sábado, 20 de fevereiro de 2010

XCVI - Acerca de esboços de considerações sobre o conflito entre ideal e real enquanto discursos e da relação desse conflito com o ego.

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§ 96






1. Ao que me parece, toda crítica do real pressupõe um ideal.
1.1. Aquilo que “é” é contraposto ao que “deveria ser”.
1.1.1. Deixe-se claro que o ideal tratado aqui não é uma realidade suprasensível, mas sim, e pelo contrário, um imaginário alimentado pelo desejo.

2. Praticamente todas as filosofias se preocupam em criticar o real, pelo menos até a ascensão do pós-modernismo (se bem que podemos considerar como ideal emancipatório do pós-modernismo a ruptura definitiva com o projeto iluminista). Há também a exceção das vertentes que adotam algum tipo de pragmatismo.
2.1. Esse processo de crítica passa tanto pela construção do real quanto pela construção do ideal.
2.2 A crítica e a superação do real então surgem como uma conseqüência teleológica do contraste entre os constructos do real e do ideal.
2.2.1. Tudo como se ambos, real e ideal, não fossem, em última instância, construções arbitrárias da linguagem, baseadas em sentimentos, interesses pessoais, e intuições parciais da totalidade (que em si nunca é intuída).

3. Esse método (ou artifício?) argumentativo aparece recorrentemente na filosofia (para não falar do senso-comum, dos “formadores de opinião”, e das teorias da conspiração - as quais ainda serão tratadas mais a fundo num próximo capítulo). Kant, Schopenhauer, Nietzsche, Marx, todos eles o usaram.

4. Mas de onde vem o ideal? De onde vem a concepção de como o mundo “deveria ser”?
4.1. Da insatisfação do indivíduo.
4.2. E porque o indivíduo fica insatisfeito?
4.2.1. Porque ele não se ajusta à realidade. Porque ele não tem o que quer, porque o mundo não satisfaz ao seu ego, porque o princípio de prazer não se curvou ao princípio de realidade.
4.2.1.1 É importante salientar que todo desejo individual é alimentado pelo imaginário coletivo (e, portanto, social), e é mesmo difícil de conceber a desejabilidade de algo sem esse imaginário.(1)

5. A construção do ideal é uma forma de transpassar o real enquanto cultura, é uma forma de mudá-lo e curvá-lo às pretensões individuais, nem que imaginariamente. (O caso de Schopenhauer é um exemplo clássico disso)
5.1. A construção do ideal, enquanto discurso enunciado, ocorre concomitantemente à construção do próprio real enquanto discurso enunciado. A totalidade é “filtrada”, dela são selecionados apenas alguns aspectos, que servirão para racionalizar o real e a sua ultrapassagem pelo ideal.
5.1.1 Real e ideal, ambos são mediados pelo desejo, pela imaginação e pela linguagem. De certa forma, ambos são construídos, enquanto discurso, conjuntamente: a realidade só nos preocupa no momento que não nos satisfaz; quando isso ocorre, buscamos uma forma de superá-la. E para superá-la temos que saber o que ela é. (2)

6. Ao transpassar o real enquanto cultura, o indivíduo se reconcilia consigo mesmo, com seu ego ferido por um mundo em relação ao qual ele se recusa a se curvar.
6.1 Além disso, o indivíduo se afirma e se conforta pela promessa de uma vitória sobre o real (“o sistema”, “o mundo”, “as pessoas”, “o capitalismo”, “o demônio”, “o mal”, etc.), com sua transformação no ideal num futuro. Essa promessa é a garantia imaginária da vitória do indivíduo sobre o real, mediante o ideal.

7. Novamente, tudo isso é bastante visível na história da filosofia. Schopenhauer, Marx e Nietzsche são casos que eu conheço mais de perto.
7.1. Por exemplo, podemos salientar a escatologia subjacente ao discurso de alguns filósofos.
7.1.1. Kant: o imperativo categórico levando ao supremo bem.
7.1.2. Hegel: a evolução dialética levando o Espírito ao absoluto.
7.1.3. Schopenhauer: a aniquilação universal por meio da negação humana do querer-viver.
7.1.4. Nietzsche: o além-do-homem, a transvaloração dos valores e, na falta dos dois, o próprio eterno retorno.
7.1.5. Marx: a evolução dialética da sociedade determinada material e historicamente levando ao comunismo (estado de bem-aventurança caracterizado pelo fim das classes sociais e, portanto, pelo fim da própria história, e no qual a máxima vigente é "de cada um conforme a sua capacidade e a cada um conforme a sua necessidade"). .
7.2. A crença nesse sonho de transformação do real fortalece ainda mais o ego do indivíduo, reafirmando a vitória, para o indivíduo, do princípio do prazer sobre o princípio de realidade.
7.2.1. Um exemplo bem característico são aquelas feministas que nutrem a esperança num mundo futuro utópico no qual existam apenas mulheres, e no qual o sexo masculino foi eliminado porque não mais necessário para a reprodução humana.


8. Com relação ao “anseio pela realidade”, que não raro degenera em delírios (como é tão comum nos “donos da verdade” com os quais nos defrontamos diariamente), lembrei que, para Foucault, a vontade de saber está intimamente ligada à vontade de poder.
8.1. Assim, um “delírio de realidade” pode ser uma estratégia para construir um “delírio de poder”, e, destarte, satisfazer à vontade de poder individual, tão castigada no cotidiano medíocre e mecânico no qual a maioria das pessoas está inserida. E, o que é essencial para formar esse delírio é a falta de auto-crítica: como disse a Tiburi, num artigo que li na CULT, a falta de autocrítica é a estupidez fundamental (e creio que dessa estupidez eu não sou vítima).
8.2. Cabe ainda salientar o papel que o sentido de realidade (seja delirante ou não) exerce na homeostase psíquica individual e também coletiva.
8.3. É necessário, ainda, também analisar a psicologia e a sociologia dos grupos e das instituições que mantém essas verdades prontas e acabadas, já que é raro ver um indivíduo construir seu “delírio de realidade” sozinho (o que só é feito por alguns gênios e alguns outsiders, além é claro dos loucos). Pelo contrário, o real e o ideal enquanto discursos são em geral construções sociais, grupais, institucionais.
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(1) “(...) cada desejo, seja o mais íntimo, ainda visa ao universal. Desejar uma mulher, é subentender que todos os homens são suscetíveis de desejá-la. Nenhum desejo, nem mesmo sexual, subsiste sem a mediação de um imaginário coletivo. Talvez não possa sequer emergir sem este imaginário: seria imaginável que se pudesse amar uma mulher de que se estivesse certo que nenhum homem do mundo seria capaz de desejá-la?” (Jean Baudrillard, no livro "O sistema de objetos’”).

(2) Embora o jovem Marx pareça negar isso na última tese ad Feuerbach ("Os filósofos se limitam a interpretar o mundo de diferentes formas; mas o que importa é transformá-lo), o Marx da fase madura escreveu as três mil páginas d'"O Capital".




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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

4 comentários:

Duan Conrado Castro disse...

? Eu não vou clicar nesses link...

adriano disse...

nem no que diz "SEX"?

Duan Conrado Castro disse...

Pareceu-me bastante plausível que se trate de vírus, e que o mesmo esteja justamente nessa palavra que é, em última instância, o que todos querem ("Todo mundo quer fuder" Matanza). Como estou sem anti-vírus, não vou correr o risco.

Duan Conrado Castro disse...

"O homem é um instinto sexual que se tornou corpo." (Schopenhauer)