele apresenta sinais inequívocos de regressão, de infantilização. Ele regrediu pois acredita que, agindo como uma criança, atingirá um ideal de transformação do real; noutras palavras, ele se comporta como criança porque acredita que o problema do mundo são os adultos. Como primeira contra-argumentação, eu saliento que toda a produção material – todo o trabalho (aliás, seguindo a reificação básica das histórias infantis, o mundo do trabalho está ausente na história, como veremos repetidamente abaixo) – necessária para a manutenção biológica da vida é realizada por adultos, e não por crianças, nem desenhistas ou poetas.

Mas cabe salientar que essa regressão não custou esforço algum ao aviador-narrador: ele não precisou se esforçar para regredir pois, por algum motivo não explicado, ele, mesmo sendo um homem, um adulto, naturalmente e espontaneamente não se comporta como as pessoas grandes. No fundo, o que o aviador-narrador, e portanto o autor desse livro, quer é transformar toda a humanidade numa cópia de si mesmo, que ele projeta na figura das crianças: esse é o “caminho” de emancipação proposto por ele: “sejam como eu sou, e tudo será bom”. Bom se a realidade fosse tão simples assim. Mas não é.

O autor afirma que as pessoas grandes têm dificuldade de entender as coisas, e que precisam de explicações detalhadas. Depois ele afirma que essas pessoas o desaconselharam a continuar desenhando – e assim eles culpa os outros (as pessoas adultas, o mundo cruel) pelo seu fracasso profissional (“Foi assim que abandonei, aos seis anos, uma promissora carreira de pintor”). Percebemos que a frustração pessoal do autor é canalizada para a formação de um discurso crítico do real, discurso, como veremos, extremamente pobre e incoerente. Como eu já disse no capítulo VII desse blog, o rebelde não passa de um desajustado.

Em oposição à complexidade e à polissemia do mundo real (ver capítulo LVII), o autor advoga que a realidade é muito simples e evidente, sendo que são as pessoas grandes que a complicam. Não é difícil perceber, já aqui no capítulo I, que a “realidade” à qual o autor se refere é o seu próprio mundo imaginário interno. Quando diz que o mundo é simples, na verdade ele está enunciando um desejo: que o mundo fosse simples.

Veremos constantemente o autor-narrador desprezar os conhecimentos práticos e instrumentais, não raro de forma irônica, sendo que são justamente esses conhecimentos condição social concreta básica para a configuração de uma sociedade na qual ele pudesse se dedicar à sua criação literária e pictórica, e na qual pudesse vendê-la como mercadoria. Vemos a grande incongruência do autor: no fundo ele critica a realidade sem ter um conhecimento mínimo dela.

Vemos, no último parágrafo desse capítulo I que, claramente, as “pessoas grandes” são uma antropomorfização do mundo burguês, do establishment político e econômico. Vemos também como o autor – em seu reducionismo verdadeiramente grotesco – criou um método para separar as “pessoas grandes” dos outros. Ele afirma que, fora as crianças, que já são identificáveis visualmente, não encontrou ninguém, a não ser ele mesmo (que arrogância...), que manteve a inteligência quando adulto (isso mesmo, “inteligência”). Veremos adiante que é essa a explicação que o autor usará para decifrar os enigmas do mundo: os adultos perdem a inteligência e a bondade que possuem quando crianças. Noutras palavras: as pessoas nascem boas e depois ficam más, por isso o mundo é mau. Para resolver os problemas do mundo, os adultos precisam voltar a se comportar como crianças (ou talvez, como os adultos já são um caso perdido, seja o caso de impor uma “ditadura das crianças” (se não me engano isso chegou a ser defendido por Mário Quintana), ou mesmo seja o caso de promover um holocausto como “solução final” para o problema dos adultos). E viveram felizes para sempre. Fim.


Capítulo II


A solidão que o narrador-autor afirma sofrer nos permite inferir que ele é um outsider (falaremos mais do outsider no capítulo CVII, a ser postado em 05/06/10). Mas ele, como veremos, é um outsider totalmente diferente de mim. Enquanto eu sou racional (desenvolvo meu psiquismo por meio da complexificação do pensamento), ele é sentimental, o que reflete no seu discurso de mundo simplório, raso e reducionista (e, portanto, totalmente inútil como ferramenta de transformação do real). Porém, foram os sentimentos e o reducionismo ontológico que permitiram a esse livro se tornar tão popular, inclusive – e nunca é demais insistir nesse ponto – entre adultos, popularização essa que nunca ocorrerá com a literatura intelectualizada.

O aviador-narrador repete que viveu só, pois fora ele não há adultos inteligentes e puros no mundo. Por que ele não buscou mitigar essa sua solidão criando um orfanato? Ou adotando crianças abandonadas? Isso não nos é dito, o que sabemos é que, em vez de agir, fazer alguma coisa, ele ficou se lamentando, roendo a própria alma, e isso enquanto já era detentor do conhecimento dos mais íntimos segredos do funcionamento do universo. Quando a alucinação (o “pequeno príncipe”) aparece, a primeira coisa que chama a atenção é justamente a sua aparência: em incoerência grotesca com a crítica feita às pessoas grandes no capítulo IV (que elas são pessoas superficiais que se importam com a aparência e com as roupas), vemos que o garoto está muito bem vestido. E não apenas isso: vemos que ele é loiro e que porta uma espada (portanto, não só um símbolo fálico, mas uma arma de guerra usada para matar). Como o autor adverte, o garoto, em seu porte e expressões, era “extraordinário” (ou seja, fora do comum) e “sedutor”. Vemos aqui, novamente se repetir o estereótipo idealizado (descrito no capítulo XLIII) segundo o qual os heróis são homens, jovens (nesse caso, criança), ricos (nesse caso, um príncipe), brancos (nesse caso, um ariano – conforme informado no capítulo VII do livro o garoto tem “cabelos dourados”), saudáveis (obviamente o pequeno príncipe está muito bem de saúde), belos e heterossexuais (se bem que, nesse caso, o garoto parece ser assexuado, o que confirma a negação do corpo, da materialidade concreta, como veremos repetidamente abaixo). Todos esses sinais “sedutores” e “extraordinários” são justamente testemunhas da cumplicidade do pequeno príncipe com uma sociedade machista, falocrática, elitista, preconceituosa, violenta, opressiva, etc., enfim, com o establishment, com o “mundo das pessoas grandes”. Em sua vã e ingênua tentativa de libertação, Saint-Exupéry apenas faz afundar-se ainda mais em sua prisão.

Depois da aparência do garoto, outra coisa que chama a atenção – e que também é um componente clássico nas histórias infantis e da indústria cultural – é a ausência de necessidades materiais associada a um idealismo (a mais pura ideologia): o garoto não pede água (eles estão no meio do deserto) ou comida, mas sim pede para desenhar um carneiro: ou seja, a necessidade do garoto é – como ele próprio – ideal, e não material, repetindo o tão desgastado fetichismo. E, como será dito no capítulo IV, o garoto não quis um carneiro por nenhuma necessidade material (como fonte de matérias-primas para ele se vestir e se alimentar), mas sim porque precisa de um amigo. O estado mental do autor é da mais completa e total alienação (no sentido marxista).

