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§ 99
Esse é provavelmente um dos capítulos mais “amadores” e confusos desse blog, pois o tema que eu vou tratar aqui eu não entendo o suficiente para escrever um texto mais adequado, mais responsável intelectualmente. Por isso, caso algum leitor (especialmente o Silas... :P) se ofenda com a minha ignorância sobre o assunto, eu peço-lhe paciência. Mais do que qualquer outro capítulo, esse aqui levanta mais perguntas do que respostas.
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Aqui, novamente, o filme não vai muito longe. Na memorável cena na sala de espera do Oráculo, que decidirá se Neo é o "Escolhido", uma criança que é vista dobrando uma colher com a mera força do pensamento diz a Neo (surpreso) que o jeito de fazer aquilo não é convencendo a si mesmo de que é capaz, mas sim convencendo-se de que não existe colher...Porém, e quanto ao eu mesmo? O filme não deveria ter dado um passo além, aceitando a proposição de que o eu, o eu mesmo, o sujeito, não existe? (Slavoj Zizek no ensaio Matrix: ou os dois lados da perversão, escrito para o simpósio internacional Inside The Matrix, e publicado no livro Matrix - Bem-vindo ao deserto do real, livro disponível em: http://www.scribd.com/doc/6623870/Matrix-Bem-Vindo-Ao-Deserto-Do-Real97)
(Eu ainda vou escrever um capítulo em que falarei do papel da cultura de massas em geral, e da triologia Matrix em particular, de promoção da catarse mediante a sublimação da pulsão de morte associada à estetização. Provavelmente será o capítulo CIII.)
Já cansei de ouvir frases do tipo “se eu tivesse nascido na Idade Média”, “se eu tivesse nascido mulher/homem”, “se eu tivesse nascido pobre/rico”, “se eu tivesse na Noruega [ou qualquer outro país]”, etc. O que me causa espanto ao ouvir isso é como as pessoas em geral não questionam a própria identidade: elas consideram que esse “eu” é uma coisa em si mesma, que não mudaria caso tivesse nascido em outras condições (ou seja, que é independente do espaço, do tempo e da causalidade). Creio que esse pensamento é típico de quem acredita em uma alma, nem que implicitamente. Isso quer dizer que mesmo agnósticos e ateus acabam usando esse tipo de raciocínio falho, sem perceber o conteúdo religioso que ele pressupõe, por ele já estar imiscuído há muito tempo na nossa cultura.
Eu fiz uma experiência imaginária. Imaginei como eu seria se tivesse nascido mulher na Idade Média, depois me imaginei nascendo um beta I na Noruega em 1990. E sabe o que eu descobri? Que, fazendo-se a abstração de toda minha história de vida e criando outra, obviamente esse “eu” seria totalmente outro, ou seja, esse “eu” que parece uma coisa em si mesma é totalmente dependente do espaço do tempo e da causalidade (da “representação”, para usar uma linguagem schopenhauriana) . Fazendo-se a abstração da representação, a única coisa que sobra é um instinto de vida (a vontade schopenhauriana), ou, de um ponto de vista científico, sobra a carga genética comum a toda a humanidade, ou mesmo, a característica comum a todas as formas de vida: o impulso de auto-replicação (ainda escreverei mais sobre esse impulso num outro capítulo desse blog).
Aquilo que nos faz diferente do outro são justamente essas contingências, dependentes da representação (ou, em outras palavras, da materialidade histórica - sim!, eu estou misturando Marx com Schopenhauer, e também dedicarei um futuro capítulo para comparar os pensamentos desses dois autores), e são essas contingências que nós consideramos como sendo o “eu”, o mesmo “eu” que consideramos sem maiores reflexões como sendo uma coisa em si. É nesse sentido que esse eu é ilusório, é uma ficção que fundamenta a fantasia necessária para que possamos ser um organismo vivo auto-consciente. No fundo, por de trás dessa máscara construída ao longo de anos (e, portanto, dependente da representação, da interação do organismo com o meio no qual está inserido) subjaz justamente essa herança comum de todos nós (seja a vontade schopenhauriana, seja o instinto de vida, seja nosso código genético comum, seja a auto-replicação), a qual seria nosso “eu verdadeiro” (ou “eu profundo”, “Evo”, “Aevum”), o qual por sua vez pode ser considerado como o mesmo em todos: temos aqui uma espécie de monismo. A "substância" desse eu profundo é justamente o que nos faz todos iguais, por isso esse eu - usado justamente para nos separar dos outros - seria ilusório.
