sexta-feira, 30 de outubro de 2009

LXXXV – Acerca de um exercício interpretativo do vídeo de anúncio do perfume Lacoste Inspiracion (à guisa de adendo ao capítulo anterior).

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§ 85





Anúncio do perfume Lacoste Inspiracion.


Público-alvo presumido: mulheres provavelmente entre 15 e 30 anos.
Duração: 20 segundos.
Objetivos do vídeo: (i) seduzir o público-alvo a desejar a mercadoria-objeto (o perfume
Lacoste Inspiracion); (ii) seduzir o público-alvo a desejar a grife Lacoste; (iii) seduzir qualquer um que assista ao vídeo a desejar a grife Lacoste.
Música:
She’s a lady (Tom Jones)


O vídeo






00:00:01

A modelo aparece desfilando sensualmente na calçada, protegida sob as marquises das lojas. Ela está usando um leve vestido branco de verão. Ao fundo vê-se uma bicicleta (que representa a infância que a moça está deixando para trás). Todo o ambiente é levemente cor-de-rosa, o que também remete à infância que já finda para protagonista, a qual, por sua vez, é a representação do eu (do ego) da consumidora-alvo.

As lojas representam a proteção familiar que a moça tem, representam a proteção dos seus pais. Não por acaso, a proteção é fornecida por lojas, isto é, pelo “mundo das mercadorias”, isto é, pelo consumo de mercadorias.

Vemos que há um homem andando atrás da modelo. Esse homem representa as possibilidades sexuais que estão presentes na vida da moça sob os auspícios da proteção familiar. Toda a argumentação do filme gira em torno dos medos que a garota têm em realizar seus desejos sexuais.

00:00:02

A modelo sai da proteção das marquises e pisa na rua (que é cor-de-rosa). Essa ato representa a tentativa de emancipação da garota, a tentativa de tornar-se mulher. É a representação do abandono da proteção da família, da tentativa de obter prazer sexual satisfatório e realizador. Representa um impulso contra uma sociedade repressora da sexualidade.

00:00:03

A garota é surpreendida por uma inesperada chuva; inesperada por que o dia está radiante como uma manhã de verão. A chuva representa a “sujeira” associada ao ato sexual: a chuva é a representação da repressão à pulsão sexual da garota, isto é, a sua transformação em mulher. A chuva é a representação da insegurança da juventude feminina diante do sexo: ela tem medo de “se sujar”, pois sente seus desejos reprimidos pelo superego.

Saliente-se que a modelo está de branco (cor que representa a sua pureza – a sua virgindade). A chuva em contato com o tecido branco revelaria a sua nudez. Como garota imatura, a protagonista tem vergonha da sua nudez, pois ainda não é capaz de controlar a própria sensualidade. Ela, também, tem medo se ser condenada por uma sociedade repressora.

Vemos que ao fundo da cena uma mulher, mais velha que a nossa protagonista, abre uma sombrinha: ela, enquanto mulher madura, tem uma proteção contra a repressão de sua sexualidade, ela já é uma “mulher resolvida”. A nossa protagonista (ou seja, o ego da consumidora-alvo), não é madura e por isso não desenvolveu mecanismos de proteção.

Vemos ao fundo da cena, também, um rapaz num skate. O rapaz move-se da direita para a esquerda: da garota para a mulher madura. O rapaz representa o homem perdido, o homem que uma garota imatura e insegura perdeu para uma mulher sexualmente resolvida (ou representa mesmo apenas o medo de perder o homem). Tudo isso é agravado pelo fato de ser um rapaz (e não um homem engravatado, ou um trabalhador braçal): a nossa protagonista não é capaz de conseguir, de dominar, nem um garoto tão ou mais imaturo do que ela! Nesse contexto, a sombrinha da mulher apresenta um significado adicional: ela é um símbolo fálico, ela é, especificamente, o pênis do garoto do skate, o qual foi perdido por nossa protagonista (repare que a inclinação do sombrinha em relação ao corpo da mulher é próxima da inclinação de uma ereção de um jovem viril). E, nesse contexto todo, a chuva ganha um significado adicional: ele representa a ejaculação e, indiretamente (mediatizada pela ejaculação), representa o próprio orgasmo perdido. A nossa garota sensual é imatura e insegura, e por isso perde o rapaz, o pênis, o sexo e o orgasmo.

00:00:04

Com medo da chuva – da sujeira que a realização do seu desejo pode lhe trazer, ou ainda do prazer frustrado por sua inexperiência – a garota retorna à proteção de uma marquise, que é de coloração azul – representando a segurança adulta, e, possivelmente, mesmo masculina (do pai). A leve coloração cor-de-rosa permanece na cena.

00:00:05-06

Com um sorriso de garota travessa, de Lolita, a garota olha para cima, para o céu (fonte da chuva, da sua repressão, do seu gozo, do seu prazer, mas também da sua emancipação). Percebemos que ela teve uma idéia, ela encontrou uma forma de se proteger da chuva, isto é ela (o ego da consumidora-alvo) encontrou uma ferramenta que lhe permitirá viver a sua emancipação, que lhe permitirá realizar a sua sexualidade sem medo, que lhe permitirá ser mulher, obter o prazer tão desejado.

00:00:07

Essa ferramenta é o perfume Lacoste Inspiracion, que é o Outro do anúncio (e que, no fundo, é o verdadeiro protagonista do vídeo). A protagonista então, passa em frente do perfume: o poder da mercadoria se expressa de per se, pela sua simples “presença” a mercadoria é capaz de emancipar a garota, dando-lhe a confiança de que precisa para ter a coragem de realizar-se como mulher, para ter a coragem de dizer sim ao prazer proibido. O perfume apresenta-se como um antídoto contra sujeira representada pela chuva: ele é um artefato deus ex machina, que dá coerência à história, que lhe permite um desfecho favorável à protagonista. O ego da consumidora-alvo pode se sentir protegido pelos poderes sobrenaturais dessa mercadoria. O perfume pode, também, ser interpretado como um substituto do falo perdido, como um sucedâneo do ato sexual, como, numa palavra, masturbação.

Quando a garota passa frente à mercadoria, para lhe receber “a benção” vemos que a imagem da modelo aparece invertida: ela passa de pé pela direita, e sua imagem é projetada no perfume, aparecendo de ponta-cabeça sob a face esquerda do mesmo. Isso é uma representação pictórica do poder sobrenatural da presença da mercadoria: ela é capaz de inverter a realidade, ela é capaz de realizar uma transformação transcendental, um “nascer de novo”: ela é capaz de transformar uma menina insegura, mas desejosa e sensual, numa mulher. Estamos no domínio do fetichismo da mercadoria.