Obviamente que o garoto passa no teste que o aviador-narrador usa para encontrar “pessoas inteligentes”. Não surpreende que o garoto seja uma alucinação do aviador, pois mais ninguém passaria num teste ridículo desses, que é apresentado como uma metodologia infalível que decifrou os mais ocultos segredos do mundo.


Capítulo III


A “explicação” da origem do garoto novamente reafirma a mais grotesca reificação, a mais radical indeterminação material, a mais tosca e ridícula caricaturização do mundo real, a destruição absoluta de qualquer referência ao mundo real, concreto e histórico no qual vivemos.


Capítulo IV


Novamente vemos uma caricaturização absurda e radical da realidade material do mundo, associada a uma crítica irônica a todo nobre esforço da civilização em buscar, acumular e sistematizar o conhecimento científico. Um verdadeiro absurdo! Um discurso que vai às raias da loucura furiosa, uma explicação ridícula que destrói toda a polissemia angustiante do mundo real. Como já dito, comparar aqui a crítica que ele faz às pessoas grandes (“ninguém lhe dera crédito por causa das roupas típicas que usava”), com a aparência do pequeno príncipe, conforme descrita no capítulo II. Se a criança, diferente do adulto (e do próprio Saint-Exupéry), supostamente ignora o traje de cavaleiro (“elegante casaca”), é por ignorância da simbologia social, não por virtude, de tal forma que o mérito do ato é significativamente nenhum.

Novamente o autor confirma seu elitismo e seu pensamento burguês. É tão difícil perceber o pobre deslizamento conceitual que existe entre “Vi uma bela casa de tijolos cor-de-rosa, gerânios na janela, pombas no telhado...” e “Vi uma casa de seiscentos mil reais”?

Quando ele afirma que a história absurda da origem do garoto seria aceita pelas pessoas grandes porque ele deu o nome do asteróide, essa afirmação é tão absurda, tão grotesca, tão tosca, tão ignorante, tão radical, que me faz duvidar seriamente da sanidade mental do seu autor. Seja como for, ela é a prova da ignorância extrema que o autor tem acerca do que seja o mundo real e as pessoas que o habitam.

Quando o narrador diz que é preciso “não querer mal” as “pessoas grandes” por suas falhas morais e por sua ignorância, ele está justamente expondo que sente esses sentimentos (e, junto com ele, o autor do livro), que nada mais são que o reflexo de sua angústia existencial diante de sua responsabilidade e cumplicidade para com o establishment que ele odeia e diante do qual está reduzido a um estado de impotência.

No fim do capítulo IV fica clara outra “virtude” infantil que, para o autor, falta nos adultos e explica os problemas do mundo real: a “imaginação”. A idolatria à imaginação é recorrente na literatura infantil e, como nos explicam os autores de “Para ler o Pato Donald”, é sintomática duma concepção da realidade totalmente reificada, que ignora por completo a realidade material de produção e de trabalho necessária para manter nossa materialidade concreta, nossa corporeidade biológica, sem a qual não há imaginação ou sentimentos.


Capítulo V


Novamente, como em todo o restante do livro, a realidade material é amputada e reduzida a uma caricatura burlesca e reducionista, que já não faz mais referência alguma à materialidade concreta na qual vivemos.

As definições de "bom" e "mal" (aliás, esses conceitos tão infantis não poderiam faltar aqui) usadas pelo autor reafirmam sua ingenuidade crassa e seu completo desconhecimento da complexidade da vida numa sociedade capitalista de alta entropia.

Assim como as aventuras (buscas ao tesouro) pelo mundo de Disneylândia são (de acordo com os autores de Para ler o Pato Donald) uma remissão tosca da realidade concreta do trabalho, assim também o trabalho concreto é referenciado pela “toalete do planeta”, servindo, inclusive, à introdução de uma teleologia moral (farei uma breve crítica da teleologia moral no capítulo CXIII desse blog): os preguiçosos acabam se dando mal. Nem é preciso repetir o caráter alienado, reificado, fetichista, da história dos baobás, e como qualquer lição de moral que ela pretenda passar é anulada pelo fato de que ela é válida numa caricatura do mundo real, e não na nossa realidade concreta. Por falar em “toalete”, todo o processo civilizador que essa pressupõe – cuja história secular está tão bem relatada no livro homônimo (O processo civilizador, 1939) de Norbert Elias, com uma bela riqueza de exemplos retirados dos manuais de etiqueta publicados na Europa a partir do século XIII – é reificado, é subsumido como natural, como uma coisa em si mesma, e não como um processo histórico cumulativo multidirecional que, simultaneamente, é determinado materialmente e possui uma dimensão simbólica influenciada por contingências e especificidades locais.


Capítulo VI


Uma das características da reificação presente na indústria cultural, e presente nesse livro também, é a tomada dos produtos da divisão social do trabalho como coisas em si mesmas. Ora, os desenhos que ilustram o livro nos mostram vários produtos do trabalho (roupas, espada, pá, cadeira, regador, cúpula de vidro, frigideira, cercas, trono, mesa, garrafas, papel, lampião, cordas, lupa, etc.) que simplesmente apareceram do nada: a realidade concreta do mundo, a realidade cotidiana e histórica do trabalho, é negada. Como se pode esperar qualquer validade epistemológica dum discurso que nega nossa materialidade básica? Qualquer afirmação moral que o livro contenha (e ele contém várias) é anulada pelo fato dessa afirmação se dar num contexto completamente diverso do mundo real.

Outra característica da reificação presente na indústria cultural é a clássica inversão da determinação histórica dos nossos valores e gostos, que são tomados como coisas em si mesmas, independentes da história e da realidade concreta - caindo-se, assim, num grosseiro e característico etnocentrismo. É o que ocorre, nesse capítulo, com o prazer estético oriundo do pôr-do-sol. Ora, toda a contextualização material e histórica determinante dessa beleza está ausente na realidade do garoto, e mesmo assim ele possui sensibilidade para ela. A beleza do pôr-do-sol obviamente não existiria num asteróide, pois, devido a sua massa pequena, o mesmo não tem força gravitacional para ter atmosfera (ou para manter corpos maiores – como cadeiras, carneiros e meninos – presos a sua superfície). Ademais, a beleza da aurora e do pôr-do-sol não seria levada em consideração se fosse constante (se bastasse afastar nossa cadeira alguns centímetros para renová-la), pois a sensibilidade se acostumaria a ela e não lhe daria atenção (é impossível, no mundo concreto de trabalho, viver, enquanto corporeidade, num estado permanente de embevecimento, de deslumbre estético).