Esse caráter ficcional do “eu” levanta sérios questionamentos sobre a vacuidade do temor da morte, pois esse eu que supostamente morre a rigor não existe como uma unidade, como uma coisa em si, tal como ele imagina existir. E, seja como for, essa característica comum a todos certamente sobrevive à morte de um indivíduo particular. Raciocínio análogo a esse Schopenhauer desenvolve no capítulo XLI do tomo I d’ O mundo..., capítulo intitulado Da morte e sua relação com a indestrutibilidade do nosso ser-em-si.
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A afirmação de que o eu não existe não é nova. O livro A doutrina de Buda anuncia, por exemplo, três princípios búdicos: Anicca (tudo muda), Anatman (Não existe o “eu”), e Dukkha (o sofrimento é universal). E Georges Canguilhem, por exemplo, atacou a psicologia justamente onde ela acreditava residir a sua força: o conhecimento do eu.
A idéia de que de que o eu existe como coisa em si parece estar bastante ligada à idéia de liberdade. Fica difícil conceber que somos livres se admitimos que nossa identidade é uma construção histórica, e não algo em si mesmo (embora eu não duvide que seja possível articular uma argumentação nesse sentido; aliás, qualquer argumentação é possível de ser articulada, desde que se tenha a inteligência e a imaginação necessárias para elaborar os sofismas que a sustentam). Schopenhauer visa conciliar essa contradição por meio da dicotomia entre fenômeno e coisa em si, entre representação e vontade: o primeiro é o reino da necessidade, o segundo é o da liberdade; sentimos que somos livres porque todos somos essa mesma coisa metafísica que é em si pura liberdade, visto que está fora da representação - esse é nosso caráter inteligível; porém, enquanto representação (e isso inclui nossa identidade construída no espaço, no tempo e na causalidade - nosso caráter empírico), somos totalmente determinados, e portanto não livres, nossa arbítrio é um servo-arbítrio, não um livre-arbítrio Sobre isso, indico como leitura a dissertação de mestrado de Fábio Libório Rocha: O conceito de servo-arbítrio em Schopenhauer, a qual pode ser encontrada aqui. Com relação à obra do próprio Schopenhauer, remeto ao § 55 do tomo I d' O mundo como vontade e como representação, e ao ensaio Sobre o livre-arbítrio.
Ao que tudo indica, a visão freudiana também concebe o eu como tendo um forte caráter ilusório, e como dependente de outros. Ainda no que diz respeito a Schopenahuer, Pierre Raikovic, no seu livro O sono dogmático de Freud, nos lembra, no capítulo II, que “o autor de O mundo como vontade e como representação via o indivíduo prisioneiro de um remanejamento interior necessário a sua sobrevivência como indivíduo. E a finalidade que dava a essa estratégia era a de tornar mais suportáveis as representações que, se fossem livres para aceder, tais como são, à consciência, teriam constituído um perigo para a manutenção de uma individualidade que exige um mínimo de coesão interna, ainda que a custa de desconhecimento.”[A questão do desconhecimento remete ao conflito profundo que parece existir entre verdade e vida (há verdades cuja obscenidade é insuportável), e nos faz questionar até onde a busca pela verdade não é uma busca pela morte.]