00:00:08-09

Protegida pelo perfume, e inspirada por sua divindade, a garota se aventura na chuva, vai atrás da realização da sua sexualidade, da sua transformação em mulher, vai atrás do prazer que antes a amedrontava em sua insegurança. A chuva não mais a assusta; ao contrário ela salta e dança com coragem e sensualidade.

00:00:10

Salientando a segurança que tem de si, a modelo levanta a saia para mostrar mais as pernas – a sua nudez, que já está sendo revelada pela chuva. Perceba que a rua não é mais cor-de-rosa, embora essa cor ainda permaneça levemente presente no vídeo.

00:00:11

O poder emancipador do alienus representado pela mercadoria é tal que a garota não apenas deixa-se molhar pela chuva: ela a bebe! Isso representa que a garota (ego da consumidora-alvo) encontra-se totalmente segura para exercer a sua sexualidade sem tabus, para se transformar ousadamente em mulher, para viver sua sexualidade sem temores: ela conquistou um falo para ela, ela obteve o prazer sexual, o orgasmo proibido.

00:00:12

A modelo, segura de si, gira levantando a saia, e assim mostra as suas pernas. Um homem, ao fundo, caminha na direção dela: trata-se de uma nova afirmação da segurança que ela agora tem em si mesma, que ela agora é mulher e realiza a sua sexualidade.

00:00:13-15

Comprovando a sua transformação pelo poder divido do artefato deus ex machina, a garota morde sensualmente os dedos. Ela olha sensualmente para algo, será o homem que estava ao fundo da cena do 12° segundo? Ou será para o autor de sua emancipação? Seus cabelos já estão ensopados: ela está afundada no prazer sexual.

A auto-exibição prossegue, e a modelo mostra parte de seus glúteos. Ela então aparece contra o Sol, nova afirmação da segurança que o perfume lhe proporcionou.

00:00:16

Depois de tanto a modelo gozar (no sentido sexual da palavra), a chuva se interrompe: essa é a simbolização definitiva do triunfo da transformação da garota em mulher: ela não é mais uma garota, ela não é mais virgem, ela não tem mais medo dos tabus do sexo, ela superou as repressões da sociedade, ela não precisa mais da proteção dos pais, o sexo não a suja mais, ela realizou a sua sexualidade, ela domina a falo que tanto desejou. E nada disso teria sido possível sem a presença do alienus representado pelo perfume: o perfume, essa inspiração divina, foi a verdadeira ferramenta da sua emancipação. A coloração cor-de-rosa aparece apenas na parte inferior do vídeo, em oposição ao azul do céu (que aparece pela primeira vez e que representa a segurança da idade adulta, ou mesmo a segurança fálica de um homem conquistado pela protagonista).

00:00:17

A modelo sorri sensualmente, feliz e realizada, para a câmera, ou melhor, para a consumidora-alvo da mercadoria. O seu olhar diz tudo: ela está realiza, e ela está dizendo à consumidora-alvo que essa pobre-diaba também pode encontrar a sua realização, bastando para isso adquirir o perfume. Como a modelo é a representação do ego da consumidora-alvo esse olhar confirma de forma definitiva o caráter de idealização de tudo isso: a modelo é a própria consumidora idealizada, e que agora está realizada na sua feminilidade.

Não apenas o olhar e o sorriso são testemunhas dessa realização, mas também o céu azul ao fundo, e os cabelos, que já estão secos (limpos) e esvoaçam ao vento.

00:00:18-19

O Outro, o alienus, o deus-mercadoria, o verdadeiro autor da libertação da modelo e da consumidora-alvo, é então re-apresentado e nomeado.

00:00:20

A grife Lacoste, autora do perfume, é apresentada.


A música

Veja a letra inteira da música aqui.

A parte da música de Tom Jones que é reproduzida no vídeo:

Well she always knows her place
She's got style, she's got grace, she's a winner.

She's a Lady. Whoa whoa whoa, she's a Lady
Talkin' about that little Lady, and the Lady (is mine)


As duas palavras finais (is mine) não são reproduzidas porque, dado o contexto do vídeo, estariam provavelmente em contradição com a emancipação da garota, sua transformação em mulher. O perfume mostra-se capaz de conferir à garota a segurança que ela precisa para dizer sim ao desejo, para exercer sua sexualidade sem tabus: o “is mine”, nesse contexto, estaria reconduzindo a mulher à proteção da infância, ao protetorado dos pais (ou de um homem), e portanto ao medo do desejo, à dependência e à insegurança da qual ela, enquanto mulher segura de si e resolvida sexualmente, se libertou.



O fetichismo (reificação) da mercadoria.

O discurso dessa peça publicitária é totalmente emocional, e segue a argumentação periférica (sugestões periféricas) mencionada no capítulo LXXXIV. A mercadoria “apresenta-se” como um Outro, um alienus, que é capaz de transformar a realidade e assegurar ao ego a satisfação dos seus desejos mais íntimos. É no mínimo digno de nota que a garota nem sequer aparece usando o perfume: ele resolve as dificuldades dela pela sua simples presença. Ela nem o toca, o que reforça a sua condição de sujeito (e não de objeto), independente: ele, na sua primeira aparição, não “é apresentado”, não aparece na mão de ninguém, não é enunciado como objeto; ele “se apresenta”, ele é dotado de presença própria, que beira à personalização (tão comum em outras peças publicitárias, que antropoformizam o produto e o fazem “dialogar” com o público-alvo).

Por mais que tenha se emancipado dos pais, e, talvez, até mesmo dos homens, por mais que pareça “dona de si”, a garota continua na dependência de um Outro: a mercadoria, o perfume, que foi o grande autor da emancipação dela. Portanto, essa realização foi parcial, pois dependende de um Outro, um alienus que se enuncia como benção divina, que se apresenta como força externa e irresistível: na sua luta pela emancipação, o ego apenas mudou de senhor.