A melancolia causada pela solidão do garoto é, em verdade, a projeção da melancolia sentida por Saint-Exupéry por viver sozinho num “mundo cruel”, o qual ele não entende, o qual ele não consegue mudar, e ao qual ele, como outsider, não consegue se ajustar.


Capítulo VII


É totalmente ridículo e descabido de qualquer racionalidade afirmar – e, no entanto, essa é uma das principais mensagens do livro – que os interesses egoístas, ingênuos e sentimentais de uma criança imaginária são mais importantes que o trabalho de um adulto do qual depende a sua sobrevivência material (sim, cabe lembrar aqui que o autor – diferentemente do menino, que é uma mera alucinação regressiva – possui um corpo com necessidades materiais que precisam ser atendidas constantemente). Aliás, cabe ressaltar que o próprio aviador em momento algum faz referência a sua alimentação – ele só fala que precisa beber água, como se isso fosse suficiente para nutrir o seu corpo e manter a sua consciência e a sua imaginação ingênua.

Mas a tarefa de consertar o avião não remete apenas à materialidade, à concreção, à corporeidade negada a todo instante no livro. Remete também ao retorno à sociedade, ao convívio com as infames "pessoas grandes”. Não por acaso, a alucinação, o pequeno príncipe, surgiu ao narrador quando esse estava isolado num deserto, há milhas da civilização. Pois se tivesse surgido quando este estivesse na cidade, toda a ingenuidade absurda e absoluta do garoto seria esmagada e estilhaçada pela complexidade duma realidade cruel que não lhe daria qualquer crédito ou atenção, justamente porque está ocupada demais com sua materialidade, sua concreção e sua complexidade. O isolamento do narrador num deserto permite-lhe auto-referenciar-se e projetar seu próprio narcisismo ingênuo e superficial na figura do garoto (no capítulo II ele diz que viveu só, até o dia em que encontrou o garoto num deserto: ou seja, a solidão suavizada pela presença do garoto é na verdade uma projeção delirante do narcisismo rasteiro do próprio narrador). O retorno à sociedade é o retorno a uma realidade de dependência (pois existe uma divisão social do trabalho) dos outros – esse retorno é uma re-inserção, uma renovação da cumplicidade, numa sociedade que o autor-narrador despreza, não entende, não consegue mudar, e da qual não consegue se livrar.

“- Então... para que servem os espinhos?” Temos aqui o clássico raciocínio funcionalista, antropocêntrico, teleológico, e narcísico: os espinhos são interpretados como executores de uma função que remete ao ego do ser pensante e desejante que enunciou a sentença.

Nesse capítulo o autor-narrador-aviador afirma duas vezes estar envergonhado da sua condição, o que remete ao seu sentimento de culpa por ser participante e cúmplice da sociedade na qual está inserido, e a qual sem dúvida alguma ele não compreende, não entende nem um pouco, como prova seu discurso absolutamente ingênuo e radicalmente reducionista até o absurdo delirante.

Cabe também salientar o caráter eminentemente narcísico dos sentimentos “puros” do pequeno príncipe. Como eu já discorri no capítulo LIII desse blog, a suposta pureza moral da criança é fruto não de uma virtude abnegada, mas de um desconhecimento da complexidade de interesses conflitantes existentes no mundo burguês. Mas Saint-Exupéry, e junto com ele o senso comum e tantos outros produtos da indústria cultural, compra a aparência pelo conteúdo e utiliza a suposta pureza moral infantil para construir seu ideal ético, o qual desmorona quando percebemos que o principezinho – como ficará definitivamente provado no capítulo XX – é egoísta e narcísico, aliás, tão egoísta e narcísico a ponto de não perceber que a sobrevivência concreta do seu amigo aviador é muito mais importante que suas reflexões superficiais e tolas sobre carneiros e rosas. Mas nada disso é visto por Saint-Exupéry, e o menino é apresentado como exemplo de virtude a ser seguido.


Capítulo VIII


Como em todo o resto desse livro, esse capítulo está cheio da mais grotesca reificação do começo ao fim. O autor afirma que a flor não poderia “conhecer nada de outro mundo”, afirmando que qualquer conhecimento que ela alegasse ter sobre outro mundo seria “uma mentira tão tola”. Mas por acaso a flor já não sabe o idioma do garoto? (Aliás, existe um idioma universal – problemas oriundos da diversidade de idiomas não existem nesse mundo tosco idealizado por Saint-Exupéry; padrão, aliás, que exaustivamente se repete na indústria cultural (O Surfista prateado, apenas para dar um exemplo, chega à Terra, no filme no qual contracena com o Quarteto fantástico, falando inglês fluentemente.)) Por acaso a flor já não sabia o que era sol, o que era café da manhã, o que era tigre, o que era vento, o que era redoma, etc? E tudo isso não é, por acaso, “uma mentira tão tola”?

A flor será o primeiro de uma série de tipos de companhia que se relacionaram com o garoto. Cada um desses tipos compõem um “tipologia crítica”, a qual nada mais é do que uma tentativa ridícula e superficial do autor em sistematizar sua crítica às “pessoas grandes”, ou seja, ao mundo real no qual ele está inserido e do qual é cúmplice. Assim mesmo, a flor representa alguém que é possível amar (e o garoto – que não tem uma materialidade concreta (não sabemos de onde veio, não se alimenta, etc.) – lamenta não ter sido “maduro” o suficiente para amá-la), diferentemente de outros personagens com os quais ele irá se relacionar nos capítulos seguintes.

Capítulo IX

Nesse capítulo somos informados que o garoto, no seu planeta natal, toma “café da manhã”. Mas de onde vêm a comida que ele come? Convenientemente o planeta lhe fornece fogões naturais. Imagino que tenha fornecido as suas roupas e os outros produtos que no nosso mundo real só existem em função de uma intrincada divisão social do trabalho.

Veremos que a motivação para que o garoto deixasse seu planeta não foi, novamente, uma motivação material, que remeta à sua corporeidade (pois esta na verdade está ausente, é mera aparência idealizada), mas sim a sua solidão (que vem a ser a solidão do próprio autor do livro, um outsider sentimental): ele busca um amigo. Só não é dito por que alguém auto-suficiente (e que deve ter brotado do nada) teria a necessidade de um amigo. Temos aqui, novamente, a reificação: a própria necessidade social e psicológica de amizade é tomada em si mesma, completamente descontextualizada de suas condições reais de existência.

Capítulos X a XV

Entre os capítulos X e XV o autor apresenta o restante da sua “tipologia crítica”. O fato dessa tipologia surgir mediante as experiências pessoais do garoto não é mera coincidência: trata-se de um recurso para forjar uma tosca “comprovação empírica” para os raciocínios preconceituosos, superficiais e reducionistas do aviador (alter ego de Saint-Exupéry). Não surpreende que no fim do capítulos X, XI, e XII o garoto conclua exatamente a mesma opinião pessoal do próprio aviador-narrador-autor, forjando-se assim a comprovação duma realidade dividida entre crianças – o "bem" – e pessoas grandes – o "mal", a causa dos problemas da vida.

