sábado, 27 de fevereiro de 2010

### 31 - Perdendo dentes (Pato fu).

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Perdendo Dentes
Pato Fu
Composição: John/Fernanda Takai


Pouco adiantou
Acender cigarro
Falar palavrão
Perder a razão

Eu quis ser eu mesmo
Eu quis ser alguém
Mas sou como os outros
Que não são ninguém

Acho que eu fico mesmo diferente
Quando eu falo tudo o que penso realmente
Mostro a todo mundo que eu não sei quem sou
Eu uso as palavras de um perdedor

As brigas que ganhei
Nem um troféu
Como lembrança
Pra casa eu levei

As brigas que perdi
Estas sim
Eu nunca esqueci
Eu nunca esqueci

Pouco adiantou
Acender cigarro
Falar palavrão
Perder a razão

Eu quis ser eu mesmo
Eu quis ser alguém
Mas sou como os outros
Que não são ninguém

Acho que eu fico mesmo diferente
Quando eu falo tudo o que penso realmente
Mostro a todo mundo que eu não sei quem sou
Eu uso as palavras de um perdedor

As brigas que ganhei
Nem um troféu
Como lembrança
Pra casa eu levei

As brigas que perdi
Estas sim
Eu nunca esqueci
Eu nunca esqueci

As brigas que ganhei
Nem um troféu
Como lembrança
Pra casa eu levei

As brigas que perdi
Estas sim
Eu nunca esqueci
Eu nunca esqueci


Disponível em: http://letras.terra.com.br/pato-fu/30235/






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sábado, 20 de fevereiro de 2010

XCVI - Acerca de esboços de considerações sobre o conflito entre ideal e real enquanto discursos e da relação desse conflito com o ego.

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§ 96






1. Ao que me parece, toda crítica do real pressupõe um ideal.
1.1. Aquilo que “é” é contraposto ao que “deveria ser”.
1.1.1. Deixe-se claro que o ideal tratado aqui não é uma realidade suprasensível, mas sim, e pelo contrário, um imaginário alimentado pelo desejo.

2. Praticamente todas as filosofias se preocupam em criticar o real, pelo menos até a ascensão do pós-modernismo (se bem que podemos considerar como ideal emancipatório do pós-modernismo a ruptura definitiva com o projeto iluminista). Há também a exceção das vertentes que adotam algum tipo de pragmatismo.
2.1. Esse processo de crítica passa tanto pela construção do real quanto pela construção do ideal.
2.2 A crítica e a superação do real então surgem como uma conseqüência teleológica do contraste entre os constructos do real e do ideal.
2.2.1. Tudo como se ambos, real e ideal, não fossem, em última instância, construções arbitrárias da linguagem, baseadas em sentimentos, interesses pessoais, e intuições parciais da totalidade (que em si nunca é intuída).

3. Esse método (ou artifício?) argumentativo aparece recorrentemente na filosofia (para não falar do senso-comum, dos “formadores de opinião”, e das teorias da conspiração - as quais ainda serão tratadas mais a fundo num próximo capítulo). Kant, Schopenhauer, Nietzsche, Marx, todos eles o usaram.

4. Mas de onde vem o ideal? De onde vem a concepção de como o mundo “deveria ser”?
4.1. Da insatisfação do indivíduo.
4.2. E porque o indivíduo fica insatisfeito?
4.2.1. Porque ele não se ajusta à realidade. Porque ele não tem o que quer, porque o mundo não satisfaz ao seu ego, porque o princípio de prazer não se curvou ao princípio de realidade.
4.2.1.1 É importante salientar que todo desejo individual é alimentado pelo imaginário coletivo (e, portanto, social), e é mesmo difícil de conceber a desejabilidade de algo sem esse imaginário.(1)

5. A construção do ideal é uma forma de transpassar o real enquanto cultura, é uma forma de mudá-lo e curvá-lo às pretensões individuais, nem que imaginariamente. (O caso de Schopenhauer é um exemplo clássico disso)
5.1. A construção do ideal, enquanto discurso enunciado, ocorre concomitantemente à construção do próprio real enquanto discurso enunciado. A totalidade é “filtrada”, dela são selecionados apenas alguns aspectos, que servirão para racionalizar o real e a sua ultrapassagem pelo ideal.
5.1.1 Real e ideal, ambos são mediados pelo desejo, pela imaginação e pela linguagem. De certa forma, ambos são construídos, enquanto discurso, conjuntamente: a realidade só nos preocupa no momento que não nos satisfaz; quando isso ocorre, buscamos uma forma de superá-la. E para superá-la temos que saber o que ela é. (2)

6. Ao transpassar o real enquanto cultura, o indivíduo se reconcilia consigo mesmo, com seu ego ferido por um mundo em relação ao qual ele se recusa a se curvar.
6.1 Além disso, o indivíduo se afirma e se conforta pela promessa de uma vitória sobre o real (“o sistema”, “o mundo”, “as pessoas”, “o capitalismo”, “o demônio”, “o mal”, etc.), com sua transformação no ideal num futuro. Essa promessa é a garantia imaginária da vitória do indivíduo sobre o real, mediante o ideal.

7. Novamente, tudo isso é bastante visível na história da filosofia. Schopenhauer, Marx e Nietzsche são casos que eu conheço mais de perto.
7.1. Por exemplo, podemos salientar a escatologia subjacente ao discurso de alguns filósofos.
7.1.1. Kant: o imperativo categórico levando ao supremo bem.
7.1.2. Hegel: a evolução dialética levando o Espírito ao absoluto.
7.1.3. Schopenhauer: a aniquilação universal por meio da negação humana do querer-viver.
7.1.4. Nietzsche: o além-do-homem, a transvaloração dos valores e, na falta dos dois, o próprio eterno retorno.
7.1.5. Marx: a evolução dialética da sociedade determinada material e historicamente levando ao comunismo (estado de bem-aventurança caracterizado pelo fim das classes sociais e, portanto, pelo fim da própria história, e no qual a máxima vigente é "de cada um conforme a sua capacidade e a cada um conforme a sua necessidade"). .
7.2. A crença nesse sonho de transformação do real fortalece ainda mais o ego do indivíduo, reafirmando a vitória, para o indivíduo, do princípio do prazer sobre o princípio de realidade.
7.2.1. Um exemplo bem característico são aquelas feministas que nutrem a esperança num mundo futuro utópico no qual existam apenas mulheres, e no qual o sexo masculino foi eliminado porque não mais necessário para a reprodução humana.


8. Com relação ao “anseio pela realidade”, que não raro degenera em delírios (como é tão comum nos “donos da verdade” com os quais nos defrontamos diariamente), lembrei que, para Foucault, a vontade de saber está intimamente ligada à vontade de poder.
8.1. Assim, um “delírio de realidade” pode ser uma estratégia para construir um “delírio de poder”, e, destarte, satisfazer à vontade de poder individual, tão castigada no cotidiano medíocre e mecânico no qual a maioria das pessoas está inserida. E, o que é essencial para formar esse delírio é a falta de auto-crítica: como disse a Tiburi, num artigo que li na CULT, a falta de autocrítica é a estupidez fundamental (e creio que dessa estupidez eu não sou vítima).
8.2. Cabe ainda salientar o papel que o sentido de realidade (seja delirante ou não) exerce na homeostase psíquica individual e também coletiva.
8.3. É necessário, ainda, também analisar a psicologia e a sociologia dos grupos e das instituições que mantém essas verdades prontas e acabadas, já que é raro ver um indivíduo construir seu “delírio de realidade” sozinho (o que só é feito por alguns gênios e alguns outsiders, além é claro dos loucos). Pelo contrário, o real e o ideal enquanto discursos são em geral construções sociais, grupais, institucionais.
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(1) “(...) cada desejo, seja o mais íntimo, ainda visa ao universal. Desejar uma mulher, é subentender que todos os homens são suscetíveis de desejá-la. Nenhum desejo, nem mesmo sexual, subsiste sem a mediação de um imaginário coletivo. Talvez não possa sequer emergir sem este imaginário: seria imaginável que se pudesse amar uma mulher de que se estivesse certo que nenhum homem do mundo seria capaz de desejá-la?” (Jean Baudrillard, no livro "O sistema de objetos’”).

(2) Embora o jovem Marx pareça negar isso na última tese ad Feuerbach ("Os filósofos se limitam a interpretar o mundo de diferentes formas; mas o que importa é transformá-lo), o Marx da fase madura escreveu as três mil páginas d'"O Capital".




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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

XCV - Acerca de uma observação neomalthusiana mordaz realizada por uma professora municipal em diálogo com um de seus alunos - Flashback # 10.

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Um dia de aula numa escola municipal em Curitiba. Ano 1999. Numa aula de ciências da oitava série. Aquele ambiente deprimente de escola pública...Eu não vou mentir para você, eu acho a pobreza feia. Se fosse uma escola privada eu iria dizer que era burguesa, cheia de filhinhos de papais frescos que nunca sofreram de verdade, que não conhecem a privação, e que por isso mesmo são fúteis. E será que eu não sou fútil também? E que diferença isso faz? De qualquer jeito, eu ia reclamar e criticar. Mesmo porque eu não escrevo nada elogioso nesse blog (a não ser para elogiar críticos e suas críticas).

Thomas Robert Malthus (Rookery, perto de Guildford, 14 de Fevereiro de 1766 — Bath, 23 de Dezembro de 1834) foi um economista britânico.
Filho de um culto e rico proprietário de terras, amigo deHume e Rousseau, terminou os estudos no Jesus Colledge de Cambridge a partir de 1784, onde obteve um posto em 1793. Tornou-se pastor anglicano em 1797 e, dois anos depois, inicia uma longa viagem de estudos pela Europa. Casou-se em 1804 e, por isto, abandonou o posto de pastor.
Em 1805, foi nomeado professor de história e de economia política em um colégio da Companhia das Índias, emHaileybury.
Sua fama decorre dos estudos sobre a população, para ele o excesso populacional era a causa de todos os males da sociedade (população cresce em progressão geométrica e alimentos em progressão aritmética), tudo isto estão contidos em dois livros conhecidos como Primeiro ensaio e Segundo ensaio: "Um ensaio sobre o princípio da população na medida em que afeta o melhoramento futuro da sociedade, com notas sobre as especulações de Mr. Godwin, M. Condorcet e outros escritores" (1798) e "Um ensaio sobre o princípio da população ou uma visão de seus efeitos passados e presentes na felicidade humana, com uma investigação das nossas expectativas quanto à remoção ou mitigação futura dos males que ocasiona" (1803).
Tanto o primeiro ensaio - que apresenta uma crítica ao utopismo - quanto o segundo ensaio - onde há uma vasta elaboração de dados materiais - têm como princípio fundamental a hipótese de que as populações humanas crescem em progressão geométrica. Malthus estudou possibilidades de restringir esse crescimento, pois os meios de subsistência poderiam crescer somente em progressão aritmética. Segundo ele, esse crescimento populacional é limitado pelo aumento da mortalidade e por todas as restrições ao nascimento, decorrentes da miséria e do vício.
Suas obras exerceram influência em vários campos do pensamento e forneceram a chave para as teorias evolucionistas de Darwin e Wallace. Os economistas clássicos como David Ricardo, incorporaram o princípio da população às suas teorias, supondo que a oferta de força de trabalho era inexaurível, sendo limitada apenas pelo fundo de salários.
Para Malthus, assim como para seus discípulos, qualquer melhoria no padrão de vida de grande massa é temporária, pois ela ocasiona um inevitável aumento da população, que acaba impedindo qualquer possibilidade de melhoria. Foi um dos primeiros pesquisadores a tentar analisar dados demográficos e econômicos para justificar sua previsão de incompatibilidade entre o crescimento demográfico e à disponibilidade de recursos. Apesar de ter assumido popularmente que as suas teses deram à Economia a alcunha da ciência lúgubre (dismal science), a frase foi na verdade cunhada pelo historiadorThomas Carlyle em referência a um ensaio contra a escravatura escrito por John Stuart Mill.
Seus dois ensaios estão permeados de conceitos cristãos, como os de mal, salvação e condenação.
Escreveu também: Princípios de economia política (1820) e Definições em economia política (1827).
Em suas obras econômicas, Malthus demonstrou que o nível de atividade em uma economia capitalista depende da demanda efetiva, o que constituía, a seus olhos, uma justificativa para os esbanjamentos praticados pelos ricos. A idéia da importância da demanda efetiva seria depois retomada por Keynes.
Thomas Maltus representa o paradigma de uma visão que ignora ou rebaixa os benefícios da industrialização ou do progresso tecnológico. Ernest Gellner afirma em Pós-modernismo, razão e religião: "Previamente, a Humanidade agrária vivia num mundo Malthusiano no qual a escassez de recursos em geral condenava o homem a apertadas formas sociais autoritárias, à dominação portiranos, primos ou ambos".
Para o autor, a diferença entre as classes sociais era uma conseqüência inevitável. A pobreza e o sofrimento eram o destino para a grande maioria das pessoas.