Se considerarmos que no começo do vídeo a garota já estava protegida pelo “mundo das mercadorias” e que ela consegue a sua emancipação sexual com a “benção” de uma mercadoria, vemos que a presença do fetiche autômato do capital transpassa toda a vida da garota: estamos diante do despotismo do capital. Observamos que as necessidades naturais e sociais da garota são tomadas como ocasião para valorizar o capital (realizar a mais-valia e acumulá-la): a necessidade pela mercadoria é associada e essas outras necessidades já existente, é acoplada a elas (mecanismo já apresentado no capítulo anterior).


Veja também.


Outro anúncio que trabalha com a mesma linha argumentativa: perfume
Nina Ricci.









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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

LXXXIV – Acerca de considerações mais aprofundadas sobre o engodo da publicidade.

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§1984





Esse é, para mim, o melhor texto já postado nesse blog; pelo menos é o que deu mais trabalho (mental e físico) para ficar pronto. Por isso peço a você, leitor que até aqui me acompanhou, que o leia com uma atenção maior que aquela corriqueiramente concedida a esse blog. É improvável que eu poste aqui, no futuro, algo melhor do que isso.

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Pelos teus círculos
vagamos sem rumo
nós almas penadas
do mundo do consumo

De elevador ao céu
pela escada ao inferno:
os extremos se tocam
no castigo eterno.

Cada loja é um novo
prego em nossa cruz.
Por mais que compremos
estamos sempre nus

nós que por teus círculos
vagamos sem perdão
à espera (até quando?)
da Grande Liquidação.


(José Paulo Paes - Ao Shopping Center)

Vender uma pérola que você tem a alguém que a deseja não é fazer negócio, mas vender uma pérola que você não tem a alguém que não a quer, isto, sim é o que eu chamo de fazer negócio. (Divisa dos irmãos Abrahan e Simon Oppenheim, banqueiros europeus, citados por ABREU, 2005, p. 235)



O hiper-real simulado nos fascina porque é o real intensificado na cor, na forma, no tamanho, nas suas qualidades. É um quase sonho. Veja um close do iogurte Danone em revistas ou na TV. Sua superfície é enorme, lustrosa, sedutora, tátil – dá água na boca. O Danone verdadeiro é um alimento mixuruca, mas seu simulacro hiper-realizado amplifica, satura sua realidade. Com isso, somos levados a exagerar nossas expectativas e modelamos nossa sensibilidade por imagens sedutoras. (SANTOS, 2006, p.13)





Já falei alguma coisa sobre a publicidade nesse blog, mas tenho (muito) mais a dizer.

Conforme Manuel Navarro (in NETTO et al, 1986, p. 1142) “o conceito de soberania do consumidor constitui um elemento básico em torno do qual se polarizam as posições sobre a sociedade de consumo.” Os críticos dessa sociedade buscam evidenciar que o indivíduo é manipulado pelos mecanismos ideológicos da sociedade (protagonizados pelo Estado, pela família, pela escola e pela mídia) a fim de torná-lo um eleitor crédulo e esperançoso, um consumidor compulsivo, um trabalhador produtivo e covarde, um receptor passivo, e um pai repressivo e educador para a reprodução do sistema vigente de dominação. Os defensores do establishment enunciam a independência e a racionalidade do indivíduo ante seus semelhantes e ante as instituições sociais. Você não ficará surpreso se eu lhe disser que concordo com os críticos...Afinal, se eu não tivesse nada de ruim para falar sobre a publicidade eu não estaria escrevendo sobre isso nesse blog, não é mesmo? (Nada nesse blog é citado para ser elogiado: ou é para ser criticado ou constitui uma crítica de algo.)

Vamos começar pelo conceito de publicidade e de propaganda. A idéia que essas duas palavras dão é que a função dessa atividade é meramente informativa: tornar pública e propagar uma determinada informação. Mas a coisa não funciona bem assim...Imagine uma peça publicitária em um mundo em que tudo funcionasse como o descrito pelos postulados axiomáticos e reificados do pensamento do mainstream. Nesse mundo a peça publicitária apenas iria fazer considerações puramente racionais sobre as propriedades utilitárias da mercadoria. No mundo real, porém a coisa é bem diferente: há um abuso daquilo que a “ciência” do marketing chama ingenuamente de “sugestões periféricas” (ENGEL, J.F et al, 2000, p. 362): informações estéticas e apelos emocionais. Na mesma página, os autores do livro Comportamento do consumidor (destinado aos profissionais do marketing) admitem implicitamente que quanto mais ingênuo e não-crítico for o consumidor mais facilmente ele será influenciado pelas informações “periféricas” e não pelos argumentos racionais sobre a utilidade da mercadoria vendida:


De acordo com o modelo de probabilidade de elaboração (MPE) desenvolvido por Petty e Cacioppo, a influência exercida por vários elementos da comunicação depende da quantidade de reflexão relevante à questão (esta reflexão é chamada elaboração) que ocorre durante o processamento.
Quando a elaboração é elevada, é seguida a rota central para a persuasão na qual apenas os elementos da mensagem (chamados argumentos) relevantes para formar uma opinião “fundamentada” [isto é: uma opinião racional que confronta uma necessidade existente ex ante com as informações utilitárias obtidas da peça publicitária] são influenciadores. Ao contrário, a rota periférica para a persuasão ocorre sob baixos níveis de elaboração [respostas instintivas e automatizadas, irracionais] à medida que os elementos (chamados [ingenuamente de] sugestões periféricas) que são irrelevantes para desenvolver uma opinião fundamentada tornam-se influenciadores [para a “surpresa” do teórico da ortodoxia]. Tanto os argumentos quanto as sugestões periféricas podem ter efeito sob níveis moderados de elaboração [ou seja: sob o consumidor médio].

A elaboração, por sua vez, depende da motivação e da capacidade da pessoa durante o processamento da mensagem [ou seja: é inversamente proporcional à inteligência e ao espírito crítico do indivíduo]. Uma pessoa motivada e capaz de elaboração segue a rota central. A rota periférica é percorrida quando a motivação ou capacidade está faltando. [que surpresa, não?]



Os mesmo autores desse livro do establishment se dão ao trabalho de teorizar, superficialmente é claro, sobre a seguinte questão: a publicidade cria novas necessidades? Perceba que nós voltamos à questão da autonomia do consumidor: se a publicidade cria necessidades que não existiam, então ela está manipulando o indivíduo com o único fim de lucrar: o indivíduo é enganado por uma relação assimétrica de poder, é convencido a gastar seu suado dinheiro com algo que ele não precisa(va). Em outras palavras, o indivíduo é vítima de estelionato, crime assim definido pelo artigo 171 do Código Penal Brasileiro:


Artigo 171. Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.