A metáfora de que cada um vive num planeta até tem algum sentido ao remeter à solidão e ao narcisismo que faz parte das vidas que cada um de nós leva, principalmente numa sociedade capitalista. A reificação do indivíduo-ilha burguês é levado ao seu apogeu caricato: o indivíduo-planeta. Mas, para superar uma reificação grotesca, faltou construir um complexo sistema de inter-relações entre as pessoas, o qual seria a simbolização duma sociedade na qual há uma intrincada divisão social do trabalho e, portanto, uma interdependência anônima entre as pessoas.

Os problemas e suas soluções relatados nessa tipologia crítica seguem o padrão recorrente na literatura infantil e, de resto, na indústria cultural: eles surgem completamente descontextualizados, sem ligação com o mundo real, o que significa que qualquer “lição de moral” que a história tenha se mostra contraproducente e acaba afirmando a realidade que supostamente nega.

Ora, a superficialidade, o reducionismo, o preconceito e o narcisismo que o garoto encontra no rei, e nas outras “pessoas grandes” são, a rigor, as mesmas características que ele próprio tem, mas que não se manifestam de forma desagradável e criticável (para o autor) por meras causalidades, meras contingências do enredo. São essas mesmas características que o aviador-narrador tem e das quais – por sinalizarem sua cumplicidade com o establishment – ele se envergonha.

De forma análoga ao que ocorre em Disneylândia (conforme explicitado pelos autores de Para ler o Pato Donald), os personagens rasos desse enredo lutam para manter a sua própria superficialidade, a sua própria pobreza existencial e previsibilidade, pois o pouco que se movem já ameaça desmontar a sua máscara existencial caricata, fora da qual simplesmente não existem. Esses personagem ficam girando incessantemente dentro de argumentos circulares e paradoxos lógicos, "sabiamente" percebidos pelo princepezinho.

Embora isso já esteja ficando repetitivo, chamo novamente a atenção para a reificação. Por exemplo, no caso do bêbado: de onde vem a bebida que ele consome? Brota do planeta? Certamente não vem da divisão social do trabalho. O que garante que o nosso pequeno herói não seria bêbado ele também caso tivesse, tal qual o bêbado, acesso fácil e rotineiro à bebida?

A caricatura do empresário mostra quão rasa é a concepção que o autor tem do que seria o trabalho (ou o capitalismo), bem como a sua completa alienação da realidade concreta na qual está inserido. Exatamente como ocorre em Disneylândia, e na ideologia burguesa, a idéia, o pensamento, é tido como a fonte da riqueza, e todo o mundo real é caricaturizado para tornar essa concepção "factível"; tanto que, quando o empresário afirma que as estrelas são dele porque ele teve a idéia de as possuir, o garoto, e junto com ele a ideologia burguesa, concorda (o que lhe desagrada não é isso, mas o fato de ser impossível criar um laço afetivo recíproco do empresário com sua propriedade).

Diante do empresário, o garoto (e, portanto, Saint-Exupéry, pois o garoto é mera projeção narcísica do narrador, o qual é alter ego do autor) revela qual é a sua concepção moral de utilidade: a interdependência afetiva. É o afeto que, para o sentimental Saint-Exupéry, realmente importa na vida. Não vou dizer que ele está errado, mas certamente trata-se de uma concepção reducionista e insuficiente. Mais adiante (capítulo XIV) vemos que o autor acrescenta ao seu utilitarismo a beleza. Novamente, isso é insuficiente como ontologia do real e como idealidade ética e estética.

O autor delineia o seu projeto moral no capítulo XIV: o que importa é abandonar o ego, é viver afetivamente com os outros. Mas repito: o próprio garoto é egoísta e narcisista, ou seja, essa suposta virtude nem ele a possui. O problema do acendedor de lampiões é o seu “legalismo”: ele segue cegamente a lei, em vez de perceber que essa supostamente é uma ferramenta para vivermos melhor: ele troca o fim (a felicidade) pelos meios (a lei). Obviamente o autor, mediante contigências, eximiu arbitrariamente o garoto de cair numa armadilha existencial circular como essa, o que, dada a sua ingenuidade, facilmente poderia ocorrer.

Diante do geógrafo, não é de estranhar o desdém do autor para com o acúmulo de conhecimento – sem o qual, aliás, a sociedade opulenta na qual ele vive não poderia existir e sustentar os seus devaneios –, uma vez que esse desdém já aparecera no primeiro capítulo. Na verdade o que o autor não vê é que todos esses personagens da sua tipologia crítica são necessários para o funcionamento de uma sociedade fundada na divisão do trabalho. Por isso, querer reduzir todos a um tipo – o do próprio autor, que é o mesmo do aviador, do garoto, e da rapoza – é uma pretensão narcisista que revela desconhecer a configuração básica (divisão social do trabalho) da sociedade na qual Saint-Exupéry está inserido. Novamente, as “lições de moral” que ele pretende dar se mostram contraproducentes.

Diante do geógrafo, o pequeno príncipe é apresentado à morte. O seu desconhecimento desse fato básico é nova prova de que sua virtude aparente é mera conseqüência de sua ignorância. Para alguém tão afetivo, certamente a descoberta da morte deveria ter sido recebida de forma muito mais trágica do que foi para o garoto, mas, como esse açucarado livro não é drama nem tragédia, mas sim literatura infantil, isso não ocorre.

Por fim, saliento o caráter narcísico, antropocêntrico, e egoísta da afirmação do geógrafo de que a Terra “goza de boa reputação...”. E, assim, por causa dessa frase, o garoto veio parar na Terra.

Capítulo XVI

Esse capítulo é destinado a fazer uma “apresentação” do que seria o planeta Terra e sua população – a qual foi toda ela dividida preconceituosamente de acordo com a tipologia crítica de Saint-Exupéry. Depois o autor apresenta uma descrição tosca e reificada da divisão social do trabalho de acender lampiões...e só isso.

Capítulo XVII

Imediatamente ao chegar na Terra, o garoto, do nada, se depara com uma serpente que, também do nada, tem o poder, completamente reificado, de devolver aquele que ela toca a sua terra de origem. Mas que coincidência mais feliz, não? A serpente, que usará sua magia para devolver o garoto ao seu asteróide no capítulo XXVI, é um artefato deus ex machina, que só não soa mais ridículo e absurdo porque toda a história do livro é ridícula e absurda do começo ao fim. A serpente é um mero remendo do enredo, mas todo o enredo é feito de remendos. Que tipo de magia e de sortilégio inexplicável confere esse poder à serpente? Toda a realidade material, a do trabalho concreto, desmorona diante de um poder absurdo e de uma coincidência delirante. Mas “as crianças entendem” (capítulo XXV)? Na verdade qualquer retardado mental “entende”.