Eu já estou ficando cansado desse blog, por isso decidi usar essa postagem para fazer algo um pouco diferente do que eu tinha planejado. Essa postagem já está na minha lista de postagens desde 2008, eu fiquei enrolando e até agora não escrevi nada. Pensei em jogá-la fora (como fiz com tantas outras), mas não joguei. E então eu me peguei agora (dia 12/02/10, 22h11) tendo que escrever esse texto até a 01:35 do próximo sábado. Mas é claro que eu espero terminar isso em cinco minutos, pois não estou com vontade de escrever. Aliás, já faz alguns meses que eu decidi abandonar a vida de pseudo-intelectual. Mas isso não se muda de um dia para o outro. Vou fazer uma mudança gradual. Hoje eu contei quantos livros há na minha biblioteca particular: são 311. Chega de comprar livros! Pelo jeito eu levarei a vida inteira para ler os que já comprei, isso se for realmente lê-los. Não que eu não queira, não que eu já não tenha lido muitos deles. Mas, depois de 9 anos nessa vida de pseudo-intelectual, eu já estou meio cansado. Não é isso que eu quero para a minha vida; eu lembro de uns sujeitos curvados, carrancudos, maquinais, que ficam o dia todo estudando nas bibliotecas da faculdade, que já se tornaram “móveis e utensílios”, e eu não quero ser assim, como eles, daqui a vinte anos. Não que eu possa mudar completamente, mas eu me vejo indo por esse caminho, e não quero continuar a segui-lo. Talvez eu seja fútil demais para segui-lo, talvez eu saiba que não vale a pena desperdiçar minha vida nisso. Talvez eu já saiba que não capaz de seguir esse caminho, talvez a falta de capacidade seja uma desculpa barata para uma atitude motivada por outras razões.

Duan: “Como 'o sistema' funciona? Qual é o 'saldo afetivo' da totalidade existêncial? Afinal, para que tudo isso? A vida vale a pena ser vivida? O que é existir? O que é 'estar no mundo'? Que diferença isso faz? Por que eu insisto em formular perguntas que eu sei que não posso responder? “

Conrado: “Eu devo me importar com algo? Com o mundo? Com os pobres? Com as outras pessoas? Comigo mesmo? Será que isso realmente importa? Se não há catexia libidinal, não faz diferença alguma...Por enquanto eu 'vou levando'...E daí? Até quando? E qual a diferença? Ah..., esquece...”

Duan:
-"Por que eu deveria me importar?"
-"Por que você se importa?"
"POR QUE eu me importo? Com o que eu devo me importar? Se eu sei a resposta...como vivê-la?”

Conrado: “Você vai ter que se posicionar com relação a isso. Na dúvida, jogue na moeda...Não faz diferença mesmo. Mas eu preciso de um posicionamento! E rápido que a minha paciência já está se esgotando.”

Duan: “'O estado de dúvida não é muito confortável, mas o de certeza é ridículo.' Voltaire. Eu sei o que eu tenho que fazer...eu preciso me tornar um oportunista, um egocêntrico. Preciso esquecer os ideais da virtude, da justiça, da verdade, e até o da beleza. O único ideal que deve importar sou eu mesmo. Eu sei que os outros não vão gostar de saber disso, mas eles não precisam saber! E a opinião deles não importa, a menos que os seus atos me afetem de alguma maneira."

Eu ainda lembro daquela escola. Foi lá que eu fui introduzido nas “dores do mundo”. Toda a minha infância anterior fora um “tédio salpicado de sofrimento”. Eu não estarei mentindo se disser que não tenho nenhuma lembrança positiva da minha infância. Mas ruins eu tenho algumas sim (mas não muitas). Mas aquele marasmo existencial mudou quando meus pais se mudaram do bairro pequeno-burguês (habitado por anfas, betas e gamas), para o bairro pobre (habitado por alguns gamas e principalmente por deltas, e alguns épsilons). Eu não sabia o que era sofrimento. Eu achava que sabia o que era solidão.

“A música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que se instalam entre pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências.” T.W. Adorno, “O fetichismo na música e a regressão da audição” (1938)

Algumas pessoas que leram alguns dos textos desse blog dizem que eu não me coloco nos textos, que eu preciso trabalhar a minha interioridade...o que será que elas entendem por isso? Será que querem que eu fale da minha vida mais abertamente como estou começando a fazer (e de forma confusa) aqui nesse texto? Infelizmente, esse tipo de texto nunca foi o objetivo do blog. Os meus “diários” estão cheios desse material que “explora a minha interioridade”. Mas todo esse material foi censurado, por contrariar a “linha editorial” do blog. Eu acho improvável que alguém ainda esteja lendo esse texto [eu não perderia meu tempo lendo isso se estivesse no blog de alguém], mas saiba que ele é “pura enrolação”. Afinal, por que eu estou enrolando? Esse blog já está com os dias contados. Eu espero encerrá-lo quando postar aqui a minha monografia. O problema é que essa monografia não fica pronta nunca (estou enrolando ela desde 2008), e eu insisto em postar alguma coisa aqui toda semana. É claro que isso é despropositado, eu poderia não postar nada, não é? Mas eu já tenho temas para postar até Junho de 2011, e por essa época a monografia já deve estar pronta. O “problema" é que a maioria das postagem desse ano serão uma merda, como essa atual. Eu tive uma semana meio estressante no trabalho; eu continuo a questionar a existência, continuo me assustando com as “perplexidade do intelecto”, só que eu já estou meio cansado disso. Eu não poderia seguir esse caminho para sempre, sem terminar numa tragédia (leia-se suicídio). Em algum momento eu teria que mudar o rumo, e “me ajustar”. Isso inclui parar de questionar e criticar, pelo menos com a veemência com que eu fiz isso nos últimos anos. Eu já superei as dicotomias bem X mal e verdade X mentira. Esse personagem que eu vivo há onze anos – desde que eu entrei naquela escola municipal – já está me cansando. Eu tento fugir de estereótipos, e assim busco mudar de identidade. Mas com isso eu acabo não sendo ninguém. O que eu realmente queria ser, está fora do meu alcance. O que me é permitido ser, não me interessa, pois eu não quero fazer sacrifícios para ser algo, não quero fazer concessões. Resultado: não serei nada. Mas isso não é tão ruim assim. Só é quando você acha que a vida é algo sério. Eu demorei alguns anos para perceber que nada na vida vale o meu esforço – nem mesmo a minha própria vida. Mas ponto para mim: eu vejo gente com cinqüenta anos que ainda não aprendeu isso.

Naquele dia de aula, houve a entrega de parte dos livros didáticos que o MEC compra todo anos (a propósito, o MEC é o maior comprador de livros do mundo). Um dos alunos, um maloqueiro dogrado, que recebia o apelido de Malásia (embora fosse pardo e não tivesse qualquer ascendência asiática) começou a reclamar, disse que o governo deveria dar o material didático também. Foi então que a professora lhe deu uma reposta que eu nunca esquecerei. Elas disse: “O governo deveria ter pago a cirurgia [laqueadura] para que a sua mãe não ficasse grávida e você não tivesse nascido.” Ela corretamente não usou a expressão “laqueadura”, pois sabia que ele não iria entender.

Você sabe por que as séries de investigação criminal fazem tanto sucesso? Eu não consegui pensar numa resposta melhor do que essa: elas fornecem um exercício mental (uma masturbação mental) que é inofensivo ao sistema (aos interesses da manutenção da sociedade capitalista) e elas fornecem também uma catarse da pulsão de morte. O que você acha?

Essa professora era bem irritada e criticava os alunos com uma sinceridade cínica. Mas não poderia ser diferente. Não dá para fazer um trabalho daquele por muito tempo sem ficar arruinado mentalmente. Sem perder a fé no ser humano. Isso eu já perdi naquela época, e depois solidifiquei o meu pessimismo com Schopenhauer. Eu não esqueço de um célebre discurso em que ela (a professora), citando a metáfora bíblica, dizia que ficaríamos chocados quando as escamas caíssem de nossos olhos. Ela sabia que eu era diferente, assim como sabia que as escamas nunca cairiam dos olhos deles. E nunca caíram.

Esse ano as postagens do blog serão bem fraquinhas, salvo algumas poucas. Ás vezes eu me sinto mal por isso: “Porra Duan, você não consegue escrever nada melhor do que isso?” Mas para que ser tão exigente comigo mesmo? As minhas exigências arrefecem quando, novamente, eu percebo que tem gente com cinqüenta anos que nunca entendeu nem nunca vai entender o que eu escrevo aqui. E nunca entenderia, mesmo que vivesse um milhão de anos - todos os meus antigos colegas da oitava série são esse tipo de gente. E que diferença faz? Talvez nenhuma. Não sei. Mas eu me importo, pelo menos um pouco. Se dissesse que me importo muito estaria mentindo.

Teoria Populacional Neomalthusiana é a atualização da Teoria Populacional Malthusiana, criada pelo demógrafo Thomas Malthus.
Para os neomalthusianos, a superpopulação dos países era a causa da pobreza desses países.
Com a nova aceleração populacional, voltaram a surgir estudos baseados nas idéias de Malthus, dando origem a um conjunto de formulações e propostas denominadas Neomalthusianas.
Novamente os teóricos explicavam o subdesenvolvimento e a pobreza pelo crescimento populacional, que estaria provocando a elevação dos gastos governamentais com os serviços de educação e saúde. Isso comprometeria a realização de investimentos nos setores produtivos e dificultaria o desenvolvimento econômico.
Para os neomalthusianos, uma população numerosa seria um obstáculo ao desenvolvimento e levaria ao esgotamento dos recursos naturais, ao desemprego e à pobreza.
Afirmam também que é possível melhorar a produtividade da terra com uso de novas tecnologias, e que é possível reduzir o ritmo de crescimento da população através do planejamento familiar.

Eu sou metafísico demais para discutir política aqui. Sou racional demais para me identificar com algum partido ou projeto político a ponto de “vestir a camisa”. Sou egoísta demais para me sacrificar por um ideal, ou pelos outros. Sou pessimista demais para lutar pela mudança. Sou introspectivo demais para seguir uma multidão. Como eu não me posiciono, o máximo que posso fazer é buscar entender o que está acontecendo (e aqui há lapsos de Foucault: a vontade de saber está intimamente ligada á vontade de poder). Seja como for, esse blog nunca buscou discutir política, pois isso, novamente, contraria sua "linha editorial".

Eu, desde o capítulo I, já falei várias vezes sobre a sensação de irrealidade. Agora percebo que essa sensação é um mero artifício para negar a realidade: como eu não aceito a realidade tal como ela é, ela me parece estranha, irreal. É mais fácil acreditar que esse mundo é irreal do que aceita-lo como ele é. Por "realidade" me refiro à cotidianidade medíocre e mecânica do trabalho, do tédio, da rotina, e da frustração: é dessa realidade que o indivíduo busca evadir-se por meio de delírios megalomaníacos. Quando ele "pressente" que o mundo não é real, o que ele está fazendo é negar essa realidade da cotidianidade medíocre e mecânica, em prol de um escapismo: o real é tão insuportável, é tão assolador para o princípio de prazer, que é preferível advogar a sua irrealidade do que aceitá-lo. De certa forma, a religião faz algo parecido, quando busca desprezar o mundo em favor de um mundo imaginário pós-morte. Em ambos os casos, a negação da realidade é um artifício adaptativo, que serve justamente para inserir o indivíduo na realidade que ele nega. Dessa forma, o indivíduo cria uma ilusão para adaptá-lo ao mundo, e no caso essa ilusão é justamente a irrealidade (ou a irrelevância) desse mesmo mundo que é o único efetivamente existente e, por isso mesmo, do qual o indivíduo não é capaz de evadir-se definitivamente, mas apenas de maneira imaginária.

Malásia começou a xingar a professora e se dirigiu a ela pronto para agredi-la fisicamente. Mas foi segurado por alguns alunos (obviamente que não por mim, eu nunca participaria, eu apenas observo, e isso já é desgastante demais). Malásia for parar na diretoria. Lá ele esfriou a cabeça e, até onde eu sei, a ofensa proferida pela professora ficou sem resposta. Afinal, escola nunca foi importante para ele.