E que os autores de Comportamento do consumidor têm a dizer sobre a criação de necessidades? Eles obviamente a negam:


A soberania do consumidor apresenta um desafio formidável [perceba que confissão mais explícita!], mas o marketing pode afetar tanto a motivação quanto o comportamento se o produto ou serviço oferecido for projetado para atender às necessidades e expectativas do consumidor [que são aqui consideradas como uma variável exógena]. Um sucesso de vendas ocorre porque a demanda já existe ou está latente e esperando ativação pela oferta de marketing adequado. [e bota reificação e lógica de abracadabra nisso....]


Na página 270 do mesmo livro os autores retomam rapidamente esse assunto. Dessa fez eles citam um exemplo de um crítico da publicidade, com o fim de depois desmenti-lo. Eles citam um caso em que um autor ilustra a criação de necessidades com um exemplo de uma propaganda que chama a atenção para a halitose matinal e então fornece um produto específico para esse problema. Eis a resposta dos marketeiros:


Afirmamos, em réplica, que uma necessidade desses produtos já existe, muito embora pudesse estar adormecida e em grande parte não-reconhecida; não foi criada pelo profissional de marketing.


A pergunta que eu faria, em tréplica, nesse caso é a seguinte: como era a peça publicitária? Se as coisas fossem tão ingênuas como querem os pensadores do establishment a propaganda seria assim: uma pessoa falando (ou um texto escrito) sem nenhuma conotação emocional ou apelativa apresentaria as propriedades utilitárias do produto, dirigindo-se para aquelas pessoas que sabem, ou desconfiam, que têm esse problema tão desagradável. Mas como funciona a propaganda no mundo real? Assim: contrata-se um casal de modelos que, maquiados, fotoshopados (1) e deitados seminus numa cama dentro de um belo e luxuoso quarto de casal cenográfico, dialogam frases de efeito planejadas friamente por publicitários (auxiliados por psicólogos); no fim do comercial, a moça abandona para sempre seu namorado por que descobre que ele está, nessa manhã específica, com halitose matinal.

Perceba que praticamente todo o efeito persuasivo da peça publicitária está nos chamados elementos periféricos. Perceba que é preciso caricaturizar moralmente a realidade (que também é idealizada esteticamente) para tornar factível essa “necessidade”: quando que, no mundo real, uma mulher vai deixar seu parceiro apenas porque ele apresentou pontualmente halitose matinal? E mesmo que seja todo dia, se for apenas matinal? E mesmo que exista uma mulher assim, que homem vai querer se relacionar com uma pessoa tão fútil? E mesmo que isso aconteça, isso não seria um caso muito particular e restrito para ser veiculado em rede nacional (ou mesmo mundial) como se fosse representativo de uma realidade geral? Perceba que nada disso seria necessário se a propaganda estivesse destinada às pessoas que já sabem que têm halitose matinal e que já passaram por essa situação desagradável: elas, se se sentem mal com esse problema, certamente iriam comprar o produto se apenas fossem informadas fria e racionalmente acerca das propriedades estritamente utilitárias dele, sem qualquer erotização, estetização ou exagero.


A peça publicitária cria uma hiper-realidade - um simulacro - que espetaculariza e glamuriza a vida, criando um ambiente propício à sedução do consumidor pela mercadoria que se quer empurrar para ele. A inversão da prioridade do conteúdo pela forma é A REGRA no marketing e na propaganda, e não a exceção. A palavra "sedução" não é nem um pouco gratuita aqui. O ambiente publicitário está afundado em sexo, porque sexo vende!

Antes de continuar, você pode estar achando que eu estou exagerando com tudo isso. Por isso eu vou lhe mostrar um exemplo concreto: uma propaganda qualquer de desodorante antitranspirante:



Perceba que o processo é basicamente o mesmo descrito por mim anteriormente (há detalhes adicionais que você mesmo pode descobrir): casal de modelos bonitos na praia, a moça deixa o cara apenas e tão somente por causa do excesso de transpiração: existe uma idealização estética e simultaneamente uma caricaturização moral do mundo real, a fim de viabilizar um discurso, essencialmente emocional, que justifique a “necessidade” de se usar a mercadoria.

E como, afinal, a peça publicitária consegue sair de um caso particular e improvável para um caso geral? Como ela convence muita gente a comprar o produto (e não apenas o cara que realmente tem um problema sério de sudorese)? Simples: ela associa a necessidade do produto a uma necessidade já existente anteriormente (nesse caso a necessidade amorosa e de ser aceito socialmente) - e isso é chamado pelos publicitários de técnica associativa (não confundir com mensagem subliminar - esse assunto eu nem estou discutindo aqui). Perceba que a propaganda trabalha para aumentar o medo e a insegurança do indivíduo em si mesmo. E ela apenas consegue invadir a casa do indivíduo e ameaçá-lo, coagi-lo, e intimida-lo porque ela abusa da sua credulidade e da confiança que o indivíduo tem na mídia - que é uma espécie de Ministério da Verdade orwelliano - , na marca e, em alguns casos, também na “personalidade” (pessoa famosa) que garante a legitimidade não só da funcionalidade do produto, mas – e antes – da própria necessidade que o produto visa supostamente a atender. A publicidade não abusa apenas dos vícios do indivíduo (vaidade e desperdício conspícuo, etc.), mas também das suas virtudes (credulidade, confiança, respeito pelo próximo, etc.).