Capítulos XVIII e XIX

Mais reificação, narcisismo e pretensa lição de moral sobre a condição humana.

Capítulo XX

Nesse capítulo fica patente o egoísmo e o narcisismo do garoto, e que, portanto, ele não apresenta uma superioridade moral. Mas a “solução” (o “segredo”) para que o egoísmo do garoto se manifeste de forma “saudável”, de forma diferente das “pessoas grandes”, será apresentada pela raposa no capítulo XXI, embora já estivesse subsumida no utilitarismo que o garoto definiu no capítulo XIII (é que a diferença entre o garoto, a raposa e o aviador é meramente aparente: no fundo é o mesmo personagem – o autor – que se relaciona consigo mesmo num monólogo).

Capítulo XXI

“E foi então que apareceu a raposa”. Sim, as "coisas" “aparecem” do nada, sem qualquer história, sem qualquer sentido, sem qualquer critério.

A raposa, como todos os outros personagens, a começar pelo pequeno príncipe e pelo próprio aviador-narrador, revela ter um discurso de mundo reducionista e totalmente narcisista e ingênuo. Pelo menos a raposa, ao procurar galinhas, remete a uma materialidade concreta, diferentemente do garoto que aparentemente se alimenta de luz e que cruza o sistema solar em busca de um amigo (de fato, no capítulo XXIV somos informados que o garoto realmente vive de luz!). O encontro com a raposa novamente é ocasião para o autor apresentar o seu ideal ético e estético baseado no seu tipo psicológico sentimental. É a raposa quem passa a “sabedoria” tão associada a esse livro: somos responsáveis por quem cativamos (mesmo que a raposa tenha surgido casualmente, do nada), casando, assim, virtude com egoísmo (assim como ocorre no paraíso cristão). O que o autor quer é reduzir a angustiante polissemia do mundo ao transformar todas as pessoas (ou melhor, as crianças – porque os adultos já estão perdidos) naquilo que ele é; no seu narcisismo quer que todos sejam como ele, pensem como ele pensa, priorizem o que ele prioriza. Seu ideal supostamente virtuoso mostra-se o mais puro egoísmo mesquinho e ignorante, a mais cega vontade de poder.

A raposa faz menção à crescente mercantilização da vida, causada pela subsunção do capital no ser social (é claro que ela não usa essas palavras...). Novamente aqui se confirma que o autor pretende se opor ao establishment; pretende, através do livro, expor uma ontologia crítica do real e sinalizar como superá-lo e atingir um ideal ético e estético, um novo projeto de humanidade. Infelizmente, como já cansei de falar, esse projeto mostra-se contraproducente em sua superficialidade (e eu arriscaria dizer que Saint-Exupéry escreveu literatura infantil - antes que me acusem, eu sei que ele escreveu outros livros além desse - por ser simplesmente incapaz de escrever para adultos – por mais que os adultos infantilizados adorem esse livro).

O que é completamente incompreensível – e que só é factível num discurso no qual o real foi amputado – é como uma raposa, que afirma se alimentar de galinhas que caça (e que, portanto, mata, estraçalha e bebe o sangue morno durante o ato necrofágico, isso quando não devora suas vítimas ainda durante a agonia da morte violenta), teria esses sentimentos puros e ingênuos, e teria como “segredo” não a “lei da atração” (que está exposta em um outro livro...) mas sim que “o essencial é invisível aos olhos”. Infelizmente a crença nesse “segredo” não impediu o autor de se mover num mundo reificado, num mundo de superfícies e aparências, no qual ele naufragou definitiva tragicamente.

Pelo discurso da raposa, e do garoto, fica claro que a “formação de laços” continua sendo orientada por um narcisismo egoísta: o “laço” nada mais é do que jogar o seu ego no outro e pegá-lo novamente, com a condição que o movimento seja recíproco.O outro, em si, não importa, não é nada, ele só importa quando me diz respeito, quando é um “destino pulsional” meu, quando eu invisto a minha libido nele. Que belo ideal ético, não? Aliás, nem preciso dizer que esse ideal se opõe ao defendido por Cristo, assim como a prática de "tipologia crítica" se opõe à orientação de Cristo para não julgarmos o próximo. Não por acaso esse livro é tão popular, não por acaso esse livro é tão usado ideologicamente pelo establishment, pois ele reproduz enquanto cultura o nosso isolamento egoísta e mesquinho, contribuindo para que não pensemos nossos problemas coletivamente, contribuindo para que não nos unamos politicamente para lutar por nossa emancipação. E isso é ensinado, disfarçado de discurso emancipador, às crianças – a quem pertence a responsabilidade de construir o futuro –, reproduzindo, assim, historicamente, a nossa tragédia existencial fundamental.

Capítulo XXII

Esse capítulo é muito claro, em seu reducionismo, ao apresentar, simultaneamente, a ontologia do real e do ideal propugnada pelo autor. Em resumo: a vida das pessoas grandes é infeliz porque elas não formam laços. Só as crianças são felizes, porque elas formam laços. Fim. Simples assim. Seguindo uma concepção sartraniana, penso que as crianças são felizes (se é que são) porque não tem responsabilidades, e, portanto, não são chamadas a serem cúmplices da ordem social vigente.

Capítulo XXIII

Esse capítulo é uma nova ilustração para a vacuidade da vida das “pessoas grandes”. Provavelmente não apareceu na “tipologia crítica interplanetária” dos capítulos X a XV porque as pessoas lá eram ensimesmadas, e o vendedor precisa interagir (comprar e vender), e, portanto, precisa viver numa sociedade.

Capítulo XXIV

Finalmente a materialidade concreta se faz presente, e o aviador é obrigado a ir atrás de um poço de água (o que é uma idéia meio estúpida de só se fazer só no oitavo dia). Em nenhum momento é feita menção à necessidade de alimentação, quer do aviador, quer do menino (com exceção do tal "café da manhã" do cap. IX). Seja como for, novamente há a confirmação do que já ficou tão evidente no livro: o garoto não possui materialidade concreta, não possui necessidades físicas, o seu corpo é mero álibi, é mera ilusão, mero simulacro. A única coisa que lhe importa são os sentimentos ingênuos e narcísicos que cultiva.

“- O que torna belo o deserto é que ele esconde um poço em algum lugar.” Novamente percebe-se que a beleza é concebida como meramente funcional em relação ao ego – o que fica ainda mais ridículo quando percebemos que as necessidades fisiológicas não existem na vida do garoto (e que, portanto, ele não precisa do poço). Mas trata-se de se referenciar ao real eufemisticamente como ausência (assim como, nos vídeos publicitários de fraldas e absorventes, os fluidos corporais reais – sangue, urina e fezes – são referenciados por sua ausência na forma de um líquido azul celeste). Com essas palavras do garoto o aviador é levado a uma epifania que lhe revela a “verdade” de que o “que torna belo é invisível”, ou, em outras palavras, que as coisas só nos importam quando se tornam um destino pulsional nosso: eis a sua suprema sabedoria de vida, eis o caminho (insuficiente) idealizado pelo autor para a emancipação humana.

