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§ 21
Nam si nom inesset contentio, unum omnia essent, ut ait Empedocles. Aristóteles, Metafísica, B, 5
(...) a vontade, em todos os graus da sua manifestação, de baixo até em cima, tem falta total de uma finalidade última, deseja sempre, sendo o desejo todo o seu ser; desejo que não termina quando algum objeto é alcançado, incapaz de uma satisfação última, e que para parar tem necessidade de um obstáculo, uma vez que, por si mesmo, está lançado no infinito. Arthur Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação, Tomo I, §56.
"A circulação simples de de mercadorias - a venda e a compra - serve de meio para um objetivo final que está fora da circulação, a apropriação de valores de uso, a satisfação de necessidades. A circulação do dinheiro como capital é, pelo contrário, uma finalidade em si mesma, pois a valorização do valor só existe dentro desse movimento sempre renovado. Por isso o movimento do capital é insaciável." (Marx, O Capital, Livro I, capítulo IV)
Certa vez fiquei sabendo de uma pesquisa que revelou a seguinte informação: a maioria das pessoas aceitaria ter o seu poder aquisitivo diminuído, desde que o poder aquisitivo dos outros diminuísse mais que o delas, o que as tornaria, relativamente, mais ricas. Não, a maioria das pessoas não aceitaria perder poder aquisitivo se esse poder fosse repassado a outros; se elas perderem, os outros têm que perder mais.
Thorstein B. Veblen remete a esse tipo de comportamento n' A Teoria da Classe Ociosa (1899); ele o chama de comparação odiosa, no sentido que os indivíduos se comparam uns aos outros de forma a determinar quem é melhor e quem é pior, quem é vencedor e quem é perdedor.
Uma conseqüência comparação odiosa é a emulação pecuniária: a disputa de egos, da vontade de poder, se dá no campo econômico; no clímax da civilização, na sociedade capitalista, mostra-se aos demais que se lhes é superior por meio do poder pecuniário, o qual se apresenta pelo desperdício conspícuo, cujas principais formas de expressão são: (i) o consumo conspícuo, isto é, o consumo cuja função é exibir o poder pecuniário do consumidor, conferindo-lhe status e dignidade; (ii) o consumo vicário, no qual quem consome o faz para mostrar o poder pecuniário de outrem, de quem está financiando esse consumo; (iii) o ócio conspícuo, no qual o individuo se abstém de exercer atividades produtivas (que produzem e reproduzem bens e serviços de consumo de subsistência ou de capital), e passa a se dedicar a atividades não-produtivas, que conferem status (p.ex.: esportes, artes, religião, política, culinária, erudição, etc); e (iv) o ócio vicário, quando alguém é mantido em atividade improdutiva para assim demonstrar o poder pecuniário de quem financia esse ócio (p.ex.: mordomos e esposas que não trabalham).
Em suma, a emulação pecuniária se expressa por meio da prodigalidade, de tal forma que a quase integralidade dos avanços de produtividade são transformados em consumo adicional, sem resolver, portanto, o problema da escassez, uma vez que ajuda a criar mais necessidades, em fez de satisfazer as que já existiam. Assim,
"Pela sua própria natureza, o desejo de riqueza nunca se extingue em indivíduo algum; e evidentemente está fora de questão uma saciedade do desejo geral ou médio de riqueza. Nenhum aumento geral de riqueza na comunidade, por mais geral, igual ou 'justa' que seja essa distribuição, levará mesmo de longe ao estancamento das necessidades individuais, por que o fundamento de tais necessidades é o desejo de cada um de sobrepujar todos os outros na acumulação de bens. Admitem alguns" [está aqui se referindo à teoria econômica ortodoxa e convencional] "que o incentivo à acumulação está na necessidade de subsistência ou de conforto físico; se esse fosse o caso, poder-se-ia conceber que as necessidades econômicas conjuntas da comunidade se satisfizessem num ponto qualquer de progresso da eficiência industrial. A luta é contudo essencialmente uma luta por honorabilidade fundada numa odiosa comparação de prestígio entre os indivíduos; sendo assim, é impossível uma realização definitiva" (A Teoria da Classe Ociosa, capítulo II).
