§ 97
O entendimento correto da questão do suicídio na obra schopenhauriana envolve a compreensão de algumas sutilezas do pensamento schopenhauriano. Não surpreende que Will Durant, em sua História da Filosofia, afirme o seguinte absurdo (que lhe confere um atestado de ignorância em Schopenhauer): "Existem outras dificuldades mais técnicas e menos vitais [sic] nesta notável e estimulante filosofia. Como pode o suicídio ocorrer num mundo onde a única força real é a da vontade de viver?" (Will Durant, História da Filosofia, capítulo VII.VIII, página 321, Companhia Editora Nacional, 1951). Lendo o capítulo VII desse livro, capítulo dedicado a Schopenhauer, encontrei muitos erros, e provavelmente encontrá-los-ia nos outros capítulos, dedicados a outros filósofos, se entendesse deles tão bem quanto entendo de Schopenhauer (mas não é esse o caso). (Uma coisa que gosto nesse livro, como fã de Schopenhauer que sou, é que ele não possui um capítulo dedicado a Hegel, que é tratado apenas em sete páginas dentro do capítulo sobre Kant).
Pois bem, no que concerne ao suicídio na obra de Schopenhauer, a coisa é mais ou menos a seguinte. (O que digo aqui está baseado nos seguintes textos de Schopenhauer: § 69 e § 71 do Tomo I de O Mundo como Vontade e Como Representação, § 41 do tomo II do mesmo livro, § 161 de Parerga e Paralipomena, especificamente no capítulo XIV - Contribuições à Doutrina da Afirmação e da Negação do Querer-Viver - esse capítulo foi publicado no volume Schopenhauer da coleção Os Pensadores da Editora Nova Cultural, em 2005)
O suicida quer viver, continua querendo desesperadamente a vida, mas não aceita as condições desfavoráveis nas quais é obrigado a viver (1). Por meio do suicídio destrói-se o indivíduo, o fenômeno, mas não a coisa em si. Porém é justamente o sofrimento, do qual o indivíduo busca escapar por meio do suicídio, que constitui um dos dois únicos caminhos que conduzem à negação do querer-viver, e portanto à libertação (o outro caminho é a faculdade de conhecimento que ultrapassa o princípio de individuação e apreende intuitivamente o monismo do universo). Nesse sentido, o suicida, nas palavras do filósofo alemão (cap. 69 do tomo I do MCR), assemelha-se a um doente que se recusa a realizar uma dolorosa operação que, uma vez concluída, iria curá-lo completamente.
A coisa em si, enquanto coisa metafísica que existe fora do princípio da razão suficiente (grosso modo: espaço, tempo e causalidade) não pode ser destruída por nenhum ato físico (aborto, assassinato, suicídio, etc.), mas apenas pode ser "destruída" pelo conhecimento. Essa "destruição" da coisa em si exige um esclarecimento adicional (e "técnico").
Como a coisa em si está fora da jurisdição do princípio da razão suficiente (o qual regula a representação, isto é, o mundo fenomenal), ela não pode conhecer mudança ou destruição, uma vez que essas pressupõem a atuação do tempo. O que ocorre é que a vontade, no fenômeno, uma vez iluminada pelo conhecimento (isto é, uma vez conhecendo a sua autodiscórdia essencial) renuncia, deixa de querer, à sua manifestação fenomênica. Como o mundo fenomenal, do qual fazemos parte, é a objetivação, regulada pelo princípio da razão suficiente, do ato de querer (afirmação do querer-viver), nos é apenas possível conhecer a coisa em si por esse ato de querer, motivo pelo qual não sabemos o que ela é quando se manifesta de forma diversa desta (e portanto não sabemos o que ela é e continuaria a ser, visto que ela não muda, quando simplesmente renunciasse ao ato de querer). Conhecemos a coisa em si pelo seu ato de querer, porém nada sabemos de positivo quanto ao ato de não querer (só sabemos o que ele não é, mas nada acerca do que ele é), e muito menos sabemos qualquer coisa acerca do sujeito que é capaz de decidir querer ou não querer. É nesse sentido que, no que concerne ao conhecimento da coisa em si, Schopenhauer se aproxima da agnosia kantiana: conhecemo-la apenas dentro desse perímetro restrito, e não completamente. A filosofia schopenhauriana está, portanto, longe de declarar um amplo e perfeito conhecimento da coisa em si: “Longe de nós, porém, o pensamento de afirmar um conhecimento absoluto e perfeito da coisa em si, mas antes reconhecemos bem que é impossível o conhecimento absoluto do que ela seja em si e para si mesma” (cap. 41 do tomo II do MVR).
P.S.: Muitas fotos de suicídios reais (e não a fotomontagem estetizada que usei para ilustrar esse capítulo) podem ser vistas no site
http://www.assustador.com.br___________________________________
(1) Com isso parece concordar Émile Durkheim no se famoso estudo sobre o suicídio, quando diz o seguinte: "Disso resulta nos faltarem as razões para viver; porque a única vida a que nos poderíamos agarrar já não corresponde a nada de real, e a única que se fundamenta ainda no real já não corresponde às nossas necessidades" (O suicídio, capítulo III.VI). Recentemente eu soube que a sociologia atual praticamente descarta a concepção de Durkheim. Para a sociologia atual, segundo me disseram, o suicídio é compreendido como um ato final e trágico de recuperação da dignidade perdida e de rebelião contra essa perda.
Uma carta de mais uma suposta suicida (obtida numa fonte não muito confiável: uma comunidade no orkut, se não me engano foi numa comunidade chamada “Depressão, dor, ódio e suicídio”), que mostra como o suicida em geral acredita que de alguma forma vai continuar vivendo e influenciando o mundo dos vivos (uma vez eu li um livro sobre cartas suicidas e quase todas elas expressavam essa convicção de alguma forma de continuidade):
"Não chorem, não sofram, eu estou ABSOLUTAMENTE FELIZ! Era tudo o que eu queria: ter paz eterna com meu Deus e, se possível, com minha mãe. Eu não me suicidei, eu parti para junto de Deus. Fiquem cientes que não bebo e não uso drogas, eu decidi que já fiz tudo que podia fazer nessa vida. Tive uma vida linda, conheci o mundo, vivi em cidades maravilhosas, tive uma família digna e conceituada em Esteio, brilhei na minha carreira, ganhei muito dinheiro e ajudei muita gente com ele. Realmente não soube administrá-lo e fui ludibriada por pessoas de má fé várias vezes, mas sempre renasci como uma fênix que sou e sempre fiquei bem de novo. Aliás, eu nunca me importei com o ter. Bom, tem muito mais sobre a minha vida, isso é só para verem como não sou covarde não, fui uma guerreira, mas cansei. É preciso coragem para deixar esta vida [Concordo plenamente. Em vez de conceber o suicídio como um ato de covardia, eu o entendo como um ato de coragem.] Saibam todos que tiverem conhecimento desse documento que não estou desistindo da vida, estou em busca de Deus [Ou seja, ela acredita que existe uma vida além da morte e que, portanto, não morrerá com o suicídio]. Não é por falta de dinheiro, pois com o que tenho posso morar aqui, em Floripa ou no Sul. Mas acontece que eu não quero mais morar em lugar nenhum. Eu não quero envelhecer e sofrer. Eu vi minha mãe sofrer até a morte e não quero isso para mim. Eu quero paz! Estou cansada, cansada de cabeça! Não agüento mais pensar, pagar contas, resolver problemas... Vocês dirão: Todos vivem! Mas eu decidi que posso parar com isso, ser feliz, porque sei que Deus me perdoará