Embora, do ponto de vista do pensamento racionalista ocidental, exista uma ligação íntima entre “valor” e “sentido” é importante salientar que, conforme insiste Schopenhauer, a vida, em si, não tem objetivo algum a não ser se repetir incessantemente, sendo um perpétuo e multifacetado desdobramento da atividade orgânica fundada na replicabilidade infinita. Sob esse ponto de vista, o sentido da vida, enquanto fenômeno biológico, é si mesma. Os animais e demais formas de vida querem a vida sem qualquer questionamento, e o mesmo ocorre com a maioria das pessoas. É a introdução da razão, “das perplexidades do intelecto” como diria Nietzsche, que trará questionamentos às pessoas, mas a maioria delas já fica satisfeita quando se ajusta a um sistema de referenciais protagonizado pelo trabalho, pela família, pela religião e pelo senso comum; se conseguirem se ajustar a esse modelo de paradigmas, nunca vão questionar o valor de existir. É só quando o indivíduo não se ajusta que ele começa a questionar. Mas substituir os referenciais adotados pela “vida comum” da cotidianidade não é nem um pouco fácil, motivo pelo qual tantos que “se rebelam” acabam loucos ou se suicidam (nem que apenas mentalmente), isso quando não são mortos (o que costuma ocorrer em sociedades mais repressivas que a em que vivemos atualmente). Como eu já disse antes, o rebelde é um desajustado, e, desse ponto de vista, a grande fonte de insatisfação do indivíduo não está na “vida”, no “mundo”, no “sistema”, mas em si mesmo, que não consegue (e muitas vezes não quer) se ajustar à realidade em que está inserido. Mesmo que “o sistema” tenha culpa, insistir em culpá-lo não vai aliviar o indivíduo de seu sofrimento, nem tampouco apresentará um caminho viável para superação da sua miséria presente. O indivíduo não precisa se agarrar ao sofrimento e ao passado para conferir um sentido à sua vida, na falta de sentido melhor.
De certa forma Schopenhauer, como eu já disse mais de uma vez aqui, confere um sentido moral de redenção à vida humana com relação ao destino do universo, isso lhe permite inserir (sub-repticialmente) uma espécie de teleologia histórica em sua filosofia (embora ele negue a relevância da história).
A vida também poderia ter um sentido que de forma alguma contribuiria para a sua “desejabilidade”. Por exemplo, o místico Gurdjieff afirmou em um dos seus livros que a função da vida humana é emitir uma espécie de radiação que serve de alimento para a Lua...percebam que a nossa vida pode ter uma finalidade completamente estranha aos nossos interesses individuais. Seja como for, eu repito que a vida em geral é desejada independentemente que qualquer “sentido” que ela tenha. A “perplexidade” está em insistir em querem encontrar um sentido “verdadeiro” em algo que é na verdade um fim em si mesmo (sem qualquer outro sentido a não ser a si mesmo). As metafísicas filosóficas fracassaram retumbantemente em encontrar o “verdadeiro” sentido da vida (como se houvesse um). Do ponto de vista de nossas vidas cotidianas (ou seja, do ponto de vista “concreto”), penso ser muito útil uma espécie de abordagem existencialista que reconheça que somos nós que atribuímos o sentido de nossas vidas, e que essa liberdade está inexoravelmente ligada à responsabilidade. Também pode ser útil uma abordagem eudemonológica (como a sugerida por Schopenhauer) centrada na diminuição da dor em detrimento da busca sofredora pelo prazer. Ter um objetivo de longo prazo (se sentir parte de “algo maior”) pode ser útil, desde que a realidade presente não seja sufocada por promessas futuras.

De todos os colegas da antiga oitava série, palco dessa cena agora relatada, eu fui o único que realmente fez um curso universitário (e numa universidade federal). Depois eu soube que alguns deles fizeram uns cursos técnicos. Agora, 11 anos depois, a maioria deles já teve filhos e está subempregada (o resto está desempregado). Continuam sendo deltas, mas não serei eu a dizer que ascensão social é importante. Esses dias eu soube que Malásia, que já naquela época perdera vários dentes, já perdeu a vida na guerra do tráfico de drogas aqui do bairro.

Lembro de uma aula de geografia nessa escola municipal (na sétima série). A professora deu para cada um uma folha A4 com o desenho do mapa da América do Sul e pediu para pintarmos (isso mesmo, pintarmos na sétima série!) o Brasil nesse mapa. Ela acrescentou que aqueles que não encontrassem o Brasil poderiam marcá-lo a lápis para confirmar depois de estava certo. Você não leu errado não, isso realmente aconteceu. Será que eu quis seguir uma vida intelectual (no que eu fracassei) justamente por ter convivido no meio de tanta ignorância?

Tá legal, o termo “fracassei” não está correto. Eu teria fracassado se eu realmente tivesse uma chance. Mas não tinha. O problema é que eu não sabia disso. Eu me perdi no labirinto da vida. Eu perdi o "jogo da vida". Ainda bem que isso no fim não tem muita importância mesmo. Um rosto infeliz na multidão, que diferença faz para a história do universo?

Agora são 23:07 e eu vou apertar o botão “publicar postagem”.

Depois de 94 textos eu tenho o direito de usar metalinguagem barata, não?






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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

### 30 - Porque sou agnóstico.

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I


Herdamos a maior parte de nossas opiniões. Somos herdeiros de hábitos e costumes mentais. Nossas crenças, assim como o estilo de nossas roupas, dependem do local em que nascemos. Somos moldados e formados pelo ambiente que nos circunda.

O ambiente é um escultor – um pintor.

Se tivéssemos nascido em Constantinopla, a maioria de nós diria: “Não há qualquer Deus senão Alá, e Maomé é seu profeta”. Se nossos pais vivessem nas margens do Ganges, seríamos adoradores de Shiva, sequiosos pelo céu de Nirvana.

Por via de regra, os filhos amam seus pais, acreditam no que eles dizem e orgulham-se muito de dizer que a religião de seus pais lhes é satisfatória.

Em grande parte os indivíduos amam a paz; não gostam de desavenças com seus vizinhos; gostam de companhia; são sociais; gostam de perseguir seus objetivos acompanhados; odeiam a solidão.

Os escoceses são calvinistas porque seus pais eram. Os irlandeses são católicos porque seus pais eram. Os ingleses são episcopais porque seus pais eram. Os americanos são divididos em centenas de seitas porque seus pais eram. Esta é uma regra geral, com muitas exceções. Os filhos às vezes são superiores aos seus pais, modificam suas idéias, seus costumes, e chegam a conclusões diferentes. Mas normalmente a divergência surge de modo tão gradativo que mal se percebe, sendo comum insistirem que estão seguindo os passos dos pais.

Historiadores cristãos afirmam que a religião de uma nação algumas vezes foi repentinamente mudada, e milhões de pagãos foram transformados em cristãos sob o comando de um rei. Os filósofos não concordam com esses historiadores. Nomes foram alterados, altares foram destruídos, mas as opiniões, os costumes e as crenças permaneceram as mesmas. Um pagão, subjugado pela espada de um cristão, provavelmente mudaria sua posição religiosa; um cristão, com uma cimitarra em seu pescoço, espontaneamente se tornaria um maometano. Na realidade, por dentro, ambos continuam sendo exatamente o que eram antes.

A crença não está sujeita à vontade. Os homens pensam como precisam pensar. Crianças não crêem, nem podem crer, exatamente no que lhes foi ensinado. Elas não são totalmente idênticas aos seus pais. Elas diferem em temperamento, em experiência, em capacidade, em atmosfera. Apesar de imperceptível, há uma mudança contínua. Há desenvolvimento, há crescimento consciente e inconsciente; comparando-se longos períodos de tempo, percebe-se que o velho foi quase totalmente abandonado, quase totalmente sobreposto pelo novo. O homem não é capaz de permanecer imutável. A mente não pode ser ancorada. Se não avançarmos, vamos retroceder. Se não crescermos, vamos definhar. Se não nos desenvolvermos, vamos atrofiar.

Como a maioria de vocês, fui criado entre pessoas que sabiam – que estavam convictas. Não tinham motivos para questionar ou investigar. Não tinham dúvidas ["Mas se alguém quiser ser contencioso, nós não temos tal costume, nem as igrejas de Deus.” Coríntios, 11: 16]. Sabiam-se possuidoras da verdade. Em suas crenças não havia suposições, não havia talvez. Elas tinham a revelação de Deus. Conheciam o início de tudo. Sabiam que Deus havia começado a criação numa segunda, quatro mil e quatro anos antes de Cristo. Sabiam que na eternidade anterior àquela manhã ele não havia feito nada. Sabiam que ele levou seis dias para criar a Terra – todas as plantas, todos os animais, toda a vida e todos os globos que giram no espaço. Sabiam exatamente o que havia feito em cada dia e quando descansou. Sabiam qual era a origem, a causa do mal, de todos os crimes, de todas doenças e da morte.

Conheciam não apenas o começo, mas também o fim. Sabiam que a vida tinha dois caminhos, um largo e um estreito. Sabiam que o caminho estreito, cheio de espinhos e urtigas, infestado de víboras, molhado de lágrimas, manchado por pés sangrentos, conduzia ao céu; e que o caminho largo, plano, ladeado por frutas e flores, repleto de riso, música e felicidade conduzia diretamente ao inferno. Sabiam que Deus estava fazendo todo o possível para escolhessem o caminho estreito, e o Demônio usando todas artimanhas para que escolhessem o caminho largo.

Sabiam que havia uma batalha perpétua entre os grandes Poderes do bem e do mal pela posse das almas humanas. Sabiam que, muitos séculos atrás, Deus deixou seu trono e veio a este pobre mundo na forma de um bebê – que morreu pelos homens – a fim de salvar uns poucos. Também sabiam que o coração humano encontrava-se totalmente depravado, que o homem naturalmente amava o mal e odiava a Deus com toda sua força.

Ao mesmo tempo, sabiam que Deus havia criado o homem à sua imagem e semelhança, e que estava perfeitamente satisfeito com sua obra. Também sabiam que o homem havia sido corrompido pelo Demônio, que com embustes e mentiras enganou o primeiro ser humano. Sabiam que, como conseqüência disso, Deus amaldiçoou o homem e a mulher; o homem com o trabalho, a mulher com a escravidão e a dor, e ambos com a morte; e que também amaldiçoou a própria Terra com espinhos e abrolhos. Tinham conhecimento de todas essas coisas sagradas. Também sabiam tudo que Deus havia feito para purificar e elevar a humanidade. Sabiam tudo sobre o dilúvio; sabiam que Deus – com exceção de Noé e sua família – havia afogado todos os seus filhos – tanto os jovens quanto os velhos, tanto os bebês quanto os patriarcas, tanto os homens quanto as mulheres, tanto as mães amorosas quando as crianças felizes –, pois sua misericórdia dura para sempre. Também sabiam que havia afogado todas as bestas e aves – tudo que caminha, rasteja ou voa –, pois seu amor se estende por todas as suas criaturas. Sabiam que Deus, no intuito de civilizar seus filhos, devorou alguns com terremotos, destruiu outros com tempestades de fogo, matou alguns com raios, milhões com fome, com pestilência, e sacrificou inúmeros milhares nos campos de batalha. Sabiam que era necessário crer em tais coisas e amar a Deus. Sabiam que a salvação só poderia vir através da fé e do purificante sangue de Jesus Cristo.

Todos que duvidassem ou contestassem estariam perdidos. Viver uma vida moral e honesta – honrar seus contratos, cuidar de sua esposa e filhos, construir um lar feliz, ser um bom cidadão, um patriota, um homem justo e reflexivo – era simplesmente um modo respeitável de ser condenado ao inferno.

Deus não recompensava os homens pela sua honestidade, sua generosidade, sua coragem, mas simplesmente pela sua fé. Sem fé, todas as chamadas virtudes convertiam-se em pecado. Todos os homens que praticassem tais virtudes sem fé mereciam sofrer o suplício eterno.

Todas essas coisas confortantes e racionais eram ensinadas pelos ministros em seus púlpitos, pelos professores em aulas dominicais e pelos pais em casa. As crianças eram vítimas – eram atacadas em seus próprios berços, nos braços de suas mães. Os professores travavam sua guerra contra o sentido natural das crianças, e todos os livros que liam eram repletos das mesmas verdades impossíveis. As pobres crianças estavam indefesas. A atmosfera que respiravam estava saturada de mentiras – mentiras que se tornaram parte delas.

Naqueles dias os ministros dependiam dos cultos para salvar as almas e reformar o mundo.

No inverno, estando a navegação interrompida, o comércio era quase totalmente suspenso. Não havia ferrovias e os únicos meios de transporte eram carroças e barcos. Em geral, as estradas eram tão precárias que se dava preferência aos barcos. Não havia óperas, teatros, nenhum entretenimento senão festas e bailes. As festas eram consideradas mundanas e os bailes pervertidos. Para as pessoas boas que estivessem em busca de uma alegria verdadeira e virtuosa, havia os cultos.

Os sermões eram predominantemente sobre as dores e as agonias do inferno, sobre a felicidade e o êxtase do céu, sobre a salvação através da fé e a eficiência da expiação. As igrejas onde ocorriam os cultos eram geralmente pequenas, mal ventiladas e excessivamente quentes. Os sermões emocionais, as canções tristes, os améns histéricos, a esperança do céu e o medo do inferno fizeram com que muitos perdessem o pouco de senso crítico que tinham. Tornaram-se substancialmente insanos. Nestas condições, dirigiam-se ao “banco das lamentações”, tinham sensações estranhas, rezavam e lamuriavam, e pensavam ter “renascido”. Então relatavam sua experiência – quão pervertidos eram, quão maus eram seus pensamentos, seus desejos, e quão bons subitamente tornaram-se.

Costumavam contar a história de uma velha mulher que, ao narrar sua experiência, disse o seguinte: “Antes de ter me convertido, antes de ter dado meu coração a Deus, costumava mentir e roubar. Agora, pela graça e pelo sangue de Jesus Cristo, abandonei aquela vida”.

Obviamente, nem todas as pessoas pensavam da mesma maneira. Alguns eram zombeteiros, e de vez em quando alguns homens tinham bom-senso suficiente para rir das ameaças dos padres e pastores e troçar do inferno. Alguns falavam de incrédulos que haviam vivido e morrido em paz.