Vamos comparar o que Veblen disse em 1899 com o que a Enciclopédia Barsa disse em 1979 [durante a Guerra Fria] (no verbete "Economia", na parte intitulada "Debate Doutrinário", os negritos não estão no original):
Dentro do nosso ponto de vista, contudo, parece mais significativo o fato de que à luz de uma análise cuidadosa as teses do Socialismo científico surgem como bem menos revolucionárias do que pareciam à primeira vista. Tomemos, assim, a meta final do Marxismo, ou seja, do estágio comunista da sociedade. Esse estágio, segundo seus defensores, se caracterizará pela inexistência de classes, desaparecimento do Estado, supressão de qualquer tipo de propriedade e, sobretudo, pela repartição "a cada um segundo suas necessidades". Ora, melhor exame do assunto mostra que esse estágio comunista só poderá ocorrer, e ocorrerá necessariamente, quando houver sido resolvido o problema econômico fundamental, a saber, o da insuficiência de bens para atendimento de todas as necessidades humanas. Em verdade, quando o aumento da produção fizer com que todos os bens existam em quantidades superiores às necessidades, surgirão, como corolários inelutáveis, aquelas características apontadas para o estágio comunista. Assim, a propriedade, entendida como direito de usufruir de um bem com a exclusão de qualquer outra pessoa, deixa de ter sentido. Em verdade, todos os bens serão superabundantes, como presentemente o ar atmosférico, o que exclui a idéia de apropriação. Desaparecerão, em consequência, as classes sociais, pois, economicamente, se definem pela propriedade dos bens de produção que garantem aos seus titulares privilégios na repartição do produto final. A própria idéia de repartição privilegiada deixa de ter sentido pois que, numa situação de superabundância, cada um tomará simplesmente os bens na quantidade que lhe aprouver. Tal é, diga-se de passagem, a repartição "a cada um segundo sua necessidade", característica central do chamado estágio comunista. Finalmente o Estado, pelo menos no sentido marxista de instrumento de exploração de uma classe por outra, desaparecerá, dada a inexistência de classes. Ora, se o estágio comunista significa simplesmente (e a nosso ver não pode significar outra coisa) essa situação de superabundância, pode-se afirmar, com tranquilidade, que se trata de um objetivo comum ao Capitalismo e ao Socialismo. Tanto um quanto outro procuram, através do contínuo acréscimo da produção, aumentar os bens atualmente disponíveis. Se alguns teóricos do Capitalismo, contrariamente ao que pensam os marxistas, negam que o estágio de superabundância possa jamais ser atingido, dado o constante acréscimo das necessidades humanas, isso não significa que ele deixe de ser um ideal a ser perseguido. As divergências se resumiram, pois, em saber qual o melhor caminho para se chegar ao estágio "comunista": o Socialismo ou o Capitalismo.
Sobre esse suposto estágio de superabundância, Schopenhauer tem o seguinte a dizer (em Parerga e Paralipomena, capítulo XII - Contribuições à doutrina do sofrimento do mundo, § 152):
Se transferíssemos o homem para um país utópico, onde tudo crescesse sem ser plantado, onde as pombas já revoassem assadas, e onde cada um encontrasse, sem dificuldade, a mulher amada, sucederia que uma parte dos homens morreria de tédio ou se enforcaria, e outra parte promoveria guerras, massacres e assassinatos, e dessa forma faria trazer mais sofrimento do que aquele que a natureza impõe. Desse modo, para uma espécie como a dos homens, nenhum outro palco, nenhuma outra existência, se presta.
Quanto a mim, nesse caso em completo desacordo com a comparação odiosa, estaria reconciliado com a civilização se a minha vida, tal qual ela é, fosse a mais desgraçada da face da Terra, pois assim eu poderia acreditar que o sofrimento e o despropósito são exceção e não regra.
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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.
Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.
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