Eis um exemplo qualquer (pois se trata de prática tão comum no mundo da publicidade) de discurso autoritário incitando ao consumo conspícuo:


Vamos fazer uma breve análise desse comercial verdadeiramente genial (pois esconde tanto conteúdo em apenas 27 segundos). Primeiramente, vemos que por "mera causalidade" a frase que o vocalista está cantando é "...jeito que ela não vai esquecer". Esse frase é da música Papo reto (prezer é sexo, o resto é negócio), o verso completo diz Eu vou fazer de um jeito que ela não vai esquecer. Mas, no contexto do vídeo, o que essa frase significa é mais ou menos isso: VOCÊ (o consumidor-alvo) NÃO VAI ESQUECER DESSA MERCADORIA. Depois, o vocalista (que é idolatrado e, portanto, é a autoridade no recinto) interrompe a apresentação (ou seja, interrompe o prazer coletivo, o motivo pelo qual todos estão ali) para repreender verbalmente um indivíduo (que vem a ser o alter-ego do consumidor-alvo do vídeo, e que, por isso mesmo, é personificado por um belo modelo fotográfico masculino, ou seja uma idealização estética do consumidor-alvo) pelo fato de ele não estar consumindo a mercadoria anunciada e consumida ali pelo coletivo. Evidentemente, no muno real, essa reeprensão verbal e pública gera angústia, humilhação e sentimento de culpa no indivíduo (mas, no mundo alternativo vídeo, o rapaz parece pouco desconfortável e contrafeito). O vocalista da banda (a autoridade repressora) aparece então no meio da coletividade junto ao rapaz (alter-ego do consumidor-alvo), oferecendo-lhe e compartilhando gratuitamente com ele da mercadoria que, no mundo real, deve ser adquirida mediante compra pelo consumidor-alvo. Genial. Quase todo conteúdo persuasivo, sedutor, do vídeo sequer é verbalizado. Porém, a fim de reforçar a mensagem o vocalista "pergunta": VOCÊ NÃO VAI FICAR FORA DESSA, VAI? O conteúdo sedutor (elementos periféricos) é apresentado imiscuído às descrições verbais da mercadoria (o que é a promoção, como adquiri-la, etc.). A eficiência dessa peça publicitária é resultado de décadas de progresso das técnicas de construção do discurso publicitário.

Vejamos ainda outro vídeo publicitário de uma outra mercadoria da mesma empresa anunciante do vídeo anterior.




É um belo vídeo. Nele o autoritarismo desapareceu e foi substituído por um mundo alternativo sem problemas (idealizado moral e esteticamente) que é criado pelo poder transformador mágico da mercadoria anunciada. É desnecessário dizer que o líquido no qual os jovens nadam é a própria mercadoria. É digno de nota a predominância da figura masculina nesse vídeo (e, como já seria de se esperar, todos os personagens são esguios e, presumivelmente, saldáveis). Embora haja personagens multiétinicos, não surpreende que o primeiro rapaz a nadar - o líder, o criativo, o desbravador - seja branco, e não negro, japonês ou latino. Aparecem apenas duas moças (uma nos segundos 9, 15, 22 e uma segunda junto à primeira nos segundos 31-32), mas elas não participam do mergulhos. Ou seja, esse mundo idealizado é um mundo que reproduz a segregação da mulher existente no triste mundo real. Talvez a figura feminina não tenha sido usada porque a peça publicitária não apela, como tantas outras, ao corpo como objeto sexual: ora, é justamente esse o papel normalmente reservado à mulher na publicidade. Talvez possamos especular sobre a presença de um homoerotismo no vídeo; todavia, para mim a mensagem inscritas nos corpos masculinos ali exibidos não é uma mensagem homoerótica, mas sim de liberdade (o desnudar-se representa uma liberação das amarras existenciais, prenunciando a reconciliação da humanidade com a natureza) e de jouissance (bem-aventurança física e mental sublime). A predominância masculina é usada para retratar um ambiente de amizade, de fraternidade e liberdade (como anunciado pelo slogan e pela trilha sonora) protagonizado pelo homem e do qual a mulher, reduzida a objeto sexual, não participa. O projeto emancipatório sugerido pelo vídeo é, evidentemente, ilusório. Diante da realidade do despotismo pantagruélico do capital, da exploração de classe, e da reificação da vida humana no capitalismo, o consumidor que busca sua emancipação simbólica mediante a aquisição de uma mercadoria apenas faz aprofundar a sua escravidão ao sistema do qual ele não consegue evadir-se.


Apresento mais dois exemplos de propagandas de desodorantes que reúnem idealização estética (a qual serve de base ao erotismo, o qual por fim degenera em corpolatria) com caricaturização (moral na primeira e fisiológica na segunda) e com associação da necessidade pela mercadoria com as necessidades amorosa, sexual e de aceitação social. Saliento, ainda, que essa duas peças publicitárias foram exibidas no mundo inteiro.







Na página 276 do livro Comportamento do consumidor os autores falam sobre a famosa hierarquia de necessidades de Maslow. Eu não penso que essa hierarquia seja essencialmente falsa (embora me divirta imaginando como psicanalistas e veblenianos, entre outros, nomeariam as mesmas cinco necessidades). Falsa, porém, é a tentativa do mainstream de esgotar a discussão do tema das necessidades humanas com o pensamento insuficiente e mesmo ingênuo de Maslow. O pensamento de Maslow é incompleto justamente na medida em que se ajusta ao mainstream: ao se eximir de endogeneizar as necessidades humanas ao sistema econômico ele confirma o pensamento reificado e axiomático da ortodoxia, que concebe um indivíduo atomizado, apriorístico, racional, maximizador e totalmente independente dos demais indivíduos e das condições sociais, históricas e institucionais nas quais está inserido.

E qual é a hierarquia das necessidades de Maslow? É a seguinte:

1 Fisiológico (fundamentos da sobrevivência).
2 Segurança (preocupação quanto à sobrevivência física, incluindo segurança, abrigo e proteção).
3 Sentido de pertencer (lutar para ser aceito por membros íntimos da família e associados próximos).
4 Estima (lutar para atingir uma posição elevada em relação aos outros, incluindo maestria e reputação).
5 Auto-realização (desejo de saber, entender, sistematizar, organizar e construir um sistema de valores).


Perceba que as peças publicitárias discutidas nessa postagem buscam aproximar suas mercadorias-objeto da terceira necessidade de Maslow: “sentido de pertencer”. Também é interessante salientar que toda a lógica sinistra do “desperdício conspícuo” exposta por Veben em Teoria da classe ociosa pode ser tirada como conseqüência da ingênua necessidade de “estima”, a quarta necessidade de Maslow.

Eliana Tranchesi, a dona da loja Daslu, porém, por não ser acadêmica do mainstream, é muito mais sincera sobre a criação de necessidades (em reveladora entrevista à revista Carta Capital, 2005, p. 34):


O apelo ao consumo é muito grande hoje. Você abre a revista, tem Prada, Gucci, Dolce & Gabbana, todo mundo mostrando uma coisa diferente para você. Essas marcas têm muita força. Fazem exposições, desfiles. Não são marcas quietinhas, como antigamente, que não faziam marketing nenhum, não criavam a necessidade nas pessoas de trocar. Eu me lembro da geladeira na casa do papai... A mesma geladeira a vida inteira. Hoje tem essa cultura de mudança [sem falar na obsolescência programada]. O consumo fica quase obrigatório.