Isso nos leva a questionar o conceito de “indivíduo” de forma análoga ao de “eu”: essa suposta individuação seria na verdade uma máscara que esconde um complexo sistema causal construído historicamente sobre uma herança biológica comum. O indivíduo, assim como o eu, seriam ambas ilusões fetichistas que querem transformar um devir num ser, algo contingente em algo necessário, um fenômeno numa coisa em si, algo determinado historicamente em uma coisa. Repetindo, essas ilusões serviriam como fundamento do nosso processo psíquico, e, portanto, seriam necessárias para a vida do organismo, principalmente para a vida no cotidiano medíocre duma "pessoa comum" (refiro-me à rotina circular família-trabalho-indústria cultural-religião, em torno da qual circula - tal hamster na roda - a "massa ignara" e sobre a qual também falarei melhor num próximo capítulo). Tal qual os escravos da Matrix (ou os prisioneiros da caverna de Platão), as pessoas nascem, crescem, se reproduzem e morrem dentro de um mundo que elas não conhecem mas supõem conhecer; noutras palavras: elas tomam suas decisões de vida com base em referenciais falsos, fictícios, ficcionais, mistificados. Isso é trágico. Não por acaso um sentimento de desencanto e desalento acompanha a vida das poucas pessoas que realmente conseguem entender qual é a condição humana, por mais que elas tenham fé numa possibilidade de emancipação e de superação dessa realidade miserável.
Esse “eu” seria uma máscara, uma superfície de contato de dois mundos determinísticos: o interno (a vontade, o instinto, a herança genética, a auto-replicabilidade) e o externo (a sociedade, a representação, o espaço-tempo-causalidade). A seguir direi exatamente o mesmo conteúdo só que em linguagem freudiana: O ego é uma máscara (do id) que acredita ser alguma coisa a mais do que isso. O ego está esmagado entre dois "outros": um interno que tudo quer (o id) e um externo que quase tudo nega (o superego). O ego seria esse algo indefinido e, em última instância, ficcional que é construído pelos dois outros: a volição interna (o id psicanalítico, que é a vontade em Schopenahuer) e o superego, que representa a repressão do meio: temos o “eu” esmagado entre, respectivamente, os princípios de prazer e de realidade.
Para Schopenhauer o mundo é simultaneamente vontade (coisa em si) e representação (a qual por sua vez pressupõe simultaneamente sujeito e objeto). A separação discursiva (no pensamento, pela linguagem) dessa realidade em partes é artificial (é, aliás, um mero conhecimento abstrato, uma racionalização do conhecimento intuitivo com o intuito de fixá-lo e comunicá-lo). Feita essa "ressalva", temos que a vontade é algo equivalente ao id da psicanálise: ela é "um outro" que se impõe ao ego, o qual é apenas uma máscara desse outro, embora não saiba disso e "ache" que é algo mais. O ego não é senhor de si e, em última instância, é mera "ferramenta" desse outro. Esse outro é "algo" que podemos conhecer parcialmente (na medida em que se revela em nós) e racionalizar (denominar) como sendo o corpo, o inconsciente, o instinto, o querer-viver. "Ora, o corpo, é a primeira manifestação da vontade, sob as condições determinadas pelo grau e o indivíduo de que se trata; e a vontade desenvolvida no tempo [o querer e seus atos] é, por seu lado, apenas a paráfrase do corpo, uma explicação do que ele significa, tanto no seu conjunto quanto nas suas partes; essa vontade é, portanto, apenas uma revelação da mesma coisa em si da qual o corpo é uma primeira forma visível." (O mundo como vontade e como representação, tomo I, §60)
Em Schopenhauer o sujeito dos atos é o "sujeito da vontade" (esse "outro", "algo", "id"), que é apriorístico (assim como na metapsicologia o id é atemporal) e constitui o "caráter inteligível"; o "caráter empírico" são os atos desse sujeito, pelos quais ele se desenvolve na representação (sujeito+objeto+espaço+tempo+causalidade) e se torna cognoscível (ou seja, se torna objeto para um sujeito, se torna representação); o "caráter adquirido" é o aprendizado que esse sujeito introjeta acerca de si mesmo: se ele sabe quem é, do que é capaz e o que quer e se ele passa a agir em conformidade a esse conhecimento, então ele terá "conhecido a si mesmo" e agirá "como se" tivesse mudado, como se o caráter inteligível tivesse mudado: diz-se que ele "adquiriu caráter", tornou-se "maduro". Mas o caráter inteligível, como coisa em si, não pode mudar, o que muda é a sua manifestação fenomênica, agora iluminada pelo conhecimento de si. Como coisa em si, o caráter inteligível é livre; como fenômeno, o caráter empírico (os atos do caráter inteligível) não é livre, é um "servo-arbítrio", pois, além de estar subsumido inexoravelmente na corrente causal e no espaço-tempo, ainda é mero reflexo de "um outro" atemporal e imutável, o qual, ainda por cima, lhe é em geral desconhecido, ou, quando muito, conhecido parcialmente.