Capítulo XXV

Do nada eles encontram um poço (o que remete a uma teleologia moral do tipo “lei da atração”: pense positivo e você vai conseguir o que quer). O narrador-aviador, remetendo à materialidade concreta, acha isso “estranho”: um poço pronto no meio do deserto. Mas o garoto não acha isso “estranho”. O mundo real do trabalho socialmente necessário para construir um poço está completamente omitido. Não é de surpreender que um garoto imaginário, que vive de objetos desenhados pelo aviador, não tenha achado isso “estranho”.

O narrador-autor dá de beber ao garoto. Agora, no antepenúltimo capítulo do livro, é a primeira vez que o garoto apresenta alguma necessidade material (fora o tal “café da manhã” do capítulo IX). Ou não? “Essa água era muito mais que um alimento.” Pois, na verdade, a água é um mero álibi: ele a bebeu não para atender a uma necessidade material (a alimentação do seu corpo), mas sim para atender sua necessidade afetiva, “provando”, assim, que “o que é belo é invisível”, ou seja, que só damos importância aos nossos destinos pulsionais. A incoerência suprema e insolúvel gerada por essa reificação extrema é que, sem um corpo real e concreto, sem um corpo biológico (e o garoto só tem um simulacro de corpo – como é afirmado no capítulo seguinte), simplesmente não há pulsão alguma para ser destinada, não há libido alguma para ser investida, não há, portanto, laço algum para ser formado. Assim, a idealidade ética que o garoto representa – a “lição de moral” do livro – se mostra um projeto de humanidade totalmente divorciado de nessa realidade materialmente concreta e, por isso mesmo, totalmente irrealizável. Trata-se de pura ideologia, mero escapismo, mera regressão infrutífera como ferramenta de transformação, mero instrumento de alienação, mera muleta existencial, mero lubrificante social.

E depois de “ensinar” esse ideal ético o que o garoto diz ao narrador-autor? “Tu deves agora trabalhar” (consertar o avião)! Depois de omitir e amputar a materialidade concreta ele se remete a ela: depois de destruir completamente o mundo real, ele pretende salvá-lo.

Capítulo XXVI

Aqui a serpente do capítulo XVII volta para remendar a história e levar o garoto novamente ao seu planeta. Fora o blá blá blá sentimental, o ideal ético e estético de Saint-Exupéry, que é repetido, o que chama a atenção, novamente, é a confirmação de que o garoto não tem um corpo de verdade, mas um mero simulacro, o que significa que ele não tem todas as necessidades reais de uma pessoa real, o que significa uma amputação da materialidade concreta do mundo.

O garoto ficou um ano longe de uma flor que ele sabe ser “efêmera” (mortal), e que ele sabe ser frágil e incapaz de se defender do mundo. Ora, se tudo isso é verdade, não é também evidente que a flor, indefesa e depois de uma ano, já nem existe mais? Aliás, um ano em relação a qual calendário? Novamente, está subsumido como natural algo (o calendário gregoriano) que é um produto histórico.

Capítulo XXVII

Repetindo mais uma vez a reificação, a fetichização, o corpo do garoto simplesmente desaparece (tal qual o corpo dos inimigos derrotados nos videogames).

O autor repete seu ideal ético e, para fortalecer sua mensagem, afirma que “jamais nenhuma pessoa grande entenderá que isso possa ter tanta importância!”. O que não fica explicado (e que deveria ser objeto de uma autocrítica, impedida por sua racionalidade fraca - aliás, a ausência de autocrítica é a estupidez fundamental) nesse seu discurso do mundo, sua descrição do real e do ideal, é por que ele, sendo um adulto, está imune aos defeitos das “pessoas grandes”, bem como ele encontrou, no meio do deserto, um garoto imaterial que lhe ensinou uma sabedoria que ele mesmo já tinha e conhecia desde os seis anos de idade.

***

E a aplicabilidade, no mundo real e material, do ideal ético e estético defendido no livro? Talvez um bom exemplo do que ocorreria, no complexo e cruel mundo real, caso alguém se referenciasse por esse ideal, seja dado pelo filme Dançando no escuro, de Lars von Trier (aliás, é o meu filme favorito). Nesse filme vemos o que um mundo cruel faz com uma pessoa ingênua e boa. O destino do pequeno príncipe, caso tivesse aparecido não no deserto do Saara mas sim na sociedade humana, não seria muito diferente do de Selma (a protagonista do filme): ele provavelmente terminaria morto, enforcado, ou talvez crucificado... Falaremos, no capítulo CVI, de outro filme de Lars von Trier, Anticristo.

***




Confira a tradução do presente capítulo para o neo-miguxês:






***

Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

sábado, 10 de abril de 2010

C - Acerca de esboços de considerações metacríticas sobre a literatura infantil na indústria cultural.

.
.
.

§ 100




Antes de ler este capítulo, sugiro a leitura do capítulo ### 33, o qual serve como um referencial teórico com o que é dito aqui.

Esse capítulo, e os cinco próximos, serão dedicados à indústria cultural. Nesse capítulo, teremos considerações sobre a literatura infantil mercantilizada; no capítulo 101 trataremos do caso específico do livro O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry; no capítulo 102 faremos breves considerações sobre um dos primeiros filmes animados de Walt Disney, Steamboat Willie, e veremos como o seu subtexto contém uma legitimação das relações autoritárias; já no 103 trataremos da catarse da pulsão de morte na indústria cultural (com destaque para os casos do anime Dragon Ball e da triologia hollywoodiana Matrix); no capítulo 104 teceremos breves considerações acerca do filme Avatar, de James Cameron; no capítulo 105 faremos observações sobre o vídeo de auto-ajuda Filtro solar, e veremos novamente o papel político conservador da indústria cultural; e, como contraposição à indústria cultural, faremos, por fim, no capítulo 106 considerações sobre o filme Anticristo, de Lars von Trier. Todos esses capítulos seguirão a linha editorial desse blog, a saber, a de iconoclastia e de crítica radical ao mainstream, ao establishment e, em última instância, à vida tal como ela se apresenta historicamente - ou seja, um espécie de terrorismo intelectual.

Saliento que eu estudei muito pouco a teoria da indústria cultural. Portanto, o conteúdo desses texto é mais um reflexo das minhas conjecturas pessoais do que de um estudo sistematizado da referida teoria.

Todos esse capítulos serão marcados pelo marcador “indústria cultural/cultura de massa”, que já contém 12 textos, inclusive os destinados à critica da publicidade e da auto-ajuda.