Quanto ao mainstream econômico, ele não têm muita preocupação em "explicar" (justificar) o fenômeno da publicidade e da propaganda: a sua preocupação é quanto à administração eficiente (lucrativa) dessa "ferramenta". Porém, quando ele se põe a titubear sobre o tema, não causa surpresa que tente reduzir a publicidade a um mero distribuidor informacional, concepção congruente ao suposto racionalismo atribuído ao homo oeconomicus. Qualquer aspecto irracional e fetichista aparece, quando muito, de forma vaga e implícita - mas não mais do que isso (PINDYCK; RUBINFELD; 2002, p. 404-405, ênfases adicionadas):


"A propaganda é importante para que os consumidores tomem conhecimento de uma marca e dá a ela uma certa aura e imagem. (...) A demanda de qualquer marca [de sabão para roupa] depende crucialmente da propaganda; sem ela os consumidores disporiam de pouca base para poder escolher entre os fabricantes disponíveis. (...) As vendas [de medicamentos que dispensam receita médica] dependem da identificação do consumidor com determinada marca, o que requer propaganda."


O papel decisivo do desperdício conspícuo e da reificação para o establisment é também salientado pelo vídeo “A história das coisas”, o qual eu recomendo enfaticamente que você assista, se ainda não o fez (aliás, a reificação já está incrivelmente confessada no título do vídeo!). Lá pelos 15 minutos do vídeo somos questionados: qual é o objetivo do anúncio (da peça publicitária) senão nos fazer infelizes com o que temos e nos dizer que podemos ser felizes se formos às compras? Pois é...





Como Annie Leonard salienta acertadamente nesse vídeo, o desperdício conspícuo não desperdiça apenas recursos materiais: desperdiça também a própria vida humana que supostamente dele se beneficia. Como salienta MARCUSE (1967, p. 14) nossa sociedade “é irracional como um todo. Sua produtividade é destruidora do livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas; sua paz, mantida pela constante ameaça de guerra; seu crescimento, dependente da repressão das possibilidades reais de amenizar a luta pela existência – individual, nacional e internacional.” (2)

Todavia, Annie Leonard se equivoca ao afirmar que a lógica do desperdício conspícuo foi criada e planejada após a Segunda Guerra Mundial: se isso fosse verdade, Veblen não teria sido capaz de teorizar sobre o desperdício conspícuo já na década final do século XIX. O que ocorreu na segunda metade do século XX não foi a criação planejada do desperdício conspícuo, mas sim a sua administração científica. As massa não teriam sido tão facilmente seduzidas pelo consumismo se a lógica do desperdício conspícuo já não acompanhasse a humanidade desde tempos imemoriais (segundo Veblen, desde a época da barbárie) e se ela não estivesse, de alguma forma, ligada à dimensão hedonista da natureza humana (e não pense que eu sei o que é natureza humana; esse é, para mim, um conceito extremamente controverso e obscuro).

É claro que os ativistas sociais, e Annie Leonard parece ser uma, preferem fechar os olhos para o fato de que, ontologicamente, as raízes do mal podem ser mais profundas: para eles é mais conveniente simplesmente culpar uma “elite malvada” (e sedenta por lucro) pelos problemas da sociedade, por que assim é mais fácil de se vislumbrar teoricamente a superação do mal combatido por esses ativistas, bem como, em última instância, antever a emancipação humana.




Segundo VEBLEN (1985), com o fim da barbárie e com o desenvolvimento da civilização, a força bruta, como instrumento de dominação, vem progressivamente sendo substituída pela fraude. Para esse pensador, o advogado é o profissional encarregado "exclusivamente dos detalhes da fraude predatória" (p. 130), e eu não tenho dúvidas que Veblen, se tivesse vivido o bastante para testemunhar as práticas estelionatárias da publicidade e do marketing, certamente não teria palavras mais sutis do que essas para se dirigir aos publicitários e aos marketeiros.

Um outro exemplo típico de estelionato na publicidade são aquelas frases que não são propriamente mentiras, mas que induzem ao erro. Por exemplo, "Compre o celular X e ganhe milhões de músicas para baixar grátis". Essa afirmação dá a entender que eu poderia comprar um celular (às vezes anunciado descaradamente como custando apenas R$ 1,00) e então poderia baixar literalmente milhões de músicas grátis. Mas a história real é bem diferente: na verdade, há um banco de dados com milhões de músicas; dessas, o cliente pode baixar apenas, digamos, duas por mês, nos próximos 3 meses (ou seja, no máximo 6), sem cumulatividade; o custo das "músicas grátis" (e do "celular de um real") obviamente já está incluído - decida o cliente baixá-las ou não - no "plano" ao qual o cliente aderiu - plano que também inclui a exigência de que o cliente permaneça preso à empresa por um certo período de tempo (digamos, dois anos); se o cliente romper o contrato, terá que pagar uma multa no valor de x mensalidades, blá, blá, blá, etc. Eu costumo comparar essa promoções sem fim criadas pelas empresas de telefonia a um cassino: as empresas, tal qual um cassino, precisam administrar uma série de jogos, cada um com suas regras, de tal forma que, na média, a empresa sempre saia ganhando (lucrando); por mais atrativo que o jogo pareça para os clientes eles, na média, saem - obviamente - perdendo. A função dessas promoções, com seus asteriscos e "regulamentos no site" é meramente enganar, prometer e não cumprir.

Com relação à política, ela está cada vez mais submetida às estratégias do marketing político, que se baseiam em dois grandes suportes: a televisão e as pesquisas de opinião. O uso instrumental eficiente desses dois suportes é capaz de manipular, (des)orientar e (des)informar o eleitorado. O marketing em geral, e o marketing político em particular, é a desinformação organizada na forma de uma hiper-realidade sedutora. Eu não me esqueço do vídeo (que eu não localizei no YouTube) promocional da "candidata a candidata" a presidência da república Roseana Sarney, veiculado em 2002: quando terminei de assisti-lo, tive vontade de, literalmente, sair correndo e ir votar nela (as eleições, porém, seriam apenas no ano que vem). Isso é ainda mais surpreendente quando se nota que todo o "discurso" do vídeo gira em torno de um único argumento: Roseana Sarney é mulher.