Do ponto de vista schopenhauriano (assimilação por dominação), a afirmação freudiana de que o indivíduo possui um "instinto de morte" (thanatos) (e vale lembrar que Freud negou que o animal social tenha de fato um "instinto de sociabilidade") parece sugerir que as idéias (schopenhaurianas) absorvidas pela idéia dominante (da qual o indivíduo é a expressão) (idéias essas, vale lembrar, que se mantém num conflito permanente) são de alguma forma capazes de constituir uma parte daquilo que é entendido como sendo o "eu". Uma interpretação como essa permite a concepção de um "eu" clivado e auto-conflitivo: as idéias vencidas e absorvidas continuariam a operar para a derrota da idéia que as dominou mesmo depois de derrotas na objetivação de ser, e emergiriam à (in)consciência do mesmo como auto-discórdia, como auto-destruição.
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Talvez uma ótima forma de entender o caráter ficcional de nossa identidade seja estudar os casos de múltiplas personalidades. Admito que nunca estudei esse assunto (e tantos outros) com a profundidade que ele merece. O que mais surpreende nesses casos é que muitas vezes cada uma das personalidades tem toda uma história de vida, vive num mundo e se relaciona com pessoas que a identidade “verdadeira” não conhece (pois essas pessoas nem existem).
Recorrentemente, também percebo que a maioria das pessoas se concebe como "habitando" o seu corpo, o qual é entendido como uma "ferramenta". Esse tipo de concepção ignora a unidade entre corpo e mente e novamente concebe a personalidade como uma coisa em si mesma, independente do corpo, ou seja, das condições materiais. Repete-se, assim, a velha antítese entre corpo e alma, entre carne e espírito, antítese que, para mim - e para tantos outros, como Spinoza e Schopenhauer - é totalmente falsa e descabida de profundidade analítica.
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Cabe aqui também fazer uma observação sobre o efeito que a crença no princípio do terceiro excluído tem sobre a questão da identidade individual. Muitas pessoas ficam surpresas (inclusive depois de usarem alucinógenos) quando percebem a inconsistência da sua identidade, o caráter multifacetado e fragmentário de algo que supostamente é uma unidade (que supostamente é indivisível – um “indivíduo”). Ora, o “átomo” já foi dividido e o seu estudo nos revelou um mundo novo e, porque não dizer?, chocante para a nossa cotidianidade, pois esse mundo destrói todas as nossas certezas, todas as nossas convicções, tudo o que os nossos sentidos nos dizem ser verdade. De forma análoga, a destruição do “indivíduo”, do “eu”, tem efeitos dramáticos e, talvez, impossíveis de se conciliar com a própria manutenção da vida (não por acaso o budismo que nega o eu é o mesmo budismo que prega o ascetismo).
Mas, voltando ao princípio do terceiro excluído, essas pessoas ficam surpresas ao se verem não como um “eu”, mas como um múltiplo de “eus”. Ora, por que não dar um passo além e reconhecer que o suposto eu não existe, que é uma ficção? Por que não reconhecer que o suposto eu não é indivisível, não é uma unidade, mas sim é uma amontoado de causas e efeitos (a começar pelas condições fortuitas da relação sexual que implicou na concepção) que depende da memória, da imaginação e do reconhecimento do outro para conceber-se como uma unidade estável ao longo do tempo? A resposta a isso parece estar na crença no princípio do terceiro excluído: o eu não pode ser concebido como auto-discórdia, como algo que é e não é simultaneamente, e, por isso, ele é dividido em vários “eus”, a unidade é substituída pela pluralidade como forma de manter a crença numa identidade. Aí, entra, então, o chamado "princípio da impermanênia", o qual pode levar o incauto a, novamente, à suspeição de alguma coisa em si não monística, individuada apesar do espaço-tempo (como, por exemplo, as idéias shopenhaurianas).