Quando eu era criança, ouvi-os falar sobre um velho fazendeiro de Vermont que estava morrendo. O pregador estava ao lado de sua cama, e perguntou se ele era um cristão, se estava preparado para morrer. O velho respondeu que não havia preparado-se, que não era cristão – que em toda a sua vida não havia feito nada senão trabalhar. O pregador respondeu que não poderia lhe dar qualquer esperança caso não tivesse fé em Cristo – que sem fé sua alma certamente estaria perdida.

O homem não estava amedrontado, mas perfeitamente calmo. Com uma voz fraca e quebrantada, disse: “Caro pastor, suponho que o senhor já tenha conhecido minha fazenda. Eu e minha esposa viemos para cá há mais de cinqüenta anos. Éramos recém-casados. Era tudo uma floresta, e a terra estava coberta de pedras. Cortei as árvores, queimei os troncos, recolhi as pedras e erigi as paredes. Minha esposa costurava e tecia, trabalhava o tempo todo. Criamos e educamos nossos filhosabdicamos a nós mesmos. Durante todos esses anos minha esposa nunca teve um vestido ou um chapéu decentes. Eu nunca tive roupa boa. Vivíamos da comida mais simples. Nossas mãos e nossos corpos deformaram-se pelo trabalho. Nunca tivemos férias. Amamos um ao outro e os nossos filhos – esse foi o único luxo que jamais tivemos. Agora estou à beira da morte e o senhor me pergunta se estou preparado. Caro pastor, não temo o futuro, nem qualquer terror de outro mundo. Talvez até exista um lugar como o inferno, mas o senhor nunca me fará acreditar que possa ser ainda pior que Vermont”.

Então contaram sobre um homem que se comparou ao seu cachorro. “Meu cachorro”, disse ele, “apenas late e brinca. Pode comer o quanto quiser. Nunca trabalha e nem se preocupa com negócios. Daqui algum tempo ele morrerá, e isso é tudo. Eu trabalho com toda a minha força, não tenho tempo para brincar, me deparo com problemas diariamente. Logo morrerei, e então irei para o inferno. Queria estar no lugar do meu cachorro”.

Bem, enquanto durasse o frio, enquanto houvesse neve, a pregação continuava, mas quando o inverno terminava, quando o apito dos barcos a vapor fazia-se ouvir, quando o comércio recomeçava, a maioria dos convertidos “apostatava”, retornando aos seus antigos costumes. Mas no próximo inverno lá estavam eles, prontos para serem “convertidos”. Formavam uma espécie de trupe, representando os mesmos papéis todos invernos, e apostatando em todas primaveras.

Os ministros que pregavam nestas cerimônias eram sérios. Eram diligentes e sinceros. Não eram filósofos. Para eles, ciência o sinônimo de uma vaga ameaça – de um perigoso inimigo. Não sabiam muito, mas acreditavam bastante. Para eles as chamas do inferno eram reais – podiam avistar a fumaça e as labaredas. O Demônio não era um mito, era uma pessoa de verdade, um rival de Deus, um inimigo da humanidade. Pensavam que o importante nesta vida era salvar a alma – que todos deveriam resistir e desprezar os prazeres dos sentidos, mantendo os olhos totalmente fitos no portão dourado da Nova Jerusalém. Eram desbalanceados, emotivos, histéricos, fanáticos, odiosos, amorosos e insanos. Acreditavam literalmente que a Bíblia era a verdadeira palavra de Deus – que era um livro sem erros ou contradições. Chamavam suas crueldades de justiça; seus absurdos de mistérios; seus milagres de fatos; viam suas passagens idiotas como algo profundamente espiritual. Cuidavam de evidenciar o pavor, o arrependimento e a agonia dos perdidos e de demonstrar quão facilmente isso poderia ser evitado, quão acessível era o céu. Diziam a seus ouvintes que acreditassem, que tivessem fé, que dessem seu coração a Deus e seus pecados a Cristo, o qual carregaria seus pecados e tornaria suas almas alvas como a neve.

Os ministros realmente acreditavam nisso tudo. Estavam absolutamente convictos. Em vão o Demônio havia tentado semear dúvida em suas mentes.

Ouvi centenas desses sermões evangélicos – centenas das mais aterrorizantes e vívidas descrições das torturas infligidas no inferno, da horrível situação dos que se perderam. Supunha que o que tinha ouvido era verdade, mas não conseguia acreditar. Eu dizia: “É verdade”, então pensava: “Mas não pode ser”.

Esses sermões só deixaram fracas impressões em minha mente. Não estava convencido.

Não tinha o desejo de ser “convertido”, não queria um “novo coração” e não ansiava nem um pouco por “renascer”.

Mas ouvi um sermão que tocou meu coração, que deixou sua marca como uma cicatriz em meu cérebro.

Num domingo fui com meu irmão ouvir um pregador batista do livre arbítrio. Era um homem corpulento, vestido como fazendeiro, mas que era um orador. Ele conseguia pintar um quadro usando palavras.

Escolheu para seu discurso a parábola do “homem rico e lázaro” (Cf. Lucas 16).

Descreveu o homem rico – seu estilo de vida, os excessos a que se entregava, sua extravagância, suas noites luxuriosas, seus finos linhos purpúreos, seus banquetes, seus vinhos e suas belas mulheres.

Então descreveu Lázaro – sua pobreza, sua miséria maltrapilha, seu corpo consumido pela enfermidade, as cascas e migalhas que devorava, os cachorros tinham piedade dele. Descreveu sua vida solitária, sem amigos.

Então, mudando o tom de piedade para triunfo, passando das lágrimas à exultação, da derrota à vitória, descreveu a gloriosa companhia dos anjos, que com suas asas alvas estendidas carregavam a alma do pobre desprezado para o Paraíso – para o seio de Abraão.

Em seguida, dando à voz um tom de desprezo e repugnância, falou sobre a morte do homem rico. Estava em seu palácio, em sua caríssima cama, o ar cheio de perfume, o quarto cheio de servos e médicos. Todo seu ouro era inútil – não podia comprar outro suspiro. Então morreu, e quando abriu os olhos estava no inferno, em tormento.

Então, com uma expressão dramática, colocou sua mão direita na orelha e sussurrou:

“Escutem! Ouço a voz do homem rico. O que ele diz? Ouçam! ‘Pai Abraão! Pai Abraão! Rogo para que envie Lázaro, e que ele mergulhe a ponta se seu dedo na água e refresque minha língua seca, pois estou atormentado pelas chamas’. Oh, meus irmãos, ele vem fazendo este pedido há mais de dezoito séculos. E por milhões de anos este lamento ainda ecoará pelo abismo que separa os salvos dos perdidos. ‘Pai Abraão! Pai Abraão! Rogo para que envie Lázaro, e que ele mergulhe a ponta se seu dedo na água e refresque minha língua seca, pois estou atormentado pelas chamas’”.

Pela primeira vez compreendi o dogma da danação eterna e as “boas novas da bem-aventurança”. Pela primeira vez minha imaginação apreendeu as alturas e as profundezas do horror cristão.

Então eu disse: “É uma mentira, odeio sua religião. Mas se é verdadeira, odeio o seu Deus”.

A partir daquele dia não tive mais medo nem dúvidas. Para mim, naquele dia, as chamas do inferno foram extintas. A partir daquele dia passei a odiar profundamente quaisquer crenças ortodoxas.

Aquele sermão me fez algum bem.


II


Desde minha infância tenho ouvido leituras e lido eu próprio a Bíblia. Nas manhãs e noites a Sagrada Escritura era aberta e orações eram proferidas. A Bíblia foi minha primeira história, os judeus eram o primeiro povo; os eventos narrados por Moisés, por outros escritores inspirados e aqueles previstos pelos profetas eram as coisas de suma importância. Em outros livros havia pensamentos e sonhos dos homens, mas a Bíblia continha as sagradas verdades de Deus.



Este Deus obstruiu chuvas, causou fome – viu toda a ferocidade contida nos olhos da fome –, viu a disformidade, os lábios pálidos, as mães devorando seus bebês, e permaneceu tão impetuoso quanto a fome.

Para mim parece impossível a um homem civilizado amar, adorar ou respeitar o Deus do Velho Testamento. Um indivíduo realmente civilizado deve tratar tal Deus com repugnância e desprezo.

Mas nos velhos tempos as pessoas boas justificavam as atitudes de Jeová quanto aos pagãos. Os infelizes que foram assassinados eram idólatras e, assim, não deviam viver.

De acordo com a Bíblia, Deus nunca se revelou a esses povos, e sabia que sem uma revelação era impossível que soubessem ser ele o verdadeiro Deus. Então de quem era a culpa por serem pagãos?

Os cristãos diziam que Deus tinha o direito de destruí-los porque os criou. Mas então os criou para que, se quando o fez, sabia que se tornariam alimento do aço de espadas e que teria prazer em vê-los sendo assassinados?

Como último argumento, como desculpa final, os adoradores de Jeová disseram que todas essas coisas terríveis se sucederam sob o “velho código” de leis ríspidas, da justiça absoluta, mas que agora, sob um “novo código”, tudo havia mudado: a espada da justiça foi embainhada e o amor entronado. No Velho Testamento, diziam, Deus é o juiz, mas, no Novo Testamento, o juiz é Cristo, o misericordioso. Em verdade, o Novo Testamento é incalculavelmente pior que o Velho. No Velho não há a punição eterna. Jeová não tinha prisões nem chamas perpétuas. Seu ódio cessava com a morte. Sua sede de vingança saciava-se com a morte do inimigo [na verdade ele se vingava também das próximas gerações, mas em número limitado, não por toda a eternidade].

No Novo Testamento a morte não é o fim, mas o começo de uma punição interminável. No Novo Testamento a maldade de Deus é infinita e sua ânsia por vingança é eterna.

O Deus ortodoxo, quando em forma humana, disse a seus discípulos que não resistissem ao mal, que amassem seus inimigos e que, se atingidos numa face, que oferecessem também a outra (Cf. Mateus 5). Ainda assim, dizem que este mesmo Deus, com os mesmos lábios amorosos, proferiu estas palavras monstruosamente diabólicas: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o Diabo e seus anjos” (Cf. Mateus 25:41).

Essas são as palavras do “amor eterno”.

Nenhum ser humano tem imaginação suficiente para conceber este horror infinito.

Tudo que a humanidade sofreu com as guerras, com a pobreza, com a pestilência, com a fome, com o fogo e com o dilúvio, todo o pavor e toda a dor de todas as doenças e de todas as mortes – tudo isso se reduz a nada quando posto lado a lado com as agonias que se destinam às almas perdidas.

Este é o consolo da religião cristã. Esta é a justiça de Deus – a misericórdia de Cristo.

Este dogma aterrorizante, esta mentira infinita: foi isto que me tornou um implacável inimigo do cristianismo. A verdade é que a crença na danação eterna tem sido o verdadeiro perseguidor. Fundou a Inquisição, forjou as correntes e construiu instrumentos de tortura. Obscureceu a vida de muitos milhões. Tornou o berço tão terrível quanto o caixão. Escravizou nações e derramou o sangue de incontáveis milhares. Sacrificou os melhores, os mais sábios, os mais bravos. Subverteu a noção de justiça, derriscou a compaixão dos corações, transformou homens em demônios e baniu a razão dos cérebros.

Como uma serpente peçonhenta, rasteja, sussurra e se insinua em toda crença ortodoxa.

Transforma o homem numa eterna vítima e Deus num eterno demônio. É o horror infinito. Cada igreja em que se ensina esta idéia é uma maldição pública. Todo pregador que a difunde é um inimigo da humanidade. Em vão se procuraria uma selvageria mais ignóbil que este dogma cristão. Representa a maldade, o ódio e a vingança sem fim.

Nada poderia tornar o inferno pior, exceto a presença de seu criador, Deus.

Enquanto estiver vivo, enquanto estiver respirando, negarei esta mentira infinita com toda minha força, a odiarei com cada gota de meu sangue.

Nada me da mais prazer que a consciência de que a crença na punição eterna está se desvanecendo a cada dia, que milhares de ministros se envergonham dela. Alegra-me saber que os cristãos estão se tornando compassivos, tão compassivos que as chamas do inferno estão extenuando-se – enfraquecidas, abafadas pelas cinzas, destinadas a morrer definitivamente em poucos anos.

Por séculos a cristandade era um manicômio. Papas, cardeais, bispos, padres, monges e hereges eram todos malucos.

Apenas alguns poucos – quatro ou cinco em um século – tinham o coração e a mente íntegros. Apenas alguns poucos – apesar do rugido, do estrondo, dos gritos selvagens – ouviram a voz da razão. Apenas alguns poucos – em meio à selvagem fúria da ignorância, do medo e do fervor – preservaram a perfeita calma que a sabedoria proporciona.

Nós temos avançado. Esperamos que, dentro de alguns anos, os cristãos tornem-se humanos e sensíveis o suficiente para negarem o dogma que preenche infindáveis anos com sofrimento. Deveriam saber que este dogma é profundamente incompatível com a sabedoria, com a justiça e com a bondade de seu Deus. Deveriam saber que a crença no inferno dá ao Espírito Santo – a Pomba – um bico de abutre e coloca presas de víbora na boca do Filho de Deus.