Eu tenho mais um exemplo de propaganda mistificante para citar (e tenho certeza que você não vai se arrepender de conhecê-lo). Lembro de uma bela e idílica peça publicitária da rede de mercados Mercadorama. A peça publicitária (que eu não achei no YouTube) nos mostra funcionários belos, felizes e bem dispostos, prontos para bem atender aos queridos clientes, tudo isso ao som de uma música que cantava, entre outras amenidades, que "todo dia é dia de um mundo mais bonito" e que pedia (ou mandava?) ao cliente: "faça a vida mais gostosa todo dia aqui com a gente". Muito bem! A realidade, porém, é cruelmente outra: a Central Unitária de Trabalhadores do Chile denunciou, em maio de 2007, que operadoras de caixa de uma rede de supermercados do país foram obrigadas a usar fraldas para poderem se abster de ir ao banheiro... (3) Além de ferir a dignidade humana de forma grotesca e inacreditável, essa prática fere também a saúde do trabalhador (que, no mínimo, deve desenvolver assaduras, para as quais, presumi-se, a empresa também se abstem de comprar a Hipoglós, ou alguma marca mais barata), além do meio ambiente, pois lança nele mais fraldas descartáveis totalmente desnecessárias. Todos esses custos são "externalizados", na medida que não são reduzidos a dinheiro e, por isso mesmo, são ignorados pelo onisciente mecanismo de mercado. Obviamente que nada disso ocorreria se o mundo real fosse parecido com o mundo cor-de-rosa retratado pelas peças publicitária veiculadas pelos mercados.


Theodor Adorno, ao discorrer sobre "O fetichismo na música e a regressão [infantilização (4)] da audição" faz algumas considerações sobre a publicidade que eu não poderia deixar de citar aqui (p.91):


A audição regressiva relaciona-se manifestamente com a produção, através do mecanismo de difusão, o que acontece precisamente mediante a propaganda. A audição regressiva ocorre tão logo a propaganda faça ouvir a sua voz de terror, ou seja: no próprio momento em que, ante o poderio da mercadoria anunciada, já não resta à consciência do comprador e do ouvinte outra alternativa senão capitular e comprar a sua paz de espírito (5), fazendo com que a mercadoria ofecerida se torne literalmente sua propriedade. Na audição regressiva o anúncio publicitário assume caráter de coação. Uma fábrica de cerveja inglesa utilizou durante algum tempo, para fins de propaganda, um cartaz que representava uma dessas paredes de tijolos brancos que se encontram com tanta freqüência nos bairros pobres de Londres e nas cidades industriais do norte do país. Colocado com habilidade, o cartaz dificilmente se distinguia de um muro real. No cartaz se via, em cor branca, a imitação perfeita de uma caligrafia desajeitada, com as palavras: What we want is Watney"s. A marca de cerveja era apregoada como slogan político. Tal cartaz não somente permite entender a natureza da propaganda moderna, que transmite às pessoas os seus ditames como se fossem mercadorias, mas também, no caso da firma inglesa, a mercadoria se mascara sob o slogan. O tipo de comportamento que o cartaz sugeria, isto é, que as massas fizessem de um produto que lhe era recomendado o objeto de sua própria ação, se encontra, na realidade, de novo, como esquema da aceitação da música ligeira. Os ouvintes e os consumidores em geral precisam e exigem exatamente aquilo que lhes é imposto insistentemente. O sentimento de impotência, que furtivamente toma conta deles em face da produção monopolista, domina-os enquanto se identificam com o produto do qual não conseguem subtrair-se.


Neste texto Adorno critica veementemente a música fornecida pela indústria cultural (música qualificada por ele de "ligeira"). Ocorre que ele escreveu isso em 1938, antes mesmo da invenção do rock...O que diria ele se vivesse hoje? Se tivesse conhecido uma Christina Aguilera e as outras divas da bitch music? E se tivesse conhecido as boy bands idolatradas pelas gurias retardadas da vida e da morte? (E eu nem preciso lembrar aqui o caráter eminentemente fetichista da idolatria.) Ele provavelmente morreria de tristeza, isso se não se matasse antes. Quanto a nós, é realmente difícil entender completamente a crítica que ele faz, pois, tal qual os vernae romanos (filhos dos escravos: nasciam sem conhecer a liberdade e aprendiam a falar o latim como sua lingua materna), nós já nascemos prisioneiros desse sistema musical criticado por Adorno. As vítimas da indústria musical estão tão presas ao fetichismo que, no fim das contas, elas aceitam qualquer merda que lhes é oferecida. Nas palavras do próprio Adorno (p. 95): "A transferência dos afetos para o valor de troca traz como conseqüência que, em música, já não se faz qualquer exigência."



O uso da ciência justifica na teoria e viabiliza na prática que o consumo desempenhe atualmente, na sociedade pós-moderna, o mesmo papel de conservação social desempenhado pela religião na Idade Média (em outras palavras, o consumo é um novo ópio do povo). Quanto à própria ciência, ela têm o papel de determinar verdades socialmente aceitas, papel também exercido pela religião na Idade Média.

A industria bilionária do marketing e da propaganda, ao mesmo tempo em que não existiria sem a emulação pecuniária e o fetichismo (reificação) da mercadoria, trata de reproduzir sistematicamente essas condições de sua existência, com o fim único de viabilizar a realização da mais-valia produzida para assim fechar mais um ciclo de valorização do capital, aprofundando e ampliando uma ideologia reificada que camufla, justifica – ou mesmo nega – a existência de relações de exploração na sociedade capitalista.



Essa indústria permite uma racionalização (uma administração sistematizada e maximizante) da emulação pecuniária e do fetichismo da mercadoria, com o fim de atender aos ditames do capital, viabilizando um aprofundamento brutal e “democrático” (já que trabalha com a persuasão e não com a coerção física, ou oriunda de algum formalismo legal) do processo pelo qual o capital, em seu movimento perpétuo de auto-mediação, apodera-se cada vez mais de todos os aspectos da vida humana.



 
No capitalismo oligopolista pós-moderno ("sociedade de consumo"), o mundo do consumo de mercadorias é o mundo do prazer e da sedução. Foi inevitável que o capital oligopolista, deixado à própria sorte - livre - em seu movimento de autovaloração, se servisse da sedução no processo de criação planejada da demanda, afundando a mente humana na prisão do fetichismo da mercadoria, destruindo a autonomia e a racionalidade individuais, e levando a humanidade à beira de um apocalipse planetário.

Defendo a utopia da existência de uma publicidade meramente informativa, utilitarista e puritana. Em uma palavra: defendo a proibição da sedução no domínio da publicidade, e a consequente extinção de uma das profissões mais infames, genocidas e suicidas: a de publicitário. A "imprensa livre" seria de fato livre quando financiada principalmente pelos seus próprios consumidores, e por uma publicidade puramente informativa e racional.

P.S. 1: Companheiros (rs), pela primeira vez na história desse país o Governo Federal está promovendo uma Conferência Nacional para discutir essa putaria que é o quarto poder no Brasil. Eu não tenho dúvida nenhuma que essa conferência, tão necessária para o aprofundamento da democracia no país, só vai acontecer porque estamos num governo do PT. A conferência ocorrerá em dezembro de 2009, mas é claro que a “mídia gorda” e oligopolística já está com o mesmo discurso sem-vergonha de sempre, se auto-intitulando representante da “opinião pública” e acusando o controle social do quarto poder de “censura”.
Mais informações sobre a Conferência Nacional de Comunicação em:
O Conselho Federal de Psicologia aproveitou a conferência para discutir vários pontos relacionados ao tema. O Conselho, por exemplo, é favorável À PROIBIÇÃO de propagandas direcionadas às crianças, de propagandas de bebidas alcoólicas, bem como de propagandas que abusem da FIGURA HUMANA; é também, entre outras medidas, favorável ao CONTROLE das propagandas de automóveis, que chegam às raias da idolatria alucinada, estimulando assim o consumo insustentável e irracional de recursos que agridem o meio-ambiente e desorganizam as cidades.

Mais informações sobre essa discussão em:

P.S. 2: Alguns capítulos que podem ser lidos como complementares ao presente texto:




REFERÊNCIAS


ADORNO. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Os Pensadores - Adorno. São Paulo: Nova Cultural, 2005.

ABREU, A. O poder SECRETO! Rio de janeiro: Kranion Editorial, 2005.

Revista CARTA CAPITAL, número 345, de 08/06/2005, página 34.

__________________, número 290, de 12/05/2004, página 12.

ENGEL, J.F; BLACKWELL, D.R; MINIARD, P.W. Comportamento do consumidor. 8 ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e científicos Editora, 2000.

MARCUSE, H. Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1967.

NETTO, A. G. de M. et al. Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1986.

PINDYCK, R.S.; RUBINFELD, D.L. Microeconomia. 5 ed. São Paulo: Prentice Hall, 2002.

SANTOS, J. F. dos. O que é pós-moderno. São Paulo:Brasiliense.

VEBLEN, T. B. A teoria da classe ociosa. In: Os pensadores: Veblen. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985.

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(1) O uso de editores de imagens também é a regra, não a exceção, no mundo mágico da publicidade. Creio que você já tenha visto ao vídeo "Dove evolution"; caso não, é este aqui:







O YouTube tem vários vídeos que mostram como o Fhotoshop é usado para transformar completamente a imagem das pessoas, por exemplo esses aqui:










(2) Enquanto eu lia esse livro no ônibus, reparei que a garota sentada ao meu lado lia um livro também. Nossa! isso já é alguma coisa, não? A maioria das pessoas não tem nem mesmo interesse em ler algo enquanto seu tempo se esvai dentro do transporte coletivo. Eu olhei melhor e descobri o que ela estava lendo: o livro Crepúsculo. HAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!!!!!! Infernooooo! Daí eu, do alto da minha ingenuidade, me perguntei: como seria um mundo no qual os livros de um Marcuse fossem best-sellers e fossem vendidos até no super-mercado? Eu estava lendo uma edição de 1967 porque foi a única que eu encontrei num sebo...ou seja: um livro fundamental desses não é mais editado porque ninguém quer lê-lo; as pessoas querem fugir da realidade, e não se afundar nela.

(3) Essa notícia pode ser lida em vários sites, entre eles:



Eis uma outra notícia grotesca, embora menos sórdida, envolvendo o “fascinante” mundo do trabalho: Cerca de 15 estações ferroviárias de Tókio estão instaladas com máquinas especiais que têm a função de medir a curvatura dos sorrisos dos funcionários de uma empresa de trens do país. Quem não estiver sorrindo "adequadamente" receberá uma advertência para que seja mais “simpático” (ou hipócrita?) com os usuários e fique com o semblante menos sério. Agora o sorriso, também ele, é obrigatório. Confira em:


(4) Essa infantilização é caracterizada pelo predomínio de comportamentos e preferências nos quais a dimensão irracional-sensorial têm predomínio sobre a racional-intelectual. O indivíduo infantilizado até já tem um nome pop: kidult. Mas ele também é conhecido por outros nomes, como por exemplo "adulto infantilizado" (da psicanálise) ou "homem sério" (do existencialismo).

(5) Esse é o clássico mecanismo da realização do desejo: quando se consegue o objeto de desejo o que realmente se consegue é uma momentânea paz de espírito, gerada pela supressão do sofrimento causado pelo desejo. Na sociedade de consumo de massa essa lógica do desejo é manipulada cientificamente a fim de incitar os consumidores a fazerem compras por impulso, por pura irracionadade: destarte, essa sociedade está eivada de sofrimento. Sabendo-se disso, não surpreende que Annie Leonard nos relate o aumento da infelicidade como o “progresso” observado na economia mundial na segunda metade do século XX. Como confirma a revista Carta Capital de 12/05/2004, n° 290, p. 12, nos EUA “o nível de felicidade não aumentou nos últimos 50 anos, apesar do avanço econômico: a renda per capita dos americanos [estadunidenses] é de US$ 39 mil e o Produto Interno Bruto (PIB) bateu em US$ 10,4 trilhões em 2003. Apenas 30% do americanos se dizem totalmente satisfeitos com a vida que levam, enquanto 58% se declaram ‘razoavelmente felizes’”. Segundo a mesma reportagem, “de acordo com uma pesquisa internacional sobre valores socioeconômicos, a World Values Survey, 72% dos brasileiros disseram-se satisfeitos com a vida. Não por acaso, segundo a mesma pesquisa, a nação mais feliz do mundo é a Nigéria”. Impossível não lembrar de Epícteto: “Não é a pobreza que causa a dor, mas sim a cobiça.”





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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.