Admitir que o eu é múltiplo, e não indivisível, é um primeiro passo na perplexidade de reconhecer o próprio eu – a própria idéia de identidade – como uma ficção.
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Frequentemente me pego perguntando a mim mesmo: "quem eu sou?". Depois penso que, antes, devo responder à pergunta: "eu existo?". Aí surge a dificuldade de definir "eu" e "existência". E, assim, me perco num jogo de definições de palavras. Às vezes, contudo, lembro-me que essa dúvida por mim lançada, com respeito à minha própria existência, trata-se de um caso típico de negação (ou mesmo de repressão): ponho em dúvida a minha existência como uma forma de fugir à verdade amarga de que eu existo, sim senhor. Com relação ao "quem sou eu?", acabo sempre perdido na insuficiência de significado dos substantivos e adjetivos que me estão disponíveis. "Duan Conrado Castro", "homem", "piá de prédio", "outsider", "viadinho", "bancário", "economista", "brasileiro", "schopenhauriano", "pessimista", "ateu" (1), "vegetariano", "gama II": nada disso é suficiente para formar uma identidade, para me dizer quem ou o que eu sou. E, na ausência duma identidade, minha relação com o tempo fica comprometida: não há uma identidade a ser recordada do passado ou projetada no futuro. Assim, esse "eu" que desconhece a si mesmo se encontra preso num eterno vir-a-ser, num eterno e vazio presente; passado e futuro não fazem muito sentido: mais uma vez o fracasso em atribuir significado aos significantes dados. Os anos de 2037 e de 1999 são tão próximos e semelhantes quanto "ontem" e "hoje". Aliás, não há nenhum significado que consiga ser atribuido a fim de me fazer entender que "2037" vem "depois" de "1999" (ou que 2+2 não possa ser 5): tá legal, de um ponto puramente racional e matemático é fácil concordar que um vem depois do outro (porque eu fui ensinado a acreditar nisso); porém, no "mundo real" (seja lá o que isso for), a razão encontra-se obnubilada pela perplexidade causada pelo existir (o que nos faz pensar sobre a atemporalidade do inconsciente). Eu não vivo numa reta de números reais, mais sim num plano de números complexos. A ignorância é angustiante: é desesperante não se saber quem se é, nem porque as coisas são assim. São muitas respostas disponíveis, mas todas são insuficientes e irreconciliáveis entre si. Estou perdido por que não quero me encontrar? Tento viver num mundo surreal por que não quero admitir a realidade da minha própria impotência e mediocridade? É, eu sei.
(1) Eu sou ateu ou agnóstico? Com o tempo eu percebi que a palavra "agnóstico" se tornou um eufemismo para aqueles que não têm coragem de se opor explicitamente à religião e preferem adotar um comportamento mais politicamente correto (mas esse não é meu caso). Eu achava que para ser ateu era necessário ter fé na não existência de deus (em outras palavras: ter certeza que deus não existe) - e esse também não é o meu caso: eu não sei se deus existe ou não, porém desconfio fortemente que não, e vivo de acordo com essa desconfiança. Todavia, quando eu li no Dicionário Aurélio que "ateu" é aquele que "vive sem Deus" eu me senti confiante para me classificar por essa categoria. Segundo Engels, na introdução de Do socialismo utópico ao socialismo científico, o agnosticismo não passaria de um materialismo (e, portanto, de um ateísmo - de acordo especificamente com a visão marxista do que é "materialismo") envergonhado. Se o agnosticismo pode ser usado para justificar um ateísmo envergonhado e politicamente correto, ele pode, também, se constituir numa doutrina radical, niilista, irracionalista e iconoclásta que nega a toda forma de conhecimento e a toda sistematização do pensamento humano (inclusive o marxismo e os argumentos ateístas) a validade da sua pretensão de se constituir numa descrição fiel do objeto estudado e, portanto, da realidade. É com essa forma de agnosticismo radical e destruidor que eu me identifico.
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Tudo isso me fez lembrar da esquizofrenia.