III


Em minha juventude li livros religiosos – livros sobre Deus, sobre a expiação, sobre a salvação através da fé e sobre os outros mundos. Familiarizei-me com os comentaristas – com Adam Clarck, que pensava que a serpente havia seduzido nossa mãe Eva, que era de fato o pai de Caim. Ele também acreditava que os animais, enquanto estavam na arca, tiveram suas naturezas transformadas a ponto de comerem palha juntos e desfrutarem da companhia uns dos outros – com isso prefigurando o milênio abençoado. Li Scott, um teólogo nato, que realmente pensava que a história de Phaetom – sobre os cavalos selvagens cruzando os céus – corroborava a história de Josué sobre o Sol e a Lua terem parado. Então li Henry e Macknight, e descobri que Deus amava tanto o mundo que decidiu amaldiçoar a grande maioria da humanidade. Li Cruden, que fez a grande Concordância, tornando os milagres tão modestos e prováveis quando pôde.

Lembro-me de que ele explicou o milagre da alimentação dos judeus errantes com codornas dizendo que mesmo atualmente um imenso número de codornas cruza o Mar Vermelho, e que, quando se ocasionalmente se cansavam, pousavam em navios que afundavam com seu peso. O fato de que a explicação era tão improvável quanto o milagre não fez diferença ao devoto Cruden.

Há algum tempo li os Institutos de Calvino, um livro que visa produzir, em qualquer mente natural, um considerável respeito pelo Demônio.

Li as Evidências de Paley e concluí que a evidência da ingenuidade na produção do mal, na criação da dor, era no mínimo tão boa quando a evidência que tende a demonstrar a presença de inteligência na criação do que denominamos bem.

O argumento do relógio foi o maior esforço de Paley. Um homem encontra um relógio e, por este por ser tão maravilhoso, ele conclui que teve necessariamente um criador. Encontrando o criador do relógio, vê que este é muito mais maravilhoso que o relógio, concluindo então que este também deveria ter sido criado. Então encontra Deus, o criador do homem, o qual é tão mais maravilhoso que o homem que não poderia ter tido um criador. Isso é o que os advogados chamam de desvio de petição.


Tivemos Edwards em A Vontade, no qual o reverendo autor demonstra que a necessidade não influi na responsabilidade – e que quando Deus cria um ser humano, e ao mesmo tempo determina e decreta exatamente o que este fará e será, o ser humano é responsável, e Deus, em sua justiça e misericórdia, tem o direito de torturar a alma deste humano eternamente. Mesmo assim Edwards dizia que amava a Deus.

O fato é que, se você acredita num Deus infinito e também na punição eterna, então precisa admitir que Edwards e Calvino estavam absolutamente certos. Admitindo-se as suas premissas, não há como escapar às suas conclusões. Eles eram infinitamente cruéis, suas premissas infinitamente absurdas, seu Deus infinitamente mau e sua lógica perfeita.

Ainda assim, tenho bondade e integridade suficientes para dizer que Calvino e Edwards eram ambos insanos.

Tivemos muita literatura teológica. Havia Jenkyn sobre a Expiação, que demonstrou a sabedoria de um Deus que inventou um modo através do qual o sofrimento inocente poderia justificar os culpados. Tentou demonstrar que as crianças poderiam ser justamente punidas pelos pecados de seus ancestrais e que homens poderiam, se tivessem fé, ser justamente creditados com as virtudes dos outros. Nada poderia ser mais devoto, ortodoxo e idiota. Mas nem toda a nossa teologia era em prosa. Tivemos Milton, com sua milícia celestial, com seu grande e desajeitado Deus, seu orgulhoso e astuto Demônio – suas guerras entre imortais e todas as sublimes absurdidades que a religião imprimiu na mente de homens cegos.

A teologia ensinada por Milton era estimada pelo coração dos puritanos. Foi aceita pela Nova Inglaterra, envenenando as almas e arruinando as vidas de milhares. Nem o gênio de Shakespeare seria capaz de tornar a teologia de Milton poética. Na literatura mundial não há qualquer coisa mais completamente absurda – salvo os “livros sagrados”.

Tivemos Pensamentos Noturnos de Young, e eu supunha que o autor era um indivíduo excepcionalmente e apaixonadamente devoto ao Senhor. Young desejava muito ser um bispo, e para tal fim fez campanha eleitoral junto à esposa do rei. Em outras palavras, ele era um bom e velho hipócrita. Em Pensamentos Noturnos são raras as linhas genuinamente honestas, naturais. É pretensão do início ao fim – não queria escrever o que sentia, mas o que pensava que deveria sentir.

Tivemos Curso do Tempo de Pollock, com seu verme que nunca morre, suas chamas inexauríveis, suas aflições sem fim, seus demônios maliciosos e seu Deus perversamente exultante. Este aterrorizante poema deveria ter sido escrito num manicômio. Nele se encontram todos os gritos, gemidos e guinchos dos maníacos quando rasgam e despedaçam a carne um dos outros. É tão cruel, horrendo e infernal quanto o 32° capítulo de Deuteronômio.

Todos conhecemos o belo hino que se inicia com esta alegre linha: “Ouve-se das tumbas um som tormentoso”. Nada poderia ser mais apropriado às crianças. Não há problema em colocar um caixão onde pode ser avistado do berço. Enquanto uma mãe amamenta seu filho, uma sepultura aberta deve estar aos seus pés. Isto tende a tornar o bebê sério, reflexivo, religioso e miserável.

Deus odeia o riso e despreza a alegria. Sentir-se livre, desatado, irresponsável, alegre; esquecer-se do rigor e da morte; inundar-se com a luz do Sol sem medo da noite; esquecer-se o passado, não criar expectativas quanto ao futuro, nenhum sonho de Deus, céu ou inferno; embriagar-se do presente; ter consciência somente do abraço e beijo do ser amado – tudo isto é pecado contra o Espírito Santo.

Tivemos também os poemas de Cowper. Cowper era sincero, o oposto de Young. Tinha um olho observador, um coração sensível e um senso artístico. Simpatizava com todos os sofredores – os encarcerados, os escravizados e os desterrados. Amava o belo. Não surpreende que a crença na punição eterna tenha enlouquecido esta amável alma. Não surpreende que as “boas novas” tenham apagado a grande estrela da Esperança, deixando seu coração despedaçado na escuridão do desespero.

Tivemos muitos volumes de sermões ortodoxos repletos da ira e do terror do julgamento final – sermões concebidos por santos selvagens.

Tivemos o livro de Mártires, demonstrando que os cristãos por muitos séculos imitaram o Deus ao qual adoravam.

Tivemos a história de Waldenses – da reforma da Igreja. Tivemos o Progresso de Pilgrim, a Chamada de Baxter e a Analogia de Butler.

Para falar no palavreado ocidental, acho que o Bispo Butler encontrou mais cobras do que matou – sugeriu mais dificuldades que explicações, mais dúvidas que respostas.

Minha juventude passou-se em meio a estes livros. Todas as sementes do cristianismo – da superstição – foram semeadas e cultivadas em minha mente com grande diligência e esmero.



IV


Todo o tempo estava alheio a quaisquer ciências, desconhecia totalmente o outro lado – não sabia nada sobre todas as objeções levantadas contra as Sagradas Escrituras ou contra o perfeito credo Congregacional. Obviamente tinha ouvido os ministros falarem sobre blasfemadores, infiéis infames e zombeteiros que riam das coisas sacras. Eles não refutaram seus argumentos, mas despedaçaram seu caráter e demonstraram através da fúria assertiva que estavam a serviço do Diabo. Mesmo assim, apesar de tudo que ouvi, apesar de tudo que li, não conseguia acreditar. Meu coração e minha mente diziam Não.

Por algum tempo abandonei os sonhos, as insanidades, as ilusões, as desilusões e os pesadelos da teologia. Estudei um pouco de astronomia; examinei os mapas dos céus; aprendi os nomes de algumas das constelações, de algumas estrelas; pesquisei algo sobre seus volumes e velocidades com que giravam em suas órbitas; obtive uma modesta noção dos espaços astronômicos; descobri que algumas das estrelas conhecidas estavam tão distantes nas profundezas do espaço, que sua luz, viajando a trezentos mil quilômetros por segundo, levava vários anos para atingir este pequeno planeta; descobri que, quando comparada às grandes estrelas, nossa Terra reduzia-se a um simples grão de areia, um átomo; descobri que a velha crença de que o exército dos céus [estrelas] havia sido criado em benefício do homem era infinitamente absurda.

Comparei o que realmente se conhecia sobre as estrelas com a narração conforme o Gênesis. Descobri que o autor do livro inspirado não tinha qualquer conhecimento de astronomia – que era tão ignorante quanto um selvagem. Alguém imagina que o autor do Gênesis realmente sabia algo sobre o Sol, sobre seu tamanho? Que estava familiarizado com Sirius, a estrela do Norte? Que conhecia algo sobre as constelações tão distantes que sua luz levou dois milhões de anos para chegar aos nossos olhos?

Se tivesse consciência desses fatos, teria dito que Jeová trabalhou por quase seis dias para fazer este mundo, mas apenas levou parte da tarde do quarto dia para fazer o Sol e Lua e todas as estrelas?

Todavia, milhões de pessoas insistem que o escritor do Gênesis estava inspirado pelo Criador.

Agora, os homens inteligentes que não estão amedrontados, cujos cérebros não foram paralisados pelo medo, sabem que a sagrada história da criação foi escrita por um selvagem ignorante. Sabem que a história é incompatível com os fatos conhecidos e que todas as estrelas que reluzem nos céus atestam que seu autor era um bárbaro isento de qualquer inspiração.

Admito que o desconhecido autor do Gênesis foi sincero, que escreveu o que acreditava ser a verdade, que fez o melhor que pôde. Ele não alegou estar inspirado, não fingiu que a história lhe havia sido contada por Jeová, mas simplesmente expôs os “fatos” assim como os compreendia.

Após aprender um pouco sobre as estrelas, conclui que este escritor – este escriba “inspirado” – havia sido iludido por mitos e lendas, e que não sabia mais sobre a criação que o teólogo médio de meu tempo. Em outras palavras, não sabia absolutamente coisa alguma.

Permitam-me, aqui, dizer aos ministros que estão me contestando para virarem suas armas noutra direção. Esses reverendos deveriam atacar os astrônomos. Deveriam anatematizar e envilecer Kepler, Copérnico, Newton, Herschel e Laplace, pois estes homens foram os verdadeiros destruidores da história sagrada. Então, após terem-se livrado deles, podem mover guerra contra as estrelas e contra o próprio Jeová, por ter fornecido evidências contra a veracidade de seu livro.

Depois estudei um pouco de geologia. Apenas o suficiente para conhecer algo sobre as principais descobertas e as conclusões a que se havia chegado. Aprendi algo sobre a ação do fogo e da água; sobre a formação das ilhas e dos continentes; sobre as rochas sedimentares e ígneas; sobre as medidas de carvão; sobre escarpas calcárias; algo sobre recifes de coral; sobre os depósitos criados por rios, sobre o efeito dos vulcões, das geleiras e de todo o mar circundante – apenas o suficiente para concluir que as rochas laurencianas(1) eram milhões de anos mais antigas que a grama sob meus pés; apenas o suficiente para sentir-me seguro de que este planeta tem feito sua rota ao redor do Sol, alternando entre dia e noite, por centenas de milhões de anos; apenas o suficiente para saber que o autor “inspirado” não sabia coisa alguma sobre a história da Terra; que não entendia qualquer coisa sobre as grandes forças da natureza – sobre o vento, as ondas e o fogo –, sobre as forças que vêm destruindo e construindo, que vêm arruinando e criando através de incontáveis anos.

E me permitam mais uma vez dizer aos ministros que não devem desperdiçar seu tempo me contestando. Devem contestar os geólogos. Devem negar os fatos descobertos. Devem arremessar suas maldições contra os oceanos blasfemos e investir suas cabeças contra as rochas infiéis.

Então estudei um pouco de biologia. Apenas o suficiente para saber alguma coisa sobre as formas animais; apenas o suficiente para saber que a vida já existia quando as rochas laurencianas formaram-se; apenas o suficiente para saber que implementos de pedra – implementos forjados por mãos humanas – haviam sido encontrados misturados a ossos de animais atualmente instintos, ossos que haviam sido partidos por estes instrumentos, e que estes animais já haviam deixado de existir centenas de milhares de anos antes de Adão e Eva terem sido manufaturados.

Então tive certeza de que o registro “inspirado” era falso, que milhões de pessoas haviam sido enganadas e que tudo que me ensinaram sobre a origem do mundo e dos homens era uma inverdade. Percebi que o Velho Testamento era obra de homens ignorantes; que era uma mescla de verdades e falsidades, sabedoria e tolice, crueldade e bondade, filosofia e absurdidade; que continha alguns pensamentos elevados, alguma poesia, uma boa quantidade de solenidade e trivialidade, algumas orações histéricas, algumas ternas e algumas pervertidas, algumas previsões malucas, algumas delusões e alguns sonhos caóticos.