***

Não pretendo, nesse texto, “analisar” longamente os diversos aspectos relativos à literatura infantil como indústria cultural, mas sim viso fazer uma metacrítica da mesma. Ou seja, viso fazer uma crítica do seu próprio discurso crítico. Depois desse capítulo “teórico” veremos no próximo capítulo um “estudo de caso”, o livro O pequeno príncipe.

O sucesso comercial – entre adultos – de mercadorias da indústria cultural voltadas para o público infantil, como o livro O pequeno príncipe e o filme E.T., é a prova mais gritante da infantilização da maioria dos adultos, o que, por sua vez, é indicativo da existência de mecanismos culturais de manipulação e regressão na sociedade capitalista.

O fato do imaginário infantil ser apropriado como utopia do adulto, foi satirizado recentemente por alguns, por exemplo pela banda Radiohead (não só no vídeo 2+2=5, mas também nos seus "mascotes" depressivos com dentes afiados), que utilizou a simbologia desse imaginário para retratar um mundo distópico.


Um mundo idealizado e irreal é apresentado sub-repticialmente como argumento na racionalização de um discurso crítico do real e de construção de um ideal (conforme descrito no capítulo XCVI). O real, em última instância, é referenciado como ausência, testemunha de uma sociedade que se transcende ilusoriamente enquanto cultura infantilizada de massas. O papel dessa transcendência ilusória é, por fim, impor como fatalidade, à qual se deve resignar, o próprio real que é criticado de forma amadora e inconseqüente: o próprio senso-crítico é desmerecido mediante sua infantilização, e silenciado pela demonstração de sua vacuidade, erigindo-se assim o real como inevitabilidade histórica, e transformando dessa maneira a história em natureza, e contribuindo para a despolitização de uma sociedade que busca escapar do real, em vez de lutar politicamente por sua transformação superação. A emancipação ilusória da história infantil, enquanto eufemismo alienante, é inimiga da emancipação real, a qual apenas pode ser alcançada mediante a práxis política das massas que lutam por sua emancipação. Ou o consumo individual de uma mercadoria da indústria cultural seria capaz de ensejar uma emancipação efetiva?

Para ser melhor imposto, mediante persuasão, o real é espetacularizado num ideal ilusório que só na aparência o nega, mas que, em última instância, se esgota num escapismo cujo resultado é precisamente afirmar o que aparentemente nega.

O texto ficcional cria as condições para a validade epistemológica do conhecimento filosófico que lhe fundamenta, que é o seu subtexto. Mas o que isso diz sobre o mundo real? Não raro, não diz nada, sendo o mundo do texto ficcional uma caricaturização burlesca do mundo real, ou mesmo um escapismo explícito. Não se pode esperar que uma história seja capaz de nos ensinar alguma coisa sobre a realidade quando essa não é retratada com fidelidade, mas sim de maneira caricaturizada.

Por isso eu sou tão reticente em ler literatura (contos e romances), mesmo porque o eventual conteúdo filosófico existente está bem mais aberto a múltiplas interpretações (fora nos muitos casos em que este conteúdo é o puro senso-comum), além de estar imiscuído com o enredo, exigindo de mim a tarefa de separá-los.

A caricaturização do mundo nas histórias infantis nos lembra que a mesma técnica é, não raro, usada na publicidade (conforme eu descrevi no capítulo LXXXIV, e também no LXXXV), o que é testemunha do poder persuasivo que ela (a caricaturização) tem sobre as massas, as quais em geral não percebem os deslizamentos conceituais que são realizados sub-repticialmente no processo de caricaturização e acabam por remeter incorretamente ao mundo real conclusões tiradas num mundo ficcional que não diz mais respeito à realidade. Mais um exemplo disso se encontra no conceito de natureza presente no subtexto do filme Avatar (ver cap. CIV, a ser postado em 08/05/2010). As conclusões (“morais da história”) tiradas no mundo ficcional (ideal) não dizem respeito ao mundo real, pelo simples fato de que se tratam de universos ontologicamente diferentes. Essa inversão, em vez de assinalar para uma transformação do real (conforme sugere o texto), assinala para uma reiteração do mesmo, pois (conforme o subtexto) a irrealidade do ideal sinaliza para a naturalidade (e inevitabilidade histórica) do real.

O autor da história infantil busca, pateticamente, exorcizar a sua responsabilidade pelas injustiças do mundo real concreto mediante um escapismo, assim estruturado: (i) ele concebe um mundo alternativo e idealizado, no qual os aspectos positivos do mundo real são abruptamente divorciados dos aspectos negativos aos quais eles estão intimamente ligados (eliminando assim as contradições do mundo real), e no qual é vigente um outro tipo de causalidade reificada (1) e onírica (“magia” ou “imaginação") que abole as necessidades concretas e, portanto, a necessidade do trabalho produtivo, transformando todos os personagens em gozadores do ócio conspícuo (conceito desenvolvido por T. Veblen, conforme eu apresentei no capítulo XXI) ; (ii) esse mundo idealizado é associado a uma figura idealizada da infância, igualmente amputada, na qual aspectos agradáveis (“bons”) são divorciados dos aspectos desagradáveis (“maus”) (por exemplo, a “inocência” da criança é apresentada como uma fonte de virtude, como uma realidade em si mesma, e não como uma mera conseqüência de sua ignorância, conforme eu já tratei no capítulo LIII); (iii) o mundo real, caricato, é criticado em oposição a um ideal, patético, reducionista, imaginário e para sempre impossível de se concretizar; (iv) a criança é apresentada com agente transformador do mundo, como a esperança de que um dia o mundo real pode ser parecido com o mundo ideal; (v) essa crítica promove uma catarse da co-responsabilidade e da cumplicidade que o autor (e o leitor adulto) tem em relação ao mundo no qual está inserido, ele, assim sente, por meio de uma gratificação simbólica, que “fez a sua parte” para mudar as coisas. Porém essa gratificação simbólica é usada pelo establishment, justamente por ser simbólica e deixar a realidade tal qual está, como forma de catarse simbólica que perpetua ideologicamente e contribui para a reprodução histórica do status quo.


__________________________________

(1) O conceito de reificação (alienação, coisificação, fetichização) será central nas análises desenvolvidas nos próximos dois capítulos. Por isso, caso você não o domine, sugiro que o estude, a começar pelo capítulo ### 5 desse blog.





***

Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

sábado, 3 de abril de 2010

### 33 - O imaginário infantil como utopia passada e futura do adulto – referencial teórico para os capítulos C a CII.

.
.
.

#
#
#

33





(...)

Caímos finalmente, com isso, na pior das transgressões: atrever-se a por em dúvida a imaginação infantil, quer dizer, horror!, questionar o direito das crianças a consumir uma literatura sua, que as interpreta tão bem, fundada e cultivada para elas.