A esquizofrenia na pós-modernidade (por David Harvey no cap. 3 do livro A condição pós-moderna, livro que atualmente é a minha leitura de ônibus):
O relato do pós-modernismo que esbocei até agora parece depender, para ter validade, de um modo particular de experimentar, interpretar e ser no mundo – o que nos leva ao que é, talvez, a mais problemática faceta do pós-modernismo: seus pressupostos psicológicos quanto à personalidade, à motivação e ao comportamento. A preocupação com a fragmentação e a instabilidade da linguagem e dos discursos leva diretamente, por exemplo, a certa concepção da personalidade. Encapsulada, essa concepção se concentra na esquizofrenia (não, deve-se enfatizar, em seu sentido clínico estrito), em vez de na alienação e na paranóia (ver esquema de Hassan). Jameson (1984b) explora esse tema com um efeito bem revelador. Ele usa a descrição de Lacan da esquizofrenia como desordem lingüística, como uma ruptura na cadeia significativa de sentido que cria uma frase simples. Quando essa cadeia se rompe, “temos esquizofrenia na forma de um agregado de significantes distintos e não relacionados entre si”. Se a identidade pessoal é forjada por meio de “certa unificação temporal do passado e do futuro com o presente que tenho diante de mim”, e se as frases seguem a mesma trajetória, a incapacidade de unificar o passado, o presente e o futuro na frase assinala uma incapacidade semelhante de “unificar o passado, o presente e o futuro da nossa própria experiência biográfica ou vida psíquica”. Isso de fato se enquadra na preocupação pós-moderna com o significante, e não com o significado, com a participação, a performance e o happening, em vez de com um objeto de arte acabado e autoritário, antes com aparências superficiais do que com raízes (mais uma vez, ver o esquema de Hassan). O efeito desse colapso da cadeia significativa é reduzir a experiência a “uma série de presentes puros e não relacionados no tempo”. Sem oferecer uma contrapartida, a concepção de linguagem de Derrida produz um efeito esquizofrênico, explicando assim, talvez, a caracterização que Eagleton e Hassan dão ao artefato pós-moderno típico, considerando-o esquizóide. Deleuze e Guattari (1984, 245), em sua exposição supostamente travessa, Anti-Édipo, apresentam a hipótese de um relacionamento entre esquizofrenia e capitalismo que prevalece “no nível mais profundo de uma mesma economia, de um mesmo processo de produção”, concluindo que “nossa sociedade produz esquizofrênicos da mesma maneira como produz xampu Prell ou os carros Ford, com a única diferença de que os esquizofrênicos não são vendáveis”.
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Por fim, ainda indico um texto, de orientação junguiana, escrito pelo amigo Silas Couto num dos seus blogs: "Individualidade, individuação, e as múltiplas personalidades". Depois da introdução, na qual Silas fica falando dele mesmo, o texto fica mais interessante (:P de novo). Ver também o meu comentário schopenhauriano ao texto dele.
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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.
5 comentários:
Haha!
Expor meu narcisismo deve ser divertido...
Quanto ao post, vamos ás observações:
Em epistemologia, veja que na sua imaginação você se orientou segundo certas premissas que, da mesma forma que molda quem acredita na alma, moldam até mesmo a sua linguagem: É impossível, dentro da dicotomia de Schopenhauer e da de Freud eu expressar o que imagino sobre esse assunto. Trata-se basicamente de uma possibilidade tão metafísica quanto aquela que vou apresentar: De natureza quase teleológica.
Não adianta eu querer explicar meu ponto de vista se a linguagem que uso é estranha, então é isso o que farei. Em primeiro lugar, que fique claro que não se trata de uma rigidez, de uma grande quantidade de litaratura de suporte: se você fosse pesquisar mais sobre psicologia, provavelmente ficaria entre lacan e Freud, e nesses autores você jamais encontraria nem mesmo um reflexo da minha concepção. Se visse algo, seria apenas críticas pueris, tentando demonstrar como, na verdade, é um desejo mesquinho e ilusório que motiva meus paradigmas (como se tudo tivesse que ser mesquinho e doentio).