É evidente que os teólogos combateram os fatos descobertos pelos geólogos, pelos cientistas, buscando sustentar a veracidade das Sagradas Escrituras. Pegaram equivocadamente os ossos de um mastodonte, pensando serem humanos, e com eles orgulhosamente provaram que “naquele tempo havia gigantes sobre a terra” (Cf. Gênesis 6:4). Justificaram a existência dos fósseis dizendo que Deus havia os criado para testar nossa fé ou que o Demônio havia imitado a obra do Criador.

Contestaram os geólogos dizendo que os “dias” no Gênesis eram longos períodos de tempo e que, afinal, o dilúvio talvez poderia ter sido um fenômeno local. Disseram aos astrônomos que o Sol e Lua foram apenas aparentemente parados, não literalmente; que a aparência foi produzida pela reflexão e refração da luz.

Justificaram a escravidão, a poligamia, os roubos e os assassinatos sancionados no Velho Testamento dizendo que o povo estava tão degradado que Jeová foi forçado a amoldar-se à sua ignorância e aos seus preconceitos.

O clero tentou de todo modo eludir os fatos, evitar a verdade, para preservar a crença.

A principio simplesmente negaram os fatos; em seguida os banalizaram; depois os harmonizaram; e finalmente negaram tê-los negado. Então mudaram o significado do livro “inspirado” a fim de torná-lo compatível aos fatos. Primeiro disseram que se os fatos, conforme alegados, eram verdadeiros, então a Bíblia era falsa e o próprio cristianismo uma superstição. Posteriormente disseram que os fatos, conforme alegados, eram verdadeiros, e que estabeleciam acima de quaisquer dúvidas a inspiração da Bíblia e a origem divina da religião ortodoxa.

Tudo que não puderam driblar, engoliram. Tudo que não puderam engolir, driblaram.

Desisti do Velho Testamento devido aos seus erros, seus absurdos, sua ignorância e sua crueldade. Desisti no Novo Testamento porque asseverava a veracidade do Velho; desisti dele por causa de seus milagres, de suas contradições; desisti porque Cristo e seus discípulos acreditavam na existência de demônios – os expulsavam das pessoas e animais, conversavam e faziam acordos com eles.

Somente isso basta. Sabemos, se é que sabemos alguma coisa, que demônios não existem, que Cristo nunca os expulsou e que, se fingiu tê-lo feito, era ignorante, desonesto ou maluco.

Essas histórias sobre demônios demonstram a origem humana e ignorante do Novo Testamento. Desisti do Novo Testamento porque recompensa a credulidade e amaldiçoa os homens corajosos e honestos, porque ensina o horror infinito da dor eterna.


V


Visto que passei minha juventude lendo livros sobre religião – sobre o “renascer”, sobre a desobediência dos nossos primeiros pais, sobre a expiação, a salvação através da fé, a perversidade do prazer, as degradantes conseqüências do amor, a impossibilidade de se alcançar o céu através da honestidade e da generosidade –, e tendo me tornado relativamente enfastiado de pensamentos embotados e confusos, então se pode imaginar minha surpresa, meu encanto ao ler os poemas de Robert Burns.

Estava familiarizado com escritos de devotos hipócritas, de fanáticos insensíveis, de puritanos sem coração. Mas aqui estava um homem honesto por natureza. Conhecia as obras daqueles que consideravam toda a natureza depravada e viam o amor como a herança e o eterno testemunho do pecado original. Mas aqui estava um homem que tirava alegria do lodo, que transformava camponesas em deuses e entronava os homens honestos. Um indivíduo cuja simpatia, com braços amorosos, abraçava todas as formas de vida sofredora; que odiava toda espécie de escravidão; que era tão natural quanto o azul do céu; que possuía um humor tão aprazível quanto um dia de outono; cuja inteligência era tão afiada quanto a lança de Ituriel(2) e cujo desprezo era tão devastador quanto o sopro do simum(3). Um homem que amava este mundo, esta vida, as coisas do dia-a-dia, e que colocava acima de tudo o êxtase do amor humano.

Li e reli, com arrebatamento, lágrimas e sorrisos, sentindo que por entre aquelas linhas pulsava um grandioso coração.

Os poetas religiosos, lúgubres, artificiais e espirituais foram esquecidos ou permaneceram apenas como fragmentos, tênues lembranças dos horrores de monstruosos sonhos distorcidos.

Finalmente havia encontrado um homem natural, que desprezava o credo cruel de sua pátria, que era corajoso e sensível o suficiente para dizer: “Todas as religiões são velhas fábulas; um homem honesto não tem nada a temer, nem neste mundo, nem em outros”.

Um homem que teve gênio para escrever a Prece de São Willie, um poema que crucificou o calvinismo e trespassou seu árido coração com a lança do bom senso, um poema que transformou toda crença ortodoxa em objeto de desprezo e infinito escárnio.

Burns tinha seus defeitos, suas fragilidades. Era intensamente humano. Ainda assim, eu preferiria aparecer bêbado na “Cadeira do Julgamento” e dizer que era o autor de “Homens são homens por isto” que estar perfeitamente sóbrio e admitir que havia vivido e morrido como um presbiteriano escocês.

Li Cain de Byron, no qual, como em Paraíso Perdido, o Demônio parece ser o melhor deus – li suas maravilhosas, sublimes e pungentes linhas; li seu Prisioneiro de Chillon – seu melhor –, um poema que encheu meu coração de ternura, de piedade e de ódio ferrenho à tirania.

Li Rainha Mab de Shelley, um poema repleto de beleza, coragem, reflexão, benevolência, lágrimas e desprezo, no qual uma alma corajosa derruba as paredes da prisão e inunda celas com luz. Li A uma Cotovia, uma chama alada, apaixonada como sangue, terna como uma lágrima, pura como a luz.

Li Keats, “cujo nome estava escrito em água”; li As vésperas de santa Inês, uma história contada com uma arte tão espontânea que este pobre mundo trivial transforma-se num mundo encantado; Ode a uma urna grega, que preenche a alma com um amor eternamente sequioso, com todo o arrebatamento da canção imaginada; Ode a um Rouxinol, uma melodia que encerra a memória da manhã, uma melodia que se desvanece num ocaso entre lágrimas, assaltando os sentidos com sua perfeição.

Então li Shakespeare, as peças, os sonetos, os poemas – li tudo. Contemplei um novo céu e uma nova Terra; Shakespeare, que conhecia a mente o coração do homem – as esperanças e os medos, os amores e os ódios, os vícios e as virtudes da raça humana –, cuja imaginação leu os registros borrados por lágrimas, leu as páginas ensangüentadas de todo o passado e viu que o brilho da esperança e do amor estava ausente; Shakespeare, que sondou cada profundeza – enquanto estava no mais alto pico, suas asas lançavam suas sombras.

Comparei as peças de Shakespeare com os livros “inspirados” – Romeu e Julieta com Cântico dos Cânticos, Rei Lear com Jó e Sonetos com Salmos –, e concluí que Jeová não dominava a arte da oratória. Comparei as mulheres de Shakespeare – suas mulheres perfeitas – com as mulheres da Bíblia. Percebi que Jeová não era um escultor, não era um pintor – não era artista; carecia do poder que transforma o barro em carne; carecia da arte, do toque plástico que gera a forma impecável, do sopro que proporciona a vida livre e alegre, do gênio que dá luz à perfeição.

Os livros sagrados de todo o mundo são porcarias inúteis e pedregulhos toscos em comparação com o ouro faiscante e as gemas reluzentes de Shakespeare.


VI


Até o momento não havia lido nada contra nossa abençoada religião, salvo o que tinha encontrado em Burns, Byron e Shelley. Por acaso, acabei lendo Volney, o qual demonstra que todas religiões foram e são estabelecidas de modo idêntico: todas tiveram seus Cristos, seus apóstolos, seus milagres e seus livros sagrados; e então pergunta como se poderia decidir qual delas é a verdadeira – uma pergunta que ainda aguarda por resposta.

Li Gibbon, o maior dos historiadores, que dominava seus fatos com tanta maestria quanto César dominava as suas legiões. Aprendi que cristianismo é apenas outro nome para paganismo – para a antiga religião, despojada de sua beleza; aprendi que alguns absurdos foram trocados por outros, que alguns deuses foram mortos, que uma multidão de demônios foi criada e que o inferno foi aumentado.

E então li A Era da Razão, de Thomas Paine. Permitam-me dizer uma palavra sobre este sublime homem difamado. Ele veio a este país(4) logo antes da Revolução; trouxe uma carta de apresentação de Benjamin Franklin, naquela época o maior dos americanos.

Na Filadélfia, Paine foi contratado como redator da Pennsylvania Magazine. Sabemos que escreveu pelo menos cinco artigos. O primeiro era contra a escravidão; o segundo era contra a contenda; o terceiro era sobre o tratamento de prisioneiros – demonstrando que o objetivo deveria ser reformá-los, não puni-los nem degradá-los; o quarto era sobre os direitos das mulheres; o quinto era em favor da formação de entidades voltadas à prevenção de crueldades contra crianças e animais.

A partir disso pode-se perceber que ele sugeriu as grandes reformas de nosso século.

A verdade é que este homem trabalhou toda a sua vida pelo bem de seus semelhantes; moveu mais esforços para fundar a Grande República que qualquer outro homem sob a nossa bandeira.

Apresentou seus pensamentos sobre religião – sobre as Sagradas Escrituras, sobre as superstições de seu tempo. Era perfeitamente sincero, e tudo que disse era bondoso e justo.

A Idade da Razão encheu de ódio os corações daqueles que amavam seus inimigos; o ocupante de todo púlpito ortodoxo tornou-se, e ainda é, um ferrenho detrator de Thomas Paine.

Ninguém respondeu – nem irá responder – suas objeções à Bíblia, seus argumentos contra o dogma da inspiração.

Ele não se insurgiu contra todas as superstições de seu tempo. Apesar de odiar Jeová, louvava o Deus da Natureza, o criador e preservador de tudo. Mas nisto estava equivocado, pois, como Watson disse em sua resposta a Paine, o Deus da Natureza é tão insensível e cruel quanto o Deus da Bíblia.

Todavia, Paine foi um dos pioneiros, um dos titãs, um dos heróis que, de bom grado, dedicaram suas vidas inteiras, cada ato, cada pensamento, à civilização e à emancipação da humanidade.

Li Voltaire, o maior homem de seu século, o qual fez mais pela liberdade de pensamento e de expressão que quaisquer outros seres humanos ou “divinos”. Voltaire, que despedaçou a máscara da hipocrisia, encontrando por detrás do sorriso a carantonha do ódio. Voltaire, que combateu a selvageria da lei, as decisões cruéis de cortes venais; que resgatou vítimas de rodas(5) e ecúleos(6). Voltaire, que travou guerra contra a tirania dos tronos, a ganância e a perversidade do poder. Voltaire, cujo intelecto arremessou setas farpadas e envenenadas contra os padres; que fez os devotos hipócritas, que o condenaram publicamente, rirem de si mesmos por dentro. Voltaire, que tomou o partido dos oprimidos, resgatou os desafortunados, defendeu os humildes e os fracos, civilizou juízes, revogou leis e aboliu a tortura em sua terra natal.

Em todas direções, este homem incansável combateu o absurdo, o milagroso, o sobrenatural, o idiota, o injusto. Não tinha reverência à ascendência. Não se intimidava ante o esplendor e a pompa, ante o crime coroado, ante a afetação mitrada. Sob a coroa viu um criminoso; sob a mitra, um hipócrita.

Como sentença de sua consciência, de sua razão, pronunciou seu julgamento contra toda a barbárie de seu tempo – um julgamento que vem sendo corroborado pelo mundo inteligente. Voltaire acendeu a tocha e passou aos outros a chama sagrada – cuja luz ainda brilha, e continuará brilhando enquanto o homem amar a liberdade e buscar a verdade.

Li Zenão, o homem que, séculos antes do nascimento de Cristo, disse que os homens não têm direito de posse sobre seus semelhantes: “Não importa se você reivindica a posse de um escravo por compra ou captura, é um pretexto injusto. Aqueles que alegam direitos de posse sobre seus semelhantes estão fitando a mina e esquecendo-se de que a justiça deveria governar o mundo”.

Familiarizei-me com Epicuro, que ensinava a religião da utilidade, da temperança, da coragem e da sabedoria, e que disse: “Por que temer a morte? Enquanto eu sou, a morte não é; e, quando ela for, eu já não serei. Por que deveria temer o que não pode ser enquanto sou?”.

Li sobre Sócrates, o qual, na ocasião do julgamento que decidiria o destino de sua vida, disse a seus juízes, entre outras coisas, estas magníficas palavras: “Não faço outra coisa a não ser convencer-vos, jovens e velhos, de que não deveis vos preocupar nem com o corpo, nem com as riquezas, nem com qualquer outra coisa antes e mais que com a alma, a fim de que ela se torne excelente e muito virtuosa”.