Não há dúvidas que a literatura infantil é um gênero como outro qualquer, acobertada por subsetores especializados dentro da divisão do trabalho “cultural”. Outros se dedicam às novelas de cowboy, às revistas eróticas, às de mistério, etc. Mas pelo menos estas últimas se dirigem a um público diversificado e sem rosto, que compra anarquicamente. No caso do gênero infantil, pelo contrário, o público foi adstrito de antemão, especificado biologicamente.

Esta narrativa, portanto, é executada por adultos, que justificam seus motivos, estrutura e estilo em virtude do que eles pensam que deve ser uma criança. Chegam, inclusive, a citar fontes científicas ou tradições arcaicas (“é a sabedoria popular e imemorial”) para estabelecer quais são as exigências do destinatário. O adulto dificilmente poderia propor para sua descendência uma ficção que colocasse em xeque o futuro que ele deseja que o pequeno construa e herde.

Antes de tudo, a criança – para estas publicações – deve ser um adulto em miniatura. Por intermédio destes textos, os maiores projetam uma imagem ideal da dourada infância, que, com efeito, não é outra coisa que sua própria necessidade de fundar um espaço mágico alijado das asperezas e conflitos diários. Arquitetam sua própria salvação, pressupondo uma primeira etapa vital dentro de cada existência, à margem das contradições que quiseram apagar por intermédio da imaginação evasiva. A literatura infantil, a imaculada espontaneidade, a bondade natural, a ausência de sexo e de violência, a uterina terra de mina garantem a sua própria redenção adulta: enquanto existirem crianças, existirá o pretexto e meios para auto-satisfazer-se com o espetáculo de seus auto-sonhos. Nos textos destinados aos filhos, se teatraliza e se repete até a saciedade um refúgio interior supostamente sem problemas. Ao se deleitarem com sua própria lenda, caem na tautologia: olham-se a si mesmos num espelho crendo que é uma janela. Essa criança que brinca aí no jardim é o adulto que está olhando, que está se purificando.

Assim, o grande produz a literatura infantil, a criança consome. A participação do aparente ator, rei deste mundo não-contaminado, é ser público ou marionete do seu pai ventríloquo. Este último corta a voz de sua progênie, arroga-se o direito, como em toda a sociedade autoritária, a erigir-se seu único intérprete. A forma pela qual o pequenino colabora é emprestando ao adulto sua representação

Mas, um momento, senhores! As crianças por acaso não são assim?

Com efeito, os maiores mostram aos mais jovens como uma prova que essa literatura é essencial, corresponde ao que a mesma criança pede, o que considera gostoso. Não obstante, trata-se de um circuito fechado: as crianças foram geridas por essa literatura, e – para se integrarem à sociedade, receberem recompensa e carinho, serem aceitas, crescerem em direitos – devem reproduzir diariamente todas as características que a literatura infantil jura que elas possuem. O castigo e a gratificação sustêm este mundo. Por trás do açucarado Disney, o látego. E como não se lhes apresenta outra alternativa (que no mundo dos adultos existe, mas que por definição não é matéria para os pequeninos), que elas mesmas pressintam a naturalidade de seu comportamento, acatando felizes a canalização de sua fantasia num ideal ético e estético que lhes aparece como o único projeto possível de humanidade. Essa literatura se justifica com as crianças que engendrou: é um círculo vicioso.

Assim, os adultos criam um mundo infantil onde possam reconhecer e confirmar suas aspirações e concepções angelicais; segregam esta esfera, fonte de consolo e esperança, garantia de que amanhã tudo será melhor (e igual) e, ao isolar essa realidade, ao dar-lhe autonomia, tramam a aparência de uma divisão entre mágico e o cotidiano.

Os valores adultos são projetados, com se fossem diferentes, nas crianças, e protegidos por elas sem réplica. Os extratos (adulto e criança) não seriam antagônicos: resumem-se num só abraço, e a história se faz biologia. Desmorona-se, ao serem idênticos pais e filhos, o fundamento de um conflito geral verdadeiro. A criança-pura substituirá o pai corrompido, com os valores desse progenitor. O futuro (a criança) representa o presente (o adulto) que, por sua vez, retransmite o passado. A independência que o pai outorga benevolente a esse pequeno território é a mesma forma que assegura seu domínio.

Há, porém, algo mais: essa divisão territorial simples, plana, translúcida, formosa, casta, pacífica, que se promoveu como salvação, na realidade importa, de contrabando e involuntariamente, o mundo adulto conflitante e contraditório. O desenho deste mundo transparente não faz senão permitir o encobrimento e a expressão subterrânea de suas tensões reais e cansadamente vividas. O engendrador sofre esta cisão de sua consciência em ter completa consciência deste dilaceramento dentro da pele. Apropria-se do “fundo natural” da infância, que é sua nostalgia, para ocultar as fontes do que presume ser seu próprio afastamento do paraíso perdido, sua própria queda no mundo. É o preço que deve pagar para subsistir junto à sua depravação castigada. Em função desse modelo divinizado, julga-se e acha-se culpado: necessita desse espaço encantado-salvador, mas jamais poderá ser imaginado com a pureza indispensável, jamais poderá converter-se ele mesmo em seu próprio filho. A forma da evasão implica apagar mas ao mesmo tempo expressar seus problemas.

A literatura infantil é, por isso, talvez o foco onde melhor se pode estudar os disfarces e verdades do homem contemporâneo, porque onde menos se pensa encontra-los. E esta é a mesma razão pela qual o adulto, carcomido pela monotonia cotidiana, defende essa fonte de eterna juventude: penetrar esse mundo é destruir seus sonhos e revelar sua realidade.

Assim concebido, o imaginário infantil é a utopia passada e futura do adulto. Precisamente por constituir-se no reino interior da fantasia, é aí, porém, nesse modelo de sua Origem e de sua Sociedade Futura Ideal, que se reproduzem com liberdade todas as características que o afligem. Pode, desta maneira, beber seus próprios demônios, sempre que tenham sido açucarados em calda de paraíso, sempre que viagem com o passaporte da inocência, sempre que sejam apresentados como ingênuos e sem segundas intenções adultas. Todo homem tem a obrigação constante de imaginar sua própria situação, e a cultura de massas concedeu ao homem contemporâneo a possibilidade de alimentar-se de seus problemas sem ter que passar pelas dificuldades e angústias temáticas e formais da arte e literatura da elite contemporânea. É um conhecimento sem compromisso, a autocolonização da imaginação adulta: por meio do domínio da criança, o grande se domina a si mesmo. Tal como a relação sadomasoquista de Donald com seus sobrinhos, o paroquiano desta literatura encontra-se apanhado entre sua utopia e seu inferno, entre seu projeto e sua realidade. Pretende evadir-se a outro mundo, santificado, e em cujo solo viaja cada vez mais dentro de seus próprios traumas, uma volta sem parafuso e um parafuso sem volta.

(...)

(Ariel Dorfman e Armand Mattelart, “Para ler o Pato Donald: comunicação de massa e colonialismo”, uma parte da introdução.)





***