Individualidade é algo pra muito além de seu gênero, classe social. Chamo o Eu-mesmo(Self, Selbst) de totalidade do indivíduo. Na verdade, o que vejo é que dificilmente um homem chega ao ponto em que descobre quem é. Pra ser mais direto e usar seus exemplos, se eu fosse uma mulher da idade média provavelmente minha intelectualidade jamais se manifestaria. Pressupondo, no entanto, que minha essência existe independentemente das circinsutâncias(já que essas só determinam até que ponto ela se manifestará) posso muito bem dizer que essa mulher é o que eu sou e em aspectos(potencialidades) que eu não desenvolvi “nessa vida”.
Provavelmente essa mulher teria sentimentos mais aflorados, por causa de sua constituição física e circunstância social(maternidade).
O que estou dizendo é que a individualidade não está nem perto de se revelar como resultado de complexos efêmeros desenvolvidos durante a vida, mas vai para além disso. Em forma de espírito(não tenho medo da minha metafísica) somos o que somos em essência, em toda a potencialidade, mas na vidas específicas manifestamos diversas características com diversos “PROPÓSITOS”.
Não sou irresponsável ao ponto de simplesmente jogar isso ao vento. Isso foi fruto do meu estudo sobre a obra de Jung e sobre um crítico dele, o James Hillman. Aliás, inutilmente, recomendo um livro bem simples do hillman que se tornou best-seller: O código do ser. Apresentar um “telos”, um para que que fica bastante evidente, na minha opinião.
Para explicar essa concepção na sua linguagem (passando primeiro por hillman para depois chegar atpe Jung) vou usar Schopenhauer como exemplo.
Segundo minhas fontes biográficas sobre ele, desde os 15 anos o interesse pelos clássicos e pelo estudo da filosofia. Isso contrariava os desejos do pai para ele, e, gastando mais do que podia, o pai lhe ofereceu uma viagem pela europa para ele não seguir essa vida de pensador, mas se tornar um comerciante. Jovem, Schopenhauer aceitou a viagem, mas nunca deixou de ser atormentado pelo desejo de explorar as obras dos antigos, nunca perdeu o desejo de filosofar. Mesmo depois do pai dele morrer ele continuou atormentado pelo conflito entre o próprio desejo e aquele do pai. Só depois de um tempo que se rendeu a si mesmo.
Talvez minhas fontes estejam enganadas, cara, mas o que vejo na vida de Schopenhauer é precisamente o contrário do que a filosofia dele prega: Apesar de ele postular cadeias causais como a sua, parece que na vida dele havia outra força, que não a vontade, tampouco a representação, que o moeu para o caminho que ele trilhou, como se efetivamente fosse o que ele TINHA que fazer Você pode contestar e dizer que é mais plausível conceber o caminho que Schopenhauer trilhou com uma lógica causal, mas não conheco muito outros filhos de burgueses que destruíram toda a fortuna da família para poder viver de maneira modesta e produzir obras filosóficas.
E você mesmo é um exemplo disso: Adora atribuir seu marxismo à sua classe social(ou casta) e sua predileção por Schopenhauer pela quantidade de sofrimento a que você já foi e é submetido. No entanto, sua classe social, assim como a minha, não é incomum, e seus colegas de colégio já são escravos, alguns com filhos. Sua condição física, igualmente não parece ter qualquer relação com seu intelectualismo. Talvez tenha influência na construção das suas idéias, mas não no fato de que você as constroi.
Tanto no seu caso quanto no de Schopenhauer, trata-se de potencialidades que foram manifestadas devido ao fato de que o ambiente permitiu. É como quando uma criança pequena começa a pegar peso: isso causa um efeito na coluna dela que a impede de crescer, mas não elimina a potencialidade do organismo, que teria crescido se não fosse por isso.
Da mesma maneira que me sinto tolhido em minhas reais possibilidades quando, diante de uma mulher que me interessa, eu não consigo me expressar com clareza, talvez você também se sinta assim em relação à sua condição física precisamente porque você, enquanto ser, não se identifica com isso.
