sábado, 14 de novembro de 2009

### 27 - Significação da publicidade (à guisa de adendo ao capítulo LXXXIV).

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1. O imperativo e o indicativo publicitário.

A publicidade tem como tarefa informar as características deste ou daquele produto e promover a sua venda. Esta função "objetiva" resta em princípio sua função primordial (1).

Da informação, a publicidade passou à persuasão [persuasão racional, utiitarista], depois à "persuasão clandestina" (Vance Packard) [persuasão emocional, baseada em "informações periféricas"], visando agora a um consumo dirigido: temo-nos amendrontado ante a ameaça de condicionamento totalitário do homem e suas necessidades. Ora, pesquisas mostraram que a força de impregnação publicitária era menor do que se pensava. Rapidamente se verifica uma reação por saturação (as diversas publicidades se neutralizam umas às outras ou cada uma por seus excessos). Por outro lado, a injunção e a persuasão levantam todas as espécies de contra-motivações e de resistência (racionais ou irracionais: reação à passividade, não se quer ser "possuído", reação à ênfase, à repetição do discurso, etc.), em suma, o discurso publicitário dissuade ao mesmo tempo que persuade e daí parece que o consumidor é, senão imunizado, pelo menos um usuário bastante livre da mensagem publicitária.

Isto dito, a função explícita da publicidade não nos deve enanar: se ela não persuade o consumidor quanto a certa marca precisa (Omo, Simca ou Frigidaire), o faz quanto a outra coisa mais fundamental para a ordem da sociedade inteira. Omo ou Frigidaire não passam de álibis para esta função.

Assim como a função do objeto pode, por fim, não passar de um álibi para as significações latentes que impõe, assim também na publicidade - e com tanta maior ampliação por se tratar de um sistema de conotação mais puro - o produto designado (sua denotação, sua descrição) tende a não passar de um álibi, sob a evidência do qual se desenvolve toda uma confusa operação de integração.

Se mais a mais resistimos ao imperativo publicitário, por outro lado, em sentido inverso, nos tornamos mais sensíveis ao indicativo da publicidade, ou seja, à sua própria existência enquanto segundo produto de consumo e evidência de uma cultura. É nesta medida que "acreditamos" nela; o que nela consumimos é o luxo de um sociedade que se dá a ver como instância distribuidora de bens e que se "ultrapassa" numa cultura. Recebemos ao mesmo tempo uma instância e uma imagem.


2. A lógica do Papai Noel.

Os que negam o poder de condicionamento da publicidade (e dos mass media em geral) não descobriram a lógica particular de sua eficácia. Não mais se trata de uma lógica do enunciado e da prova, mas sim de uma lógica da fábula e da adesão. Não se acredita, deixa-se entretanto que ela fique perto. No fundo, a "demonstarção" do produto não persuade ninguém: serve para racionalizar a compra, que, de todo modo, precede ou ultrapassa os motivos racionais. Sem "acreditar" neste produto, acredito, porém, na publicidade que me deseja fazer crer. É a história do Papai Noel: as crianças não mais se perguntam sobre sua existência e não relacionam esta existência com os presentes que recebem como se se tratasse de um jogo de causa e efeito. A crença no Papai Noel é uma fabulação racionalizante que permite preservar na segunda infância a relação miraculosa de gratificação pelos pais (e mais precisamente pela mãe), que caracteriza as relações da primeira infância. Esta relação miraculosa, completada pelos fatos, interioriza-se numa crença que é seu prolongamento ideal. A ficção não é artifial, pois se funda no interesse recíproco que as duas partes mantém no sentido de preservar aquela relação. O Papai Noel em tudo isso não tem importância e a criança nele só acredita porque no fundo não tem importância. O que ela consome atrasés desta imagem, desta ficção, deste álibi - e em que acreditará mesmo quando deixar de crer - é o jogo da solicitude miraculosa dos pais e os cuidados que estes assumem em ser cúmplices da fábula. Os presentes apenas sancional tal compromisso (2) [além, é claro, de realizarem a mais-valia].

A operação publicitária é do mesmo tipo. Nem o discurso retórico, nem o discurso informativo acerca das virtudes do produto têm efeito decisivo sobre o comprador. O indivíduo é sensível à temática latente de proteção e de gratificação, ao cuidado que "se" tem de solicitá-lo e persuadi-lo, ao signo, ilegível à consciência, de em alguma parte existir uma instância (no caso social, que remete diretamente à imagem materna) que aceita informá-lo sobre seus próprios desejos, adverti-los e racionalizá-los a seus próprios olhos. Ele não "acredita" na publicidade mais do que a criança no Papai Noel. O que não o impede de aderir da mesma maneira a uma situação infantil interiorizada e de se comportar de acordo com ela. Daí a eficácia bem real da publicidade, segundo uma lógica que, embora sem ser a do condicionamento-reflexo, não é menos rigorosa: a lógica da crença e da regressão (3).