Então li sobre Diógenes, o filósofo que odiava a superfluidade, o inimigo do desperdício e da ganância. Este um dia entrou no templo, aproximou-se respeitosamente do altar, esmagou um pilho entre seus dedos, e disse solenemente: “O sacrifício de Diógenes a todos os Deuses”. Isto parodiou a adoração de todo o mundo, escarneceu todas as crenças, condensou toda a essência da religião num único ato.

Diógenes devia conhecer esta passagem “inspirada”: “sem derramamento de sangue não há remissão”. (Cf. Hebreus 9:22 e Levítico 17:11)

Comparei Zenão, Epicuro e Sócrates – três pagãos difamados que nunca chegaram a conhecer o Velho Testamento ou os Dez Mandamentos – com Abraão, Isaac e Jacó – os três favoritos de Jeová –, e fui depravado o suficiente para considerar os pagãos superiores aos patriarcas – e também ao próprio Jeová.


VII


Minha atenção agora se voltava às outras religiões: aos livros sagrados, às crenças e às cerimônias de outras terras – da Índia, do Egito, da Assíria, da Pérsia e de nações extintas ou decadentes.

Concluí que todas as religiões tinham o mesmo fundamento: a crença no sobrenatural, num poder acima da natureza, o qual o homem poderia influenciar através da adoração, com sacrifícios e orações.

Descobri que todas as religiões assentavam-se sobre uma concepção equivocada da natureza; que a religião de um povo constituía a ciência daquele povo, ou seja, sua explicação do mundo – da vida e da morte, da origem e do destino.

Percebi que todas religiões tinham substancialmente a mesma origem; que, na verdade, nunca houve senão uma religião no mundo. Os ramos e as folhas podem diferir, mas o tronco é o mesmo.

O nível da religiosidade de um pobre africano que derrama seu coração a uma divindade de pedra é idêntico ao de um padre de batina que suplica ao seu Deus. É o mesmo erro, a mesma superstição que dobra os joelhos e fecha os olhos de ambos. Os dois pedem ajuda ao sobrenatural; nenhum desconfia da absoluta uniformidade da natureza.

Parece-me provável que a primeira cerimônia religiosa organizada tenha sido a adoração do Sol. O Sol era o “Pai Céu”, o “Onividente” – a fonte da vida, a lareira do mundo. O Sol era considerado um deus que combatia a escuridão, a qual representava o poder do mal, o inimigo do homem.

Houve muitos deuses-sol; parecem ter sido as divindades mais importantes das religiões antigas; foram adorados em muitas terras, por muitas nações já extintas.

Apolo era um deus-sol que combateu e conquistou a serpente da noite. Baldur era um deus-sol apaixonado pela Aurora – uma donzela. Krischna era um deus-sol; em seu nascimento o Ganges foi estremecido desde sua nascente até sua foz, e todas as árvores – tanto as vivas quanto as mortas – floresceram. Hércules era um deus-sol. Também o era Sansão, cuja força estava em seus cabelos, ou seja, em seus raios; Dalila – a sombra, a escuridão – foi quem o despojou de sua força. Osíris, Baco, Mitra, Hermes, Buda, Quetzalcoatl, Prometeu, Zoroastro, Perseu, Cadom, Lao-tsé, Fo-hi, Horus, Ramsés – todos eram deuses-sol.

Todos esses deuses descendiam de pais deuses e de mães virgens. O nascimento de quase todos era anunciado pelas estrelas – celebrado por uma música celestial –, e vozes declaravam que uma bênção havia chegado ao mundo desventurado. Todos esses deuses nasceram em lugares humildes – em cavernas, sob árvores, em estalagens –, e tiranos tentaram matá-los quando eram bebês. Todos esses deuses-sol nasceram no solstício de inverno – no natal. Quase todos eram adorados por “homens sábios”. Todos jejuaram por quarenta dias. Todos ensinavam através de parábolas. Todos realizaram milagres. Todos tiveram uma morte violenta. Todos ressuscitaram.

A história desses deuses é exatamente igual à história de nosso Cristo.

Isso não é uma coincidência, não é um acidente. Cristo era um deus-sol. Cristo era um novo nome para o último sobrevivente dos deuses-sol. Cristo não foi um homem, mas um mito – não uma vida, mas uma lenda.

Descobri que não apenas nosso cristo era um plágio, mas que todos nossos sacramentos, símbolos e cerimônias eram legados oriundos de um passado já sepultado. Nada é original no cristianismo.

A cruz já era um símbolo milhares de anos antes de nossa era. Era o símbolo da vida, da imortalidade – do deus Agni –, e foi entalhada sobre tumbas muitas eras antes de a primeira linha da Bíblia ter sido escrita.

O batismo é muito mais antigo que o cristianismo – que o judaísmo. Hindus, egípcios, gregos e romanos já tinham sua Água Sagrada muito antes de o primeiro católico ter nascido. A eucaristia foi apropriada dos pagãos. Ceres era a deusa dos campos e Baco o deus do vinho; durante o festival da colheita faziam bolos trigo e diziam: “Esta é a carne de nossa deusa”; bebiam vinho e bradavam: “Este é o sangue de nosso deus”.

Os egípcios tinham uma Trindade. Adoravam Osíris, Isis e Horus muito antes de o Pai, o Filho e o Espírito Santo tornarem-se conhecidos.

A Árvore da Vida cresceu na Índia, na China e entre os Astecas bem antes de o Jardim do Éden ter sido plantado.

Outras nações já tinham seus livros sagrados muito antes de nossa Bíblia ter sido conhecida.

Os dogmas da Queda do Homem, da Expiação e da Salvação pela Fé são muito anteriores à nossa religião.

Nada em nosso sagrado evangelho é novidade, nada é original em nosso “esquema divino”. É tudo antigo – tudo emprestado, recortado e remendado.

Percebi que todas as religiões foram produzidas naturalmente – que eram todas variantes de uma só –, e então concluí que não passavam de obras humanas.


VIII


Os teólogos sempre insistiram que seu Deus era o criador de todos os seres viventes; que as formas, partes, funções e cores dos animais eram expressão de sua imaginação, gosto e sabedoria; que os fez exatamente como são atualmente; que inventou barbatanas, pernas e asas; que os equipou com armas e proteções; que os fez em harmonia com o alimento e o clima, levando em consideração todos os fatos que afetam a vida.

Eles insistiam que o homem era uma criação especial, desvinculado totalmente dos animais abaixo dele. Também afirmavam que todas as formas de vegetação atuais – desde os musgos até as florestas – são as mesmas desde sua criação.

Homens de gênio, em sua maioria isentos de preconceitos religiosos, estavam examinando essas coisas, estavam procurando por fatos. Estavam examinando os fósseis de animais e plantas; as formas dos animais – seus ossos e músculos, os efeitos do clima e da alimentação, as estranhas modificações pelas quais haviam passado.

Humboldt publicou suas dissertações repletas de grandes pensamentos, de esplêndidas generalizações, com sugestões que estimulavam o espírito investigativo e com conclusões que satisfaziam a mente. Demonstrou a uniformidade da Natureza – o parentesco entre tudo que vive e cresce, entre tudo que respira e pensa.

Darwin, com Origem das Espécies, com suas teorias sobre a Seleção Natural – a sobrevivência dos mais aptos – e sobre a influência do meio-ambiente derramou uma torrente luminosa sobre as grandes questões da vida animal e vegetal.

Essas coisas haviam sido conjeturadas, profetizadas, afirmadas e insinuadas por muitos outros, mas Darwin, com perfeito esmero, com infinita paciência e honestidade, encontrou os fatos, cumpriu as profecias e demonstrou a veracidade das hipóteses, insinuações e afirmações. Ele foi, em minha opinião, o mais arguto observador, o melhor juiz do significado e do valor de um fato, o maior Naturalista que o mundo já produziu.

A visão teológica começou a parecer pequena e reles.

Spencer propôs sua teoria da evolução e respaldou-a com inúmeros fatos. Colocando-se a grande altitude, com os olhos de um filósofo, de um profundo pensador, perscrutou o mundo. Ele influenciou o pensamento dos mais sábios.

A teologia parecia mais absurda que nunca.

Huxley tomou o partido dos darwinistas. Nenhum homem jamais teve uma espada mais afiada e um escudo mais eficiente. Ele desafiou o mundo. Os grandes teólogos e os pequenos cientistas – aqueles com mais coragem que inteligência – aceitaram o desafio. O que restou de seus pobres corpos foi carregado pelos seus amigos.

Huxley tinha a inteligência, a dedicação, o gênio e a coragem para expressar seu pensamento. Ele foi absolutamente leal ao que julgava ser verdadeiro. Sem preconceitos ou temores, seguiu as pegadas da vida desde as formas mais simples até as mais sofisticadas.

A teologia parecia ainda menor.

Haeckel partiu da célula mais simples e, de mudança em mudança, de forma em forma, seguindo a linha do desenvolvimento, o caminho da vida, chegou à raça humana. Tudo isso naturalmente, sem recorrer a interferências externas.

Li as obras destes grandes homens e de muitos outros, e me convenci que de eles estavam certos e de que os teólogos – todos os crentes da “criação especial” – estavam absolutamente errados.

O Jardim do Éden desvaneceu; Adão e Eva viraram pó; a serpente rastejou de volta à grama; Jeová tornou-se um miserável mito.


IX


Então dei outro passo. Perguntei: que é a matéria, a substância? Pode ser destruída, aniquilada? Será possível conceber a destruição do menor átomo de substância? Um sólido pode ser triturado até virar pó, pode ser transformado em líquido, o líquido pode ser transformado em gás – mas tudo continua existindo. Nada é perdido, nada é destruído.

Deixe que um Deus infinito – se é que existe – ataque um grão de areia com seu infinito poder. Ele não poderá destruí-lo. A substância desafia toda a força, é indestrutível.

Então dei mais um passo.

Se a matéria é indestrutível, se não pode ser aniquilada, então não pode ter sido criada.

Tudo que é indestrutível também é necessariamente incriável.

Então perguntei: que é força? Não podemos conceber a criação ou a destruição da força. Ela pode ser convertida de uma forma para outra – de mecânica para calórica –, mas não pode ser destruída, não pode ser aniquilada.

Se a força não pode ser destruída, não pode ter sido criada. Portanto, é eterna.

Outra coisa: a matéria não pode existir à parte da força; a força não pode existir à parte da matéria. A matéria não poderia ter existido antes da força; a força não poderia ter existido antes da matéria. Matéria e força só podem ser concebidas em conjunto. Isso tem sido demonstrado por vários cientistas, mas mais contundentemente por Buchner.

O pensamento é uma forma de força, conseqüentemente não pode ter causado ou criado a matéria. A inteligência é uma forma de força, por isso não pode ter existido sem ou à parte da matéria. Sem substância não pode haver uma mente, nem vontade, nem qualquer espécie de força; não poderia ter existido substância sem força.

A matéria e a força não foram criadas. Existiram desde a eternidade. São indestrutíveis.

Não houve, não há um criador. Então veio a questão: Existe um Deus? Existe um ser infinitamente inteligente, bondoso e poderoso que governa o mundo?

Pode haver bondade sem muita inteligência, mas parece-me que a inteligência perfeita e a bondade perfeita precisam existir necessariamente em conjunto.

Na natureza coexistem – pelo menos ao meu ver – bem e mal, inteligência e ignorância, bondade e crueldade, dedicação e desprezo, economia e desperdício. Vejo meios que não cumprem seus fins; desígnios que parecem malograr.

Parece-me infinitamente cruel que a vida alimente-se da vida – criar animais que devoram outros animais.

Enchem-me de horror os dentes, os bicos, as garras e as presas que rasgam e dilaceram. O que pode ser mais apavorante que um mundo em guerra? Em cada folha, um campo de batalha; em cada flor, um gólgota; em cada gota de água, perseguição, captura e morte. Em cada sombra, vida à espreita de vida. Em cada folha de grama, algo que mata e algo que sofre. Em todo lugar, o forte vivendo às custas do fraco, o superior vivendo às custas do inferior. Em todo lugar, o fraco, o insignificante vivendo às custas do forte, o inferior às custas do superior, o mais elevado servindo de alimento ao mais baixo – o homem sendo sacrificado em nome de micróbios.

Morticínio universal. Em todo local, dor, enfermidade e morte. Morte esta que não aguarda por cabelos grisalhos, mas abraça bebês e jovens felizes; morte esta que separa a mãe de sua criança frágil e indefesa; morte esta que preenche o mundo com dor e lágrimas.

Como o cristão ortodoxo pode explicar tais coisas?

Sei que a vida é boa. Lembro-me da luz do Sol e da chuva, mas então penso nos terremotos e nas inundações. Não esqueço da saúde e da colheita, do lar e do amor, mas o que dizer da pestilência e da fome? Não consigo harmonizar todas essas contradições, essa mescla de bênçãos e agonias, com a existência de um Deus infinitamente bondoso, sábio e poderoso.

O teólogo diz que o chamado mal existe para nosso bem; que fomos colocados neste mundo de pecado e arrependimento para que com isso desenvolvêssemos o caráter. Se isso é verdade, então por que crianças morrem? Milhões e milhões morrem nos braços de suas mães após uns poucos suspiros. Eles nem chegam a ter chance de desenvolver seu caráter.