Outro exemplo te usando como exemplo é quando você manifestou preocupação por não ter tempo de ler meu blog: não seria essa preocupação a manifestação de sentimentos latentes, como potencialidades ainda não desenvolvidas, mas reais?
Digo que não são desenvolvidas com base no seu extremo racionalismo e no que você mesmo diz a respeito disso.
Despois dessa “longa” exposição de exemplos, venho recorrer ao conceito de “Processo de individuação” apresentado por Jung.
Diferente de Freud, que considera o sonho como uma realização imaginária de um desejo, Jung o considera como uma mensagem do inconsciente, uma diretriz para o processo de amadurecimento do indivíduo. Aliás, tanto pode ser um sonho uma diretriz em linguagem mais abstrata, em lingugem mais enigmática, quanto mais clara, como no caso da concepção do benzeno(A estrutura cíclica do benzeno foi desvendada em um sonho). Não só os sonhos contém avisos e diretrizes para a vida pessoal, como as vezes também são relacionados com o mundo externo através de uma forma de percepção mais poderosa do que a ordinária.
Não só os sonhos, como visões, aqueles delírios que temos quando a mente se aesvazia e começamos a imaginar coisas aparentemente sem sentido, obras de arte. Em suma, o que vem do inconsciente em forma de fantasia geralmente é algo como uma orientação. Isso e tambéms os complexos psicológicos, que são certos conteúdos que tendem a nos aborrecer, assustar, etc.
Percebi, pelo estudo teórico e pela minha própria vivência, que sonhos, fantasias e complexos contém em si orientação para uma determinada coisa. Conforme viajo nesse universo, pelos caminhos indicados, percebo que vou me revelando a mim mesmo, enquanto que quando me perco em racionalizações eu não faço nada além de cristalizar.
Quanto ao ego, ele pode servir aos complexos, a impulsos que, por diversos motivos, se impõem sobre outros (o vício em comida não é, de maneira alguma uma derivação do impulsos sexual. É outro impulso, o de alimentação, que é tão relevante quanto o sexual, embroa Freud tente reduzir tudo á sexualidade) ou então a esse Self. Nos primeiros casos, ele se cristaliza, no último vai de encontro à individualidade do sujeito.
Desculpe se não fui muito claro. Não dormi bem e meu cérebro não está 100%.
É, já imaginava que você iria falar do Self. Tudo o que você disse é razoável (embora tenha pressupostos metafísicos com os quais você sabe que eu não concordo). Quando você fala da insuficiência de trilhar uma busca pela verdade e pela realização pelo estudo (pelo pensamento), isso de certa forma se reflete na minha progressiva descrença para com o estudo filosófico, e os meus reiterados planos de me dedicar menos a isso, senão de abandonar completamente essa atividade.
O meu interesse pelo filosofar é concebido por mim como algo incidental: como eu me tornei um desajustado, a tendência foi o isolamento. E o que fazer no isolamento? Como me via cercado de ignorância (ver cap. 95), e como vivia isolado, acabei buscando respostas nos livros. De certa forma, a busca por uma intelectualidade foi também uma busca por diferenciação, para que eu pudesse me sentir melhor que os outros, e por poder, para que eu pudesse, tendo conhecimento, controlar a minha vida (e talvez a dos outros também). Ou seja, em vez de ver essa intelectualidade emergir “a pesar” de uma realidade concreta (cotidiana) que deveria impedi-la de surgir, eu, ao contrário, a vejo surgindo em função dessa cotidianidade concreta: se não fosse um desajustado e se tivesse tido oportunidades de me expressar (e de construir uma individualidade) de outras maneiras, eu simplesmente teria tomado outro caminho, sem nenhum tido de determinismo teleológico anterior (“propósito”). Não estou afirmando que eu nasci uma “folha em branco”. Admito que eu posso ter nascido com qualidades inatas (que em meu materialismo seriam determinada geneticamente) que, por sua vez, interagiram com o meio para formar algum tipo de determinação que direcionou o meu desenvolvimento pessoal.
Comparar esse vídeo com a minha argumentação:
Richard Dawkins responde "E se você estiver errado ?"
http://www.youtube.com/watch?v=soHt_iuaSYw&feature=player_embedded
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