3. Gratificação e repressão: a dupla instância.

Precisamos ouvir através desta doce litania do objeto o verdadeiro imperativo da publicidade. "Veja como a sociedade não faz mais do que se adaptar a você a a seus desejos. Portanto, é razoável que você se integre nesta sociedade." A persuasão, como diz Packard, faz-se clandestina, mas não visa tanto à "compulsão" da compra e ao condicionamento pelos objetos, quanto à adesão ao consenso social que este discurso sugere: o objeto é um serviço, é uma relação pessoal entre você e a sociedade. Que a publicidade se organize a partir da imagem maternal ou a partir da função lúdica, de qualquer modo ela visa a um mesmo processo de regressão aquém dos processos sociais reais de trabalho, de produção, de mercado e de valor [ou seja, visa a reproduzir a reificação], que poderiam perturbar a esta miraculosa integração: este objeto, o senhor não o comprou, o senhor sim emitiu o seu desejo e todos os engenheiros, técnicos, etc., com ele o gratificaram. Numa sociedade industrial, a divisão do trabalho já dissocia o trabalho do seu produto. A publicidade coroa este processo, dissociando radicalmente, no momento da compra, o produto do bem de consumo: intercalando entre o trabalho e o produto do trabalho uma vasta imagem maternal faz com que o produto não seja mais considerado como tal (com sua história, etc.), mas pura e simplesmente como bem, como objeto [trata-se da temática da reificação]. Ao mesmo tempo que dissocia, no mesmo indivíduo, produção e consumo, graças à abstração maternal de um sistema muito diferenciado de objetos, a publicidade se afana, em sentido inverso, em recriar uma confusão infantil entre o objeto e o desejo do objeto, em retornar o consumidor ao estágio em que a criança confunde a mãe com o que ela lhe dá.

De fato, a publicidade não omite tão cuidadosamente os processos objetivos, a história social dos objetos senão para, através da instância social imaginária, melhor impor a ordem real de produção e de exploração. É aí que se precisa escutar, atrás da psicagogia publicitária, a demagogia e o disrcurso político, a tática deste discurso que, ainda neste plano, repousa sobre um desdobramento: o da realidade social em uma instância real e em uma imagem - a primeira se diluindo atrás da segunda, tornando-se ilegível e só dando vez a um esquema de absorção na ambiência maternal. Quando a publicidade em substância lhe propõe: "A sociedade adapta-se totalmente a você, integre-se totalmente nela", é claro que a reciprocidade é falsificada: é uma instância imaginária que se adapta a você, enquanto que, em troca, você se adapta a uma ordem bem real. Através da poltrona "que se adapta às formas do seu corpo", você esposa e se responsabiliza por toda a ordem técnica e política da sociedade. A sociedade se faz maternal para que melhor preserve uma ordem de coerção (4). Vemos por aí o imenso papel político que desempenham a difusão dos produtos e as técnicas publicitárias: asseguram propriamente a substituição das ideologias anteriores, morais e políticas. Melhor ainda: enquanto que a integração moral e política não se exercita sem problemas (necessitava lançar mão da repressão aberta), as novas técnicas economizam a repressão: o consumidor interioriza, no próprio movimento de consumo, a instância social e suas normas.

[Exemplo disso: Volkswagen Polo 'Cool' Commercial



A "rebeldia sem causa" (basta verificarmos como a sociedade de 50 anos atrás era muito mais machista, autoritária, patriarcal, teocrática e truculenta para percebemos que eles tinham muitas "causas" para serem rebeldes) dos jovens dos anos 1950 (início da Pós-Modernidade) contrasta com o bom-mocismo sem sal do jovem consumidor domesticado do início do século XXI. Eis o "progresso moral" propiciado pelo consumo de massas e pelo fim das "grandes causas" e das utopias questionadoras da ordem capitalista, tudo isso em paralelo ao aprofundamento do processo de subsunção do capital no ser social, processo que se erige ideologicamente como fatalidade histórica contra a qual qualquer resistência está condenada ao fracasso .]

Esta eficácia é reforçada pelo próprio estatuto do signo publicitário e pelo seu processo de "leitura".

Os signos publicitários nos falam dos objetos, mas sem explicá-los em vista de uma praxis (ou muito pouco): de fato remetem aos objetos reais como um mundo ausente. São literalmente "legenda", ou seja, põem-se aí para que sejam lidos. Se não remetem ao mundo real, tampouco o substituem exatamente: são signos que impõem uma atividade específica, a leitura. [Exemplo: na propaganda de absorvente, o sangue menstrual é azul como o céu primaveril.]

Se veiculassem uma informação, haveria leitura plena e transição para o campo prático. Mas desempenham outro papel: o de prova de ausência do que designam. Nesta medida, a leitura, não transitiva, organiza-se em um sistema específico de satisfação, no qual, entretanto, aparece sem cessar a determinação de ausência do real: a frustração.

A imagem cria um vazio, visa a uma ausência. Por isso é "evocadora". Mas é um subterfúgio. Provocando um investimento, ela o corta ao nível da leitura. Faz convergir as veleidades flutuantes sobre um objeto que mascara, ao mesmo tempo que o revela. Ela engana, sua função é mostrar e enganar. O olhar é presunção de contato, a imagem e sua leitura são presunção de posse. A publicidade assim não oferece nem uma satisfação alucinatória, nem uma mediação prática para o mundo: a atitude que suscita é a de veleidade enganada - empresa inacabada, surgir contínuo, engano contínuo, auroras de objetos, auroras de desejos. Todo um rápido psicodrama se desenrola na leitura da imagem. Ele, em princípio, permite ao leitor assumir sua passividade e transformar-se em consumidor. De fato, a profusão de imagens é sempre usada para, ao mesmo tempo, elidir a conversão para o real, para alimentar sutilmente a culpabilidade por uma frustação contínua, para bloquear a consciência mediante uma satisfação sonhadora. No fundo, a imagem e sua leitura não são de modo algum o caminho mais curto para um objeto, mas sim para uma outra imagem. Assim se sucedem os signos publicitários como as auroras de imagens nos estados hipnagógicos.

Precisamos reter bem esta função de omissão do mundo na imagem, função de frustação. Somente isto nos permite compreender como o princípio de realidade omitido na imagem nela, entretanto, transparece eficazmente como repressão contínua do desejo (sua espetacularização, seu bloqueio, sua decepção e, finalmente, sua transferência regressiva e derrisória num objeto). Será aqui que apreendemos o acordo profundo do signo publicitário com a ordem global da sociedade: não é mecanicamente que a publicidade veicula os valores desta sociedade, é, mais sutilmente, por sua função ambígua de presunção - algo entre a posse e a ausência de posse, ao mesmo tempo designação e prova de ausência - que o signo publicitário faz passar a ordem social em sua dupla determinação de gratificação e repressão (5).

Gratificação, frustação: as duas vertentes inseparáveis da integração. Sendo legenda, cada imagem dissipa a polissemia angustiante do mundo. Mas, para ser legível, ela se faz pobre e expedita - ainda suscetível de muitas interpretações, restringe seu sentido pelo discurso que a subintitula, como uma segunda legenda. E, sob o signo da leitura, sempre remete a outras imagens. A publicidade, por fim, tranqüiliza as consciências por uma semântica social dirigida, em último termo, por um único significado, que é a própria sociedade global. Esta assim se reserva todos os papéis: sucita uma multidão de imagens, cujo sentido, por outro lado, esforça-se em reduzir. Suscita a angústia e a acalma. Cumula e engana, mobiliza e desmobiliza. Sob o signo da publicidade, instaura o reino de uma liberdade do desejo. Mas nela o desejo nunca é efetivamente liberado - seria o fim da ordem social - o desejo só é liberado na imagem e em doses suficiente para provocar os reflexos de angústia e de culpabilidade ligados à emergência do desejo. Aliciada pela imagem, mas enganada e culpabilizada também por ela, a veleidade de desejo é recuperada pela instância social. Profusão de liberdade, contudo imaginária, contínua orgia mental, contudo orquestrada, regressão dirigida em que todas as perversidades são resolvidas em favor da ordem: se, na sociedade de consumo, a gratificação é imensa, a repressão é também enorme; recebemo-las conjuntamente na imagem e nos discursos publicitários, que fazem o princípio repressivo da realidade atuar no próprio coração do princípio de prazer.




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(1) Não esqueçamos porém que as primeiras publicidades diziam respeito às poções milagrosas, aos remédios de senhoras idosas e outros truques: informação, por conseguinte, porém das mais tendenciosas.

(2) Os placebos são substâncias neutras que os médicos administram aos doentes psicossomáticos. Não é raro que estes doentes se restabeleçam tanto por causa de tal substância inativa quanto por efeito de um medicamento real. Que integram, que assimilam estes doentes através dos placebos? A idéia da medicina + a presença do médico. A mãe e o pai ao mesmo tempo. Ainda neste caso a crença lhes ajuda a recuperar uma situação infantil e a resolver regressivamente um conflito psicossomático.

(3) Seria necessário ampliar esta análise para as comunidades de massa em geral, mas não é este o lugar oportuno.

(4) Por detrás deste sistema de gratificação, vemos ademais reforçarem-se todas as estruturas de autoridade: planificação, centralização, burocracia - partidos, Estados, aparelhos reforçam sua dominação a partir desta vasta imagem maternal que toram cada vez menos possível a contestação real.

(5) Esta análise é transponível no sistema dos objetos. É porque o objeto é ambíguo, é por não ser apenas um objeto, mas sempre, ao mesmo tempo, prova de ausência da relação humana (assim como o signo publicitário é prova de ausência de objeto real), que o objeto pode, também ele, desempenhar um papel potente de integração. A especificidade prática do objeto, contudo, faz a prova de ausência do real seja aí menos acisada que no signo publicitário.



(Jean Baudrillard, no livro "O sistema de objetos")





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Um comentário:

Anônimo disse...

você quer matar o visitante do seu blog né
esse fundo preto com essas letras fluorecente cara ta ruim demais ainda mais pra quem tem problemas de vista