O teólogo diz que serpentes receberam presas para protegerem-se de seus inimigos. Mas por que o mesmo Deus que as fez também fez seus inimigos? Por que muitas espécies de serpentes não têm presas?

O teólogo diz que Deus encouraçou o hipopótamo, que cobriu seu corpo – exceto na região inferior – com placas e escamas que outros animais não podiam perfurar com dentes ou presas. Mas este mesmo Deus fez os rinocerontes e dotou-os de um chifre no nariz, com o qual estripam o hipopótamo.

Este mesmo Deus fez a águia, o urubu, o falcão e as suas vítimas indefesas.

Para cada desígnio positivo parece haver outro negativo.

Se Deus criou o homem, se é o pai de todos nós, então por que fez os criminosos, os loucos, os deformados e os débeis mentais?

Os homens inferiores deveriam agradecer a Deus? A mãe que embala em seu seio uma criança com retardamento mental deveria agradecer a Deus? Um indivíduo escravizado deveria agradecer a Deus?

O teólogo diz que Deus governa os ventos, as chuvas e os raios. Então o que dizer dos ciclones, das inundações, das secas e dos fulgurantes relâmpagos que matam?

Suponhamos que existisse um homem neste país que pudesse controlar os ventos, as chuvas e os raios. Suponhamos que houvéssemos elegido-o para governar tais coisas, e que ele tivesse permitido que estados inteiros secassem e definhassem ao mesmo tempo em que desperdiçava água com chuvas no oceano. Suponhamos que permitisse que ventanias destruíssem cidades e transformassem milhares de corpos de homens e mulheres em rubros despojos amórficos; que permitisse que relâmpagos ceifassem a vida de mães e bebês. O que diríamos? O que pensaríamos deste selvagem?

Ainda assim, de acordo com os teólogos, este fado representa exatamente a vontade Deus.

O que pensaríamos de um homem que decide não proteger seus amigos quando possui plenos poderes para fazê-lo? Por que o Deus cristão permitiu que seus inimigos torturassem e incinerassem seus amigos, seus adoradores?

Quem é suficientemente ingênuo para pretender explicar tais coisas?

Faz sentido que um homem infinitamente bondoso e infinitamente poderoso permita que inocentes sejam encarcerados, acorrentados em calabouços e vejam suas vidas passarem por entre suspiros cansados e paredes úmidas?

Se Deus governa o mundo, por que a inocência não é um escudo perfeito? Por que a injustiça triunfa?

Quem pode responder a essas perguntas?

A única resposta digna de um homem inteligente e honesto é esta: eu não sei.


X


Se este Deus existe, deve ser uma pessoa, um ser consciente. Quem é capaz de imaginar uma personalidade infinita? Este Deus deve possuir força, e não somos capazes de conceber força separadamente da matéria. Este Deus deve ser material. Deve possuir meios através dos quais transforma força no que denominamos pensamento. Quando pensa, usa força, e esta força precisa ser restituída. Ainda assim, nos dizem que ele é infinitamente sábio. Se for, então ele não pensa. O pensamento é uma escada, um processo pelo qual chegamos a uma conclusão. Aquele que já conhece tudo não pensa. Não pode ter esperanças ou temores. O conhecimento perfeito exclui a paixão, a emoção. Se Deus é infinito, não tem desejos, pois já possui tudo, e quem não deseja, não age. O infinito jaz na serenidade eterna.

Conceber tal ser é tão impraticável quando imaginar um triângulo quadrado ou um círculo sem diâmetro.

Ainda assim nos dizem que temos o dever de amar a Deus. Podemos amar o desconhecido, o inconcebível? É possível que o amor surja por obrigação? É nosso dever agir com justeza, com honestidade, mas amar não pode ser imposto como dever. É impossível obrigar alguém a admirar um quadro, a encantar-se com um poema ou a emocionar-se com uma música. A admiração não pode ser controlada. O amor e o gosto não estão sujeitos à vontade. O amor é necessariamente livre, surge do coração como o perfume de uma flor.

Há incontáveis anos os homens e as mulheres vêm tentando amar os deuses, tentando abrandar seus corações e conseguir sua ajuda.

Vejo-os todos, o panorama desfila ante meus olhos. Vejo-os com as mãos estendidas e os olhos reverentemente fechados em adoração ao Sol. Vejo-os curvando-se diante de meteoritos por medo; suplicando a serpentes, bestas e árvores sagradas; rezando para ídolos esculpidos em madeira e pedra. Vejo-os erigindo altares para poderes invisíveis e manchando-os com o sangue de crianças e animais. Vejo incontáveis padres e ouço seus cantos solenes. Vejo as vítimas moribundas, os altares fumegantes, os incensários pendulantes e as nuvens elevando-se. Vejo homens semideuses – os desafortunados Cristos de muitas terras. Vejo acontecimentos triviais do dia-a-dia se transformando em milagres ao serem passados de boca a boca. Vejo os profetas insanos lendo o livro secreto do destino através de sinais e sonhos. Vejo-os todos. Os assírios cantando as preces de Assur e Ishtar; os hindus adorando Brahma, Vishnu e Draupadi; os caldeus fazendo sacrifícios a Bel e Rea; os egípcios curvando-se a Ptah, Osíris e Ísis; os medos aplacando a tempestade e adorando o fogo; os babilônios suplicando a Bel e Merodach. Vejo-os todos ao redor do Eufrates, do Tigre, do Ganges e do Nilo. Vejo os gregos construindo templos para Zeus, Netuno e Vênus. Vejo os romanos ajoelhando-se a uma centena de deuses. Vejo outros rejeitando ídolos e devotando suas expectativas e seus medos a uma vaga imagem mental. Vejo as multidões boquiabertas aceitando mitos e fábulas de anos remotos como sendo verdades. Vejo-os dar seu trabalho, sua riqueza, para vestir padres, para construir igrejas com tetos ornamentados, corredores espaçosos e abóbadas reluzentes. Vejo-os trajando farrapos, amontoados em tocas e barracas, devorando cascas e migalhas, para que assim possam fazer mais doações a fantasmas e deuses. Vejo-os criar doutrinas cruéis e disseminar o ódio, a guerra e a morte pelo mundo. Vejo-os com as faces empoeiradas nos negros dias de peste e morte, quando as faces estão pálidas e os lábios lívidos pela falta de pão. Ouço suas orações, seus gemidos, seus suspiros. Vejo-os beijar lábios frios enquanto suas lágrimas cálidas caem sobre as faces dos falecidos. Vejo nações malograrem e desvanecerem; vejo-as sendo capturadas e escravizadas. Vejo altares abandonados ruírem; vejo templos lentamente se desfazerem em pó. Vejo seus deuses envelhecendo, adoecendo, morrendo e sendo esquecidos. Vejo-os caindo de seus tronos imaginários, desamparados e inertes; seus adoradores não recebem amparo. Vejo a injustiça triunfar; trabalhadores remunerados com chibatadas; bebês comercializados; inocentes executados em patíbulos; heróis reduzidos a cinzas. Vejo terremotos destruidores, vulcões abrasadores, ciclones famintos, inundações arrasadoras e relâmpagos letais.

As nações sucumbiram. Os deuses estão mortos. O trabalho e a riqueza perderam-se. Os templos foram construídos em vão. Todas as bocas pereceram sem resposta às suas súplicas.

Então me perguntei: existe um poder sobrenatural, uma mente arbitrária, um Deus entronado, uma vontade suprema que maneja os cordéis do mundo, que comanda tudo, à qual subordinam-se todas as causas?

Não nego, pois não sei – mas também não acredito. Creio que o natural é o supremo; que na infinita cadeia de eventos, nenhum elo pode ser quebrado ou perdido; que não há poderes sobrenaturais que possam responder às orações; que não há qualquer poder que a adoração possa persuadir ou mudar; que não há qualquer força que se importa com o homem.

Acredito que a Natureza envolve tudo com seus braços onipresentes; que não há interferências; nenhum acaso; que por detrás de cada evento há um sem-número de causas inexoráveis; que em decorrência de cada evento inevitavelmente haverá incontáveis efeitos.

Cabe ao homem proteger-se. Ele não pode depender do sobrenatural – de um pai imaginário nos céus. Deve proteger-se através da investigação dos fatos da Natureza, através do desenvolvimento de seu intelecto, para com isso sobrepujar seus obstáculos e tirar proveito das forças da Natureza.

Deus existe?

Eu não sei.

O homem é imortal?

Eu não sei.

Mas de uma coisa eu sei: nem a expectativa, nem o medo, nem a crença, nem a negação podem mudar algo. As coisas são como são; serão como devem ser.

Aguardamos e temos esperanças.


XI


Quando me convenci de que o Universo é natural, de que todos os fantasmas e deuses são mitos, a alegria da liberdade permeou todos os meus sentidos, toda a minha alma, toda a minha mente, todas as gotas de meu sangue. As paredes de minha prisão ruíram, o calabouço inundou-se de luz; todas as fechaduras, barras e grilhões dissolveram-se. Eu já não era mais um servo, um empregado ou um escravo; já não havia para mim qualquer mestre em todo o mundo – nem mesmo no infinito.

Estava livre. Livre para pensar, para expressar meus pensamentos; livre para viver meu próprio ideal; livre para viver para mim e para aqueles que amava; livre para usar todas minhas faculdades e todos meus sentidos; livre para abrir as asas da imaginação; livre para investigar, adivinhar, sonhar e expectar; livre para julgar e determinar a meu bel-prazer; livre para rejeitar todas crenças cruéis e ignorantes, todos os livros “inspirados” que selvagens produziram e todas as lendas bárbaras do passado; livre de papas e padres; livre da barreira entre os “escolhidos” e os “excluídos”; livre de todos os erros santificados e das mentiras sacrossantas; livre do medo da danação eterna; livre dos noctívagos monstros alados; livre de todos os demônios, fantasmas e deuses.

Pela primeira vez estava livre. Já não havia mais nenhum local de entrada proibida nos reinos do intelecto; nenhum ar, nenhum espaço onde a imaginação não pudesse abrir suas asas multicores; nenhuma corrente para meus membros; nenhum flagelo para minhas costas; nenhuma chama para minha carne; nenhum mestre para me intimidar ou ameaçar; nenhum caminho de outrem para ser seguido; nenhuma necessidade de obedecer, adular, rastejar ou fingir.

Estava livre. Emergi ereto, destemido e feliz. Encarei todos os mundos.

Então meu coração encheu-se de gratidão por todos heróis e pensadores que deram suas vidas pela liberdade no pensar e no agir – pela liberdade das mãos e do intelecto; por todos aqueles que pereceram ferozmente em campos de batalha; por todos aqueles que morreram acorrentados em calabouços; por todos aqueles que subiram orgulhosamente as escadas de patíbulos; por todos aqueles cujos ossos foram triturados, cuja carne foi marcada e rasgada; por todos aqueles que foram consumidos pelo fogo; por todos os indivíduos sábios, bondosos e bravos de quaisquer terras cujos pensamentos e feitos permitiram que seus filhos fossem livres.

Jurei que seguraria a tocha que eles seguraram, e que a seguraria alta, para que assim sua luz sobrepujasse a escuridão remanescente.

Sejamos honestos para conosco, honestos para com os fatos que conhecemos; e, acima de tudo, preservemos a veracidade de nossas almas.

Mesmo se deuses existirem, não temos como ajudá-los, mas temos como ajudar nosso semelhante. Não podemos amar o inconcebível, mas podemos amar nossas esposas, nossos filhos e nossos amigos.

Podemos ser honestos quanto à nossa ignorância. Se formos, quando questionados sobre o que há além do horizonte do conhecimento, devemos dizer que não sabemos; podemos dizer a verdade, e desfrutar da abençoada liberdade conquistada pelos bravos; podemos destruir os monstros da superstição, as serpentes ciciantes da ignorância e do medo; podemos expulsar de nossas mentes as aterrorizantes presas que rasgam e ferem; podemos civilizar nossos semelhantes; podemos preencher nossas vidas com ações generosas, com palavras amorosas, com arte, com música e com todo o arroubo do amor; podemos inundar nossa existência com o brilho do Sol, com o divino clima da bondade; e podemos beber até a última gota do cálice dourado da felicidade.



Notas do tradutor

1 – O mais antigo dos ciclos orogenéticos da era proterozóica. (Dic. Aurélio)

2 – A lança de Ituriel, ao menor toque, expõe a infâmia. (Cf. Paraíso Perdido, Parte IV, versos 810-813, por John Milton).

3 – Vento abrasador que sopra do centro da África para o norte. (Dic. Aurélio)

4 – Robert G. Ingersoll foi um livre-pensador americano do século XIX, ou seja, está referindo-se aos Estados Unidos.

5 – Suplício que consistia em amarrar alguém numa espécie de cruz em forma de X, quebrar-lhe os membros com uma maça e, em seguida, atar-lhe o corpo a uma roda, que se fazia girar. (Dic. Aurélio)

6 – Cavalo de madeira, no qual se torturavam os acusados ou condenados; ecúleo. (Dic. Aurélio)



Escrito em 1896 por Robert G. Ingersoll. Traduzido por André Díspore Cancian.
Disponível em:
http://ateus.net/artigos/critica/por_que_sou_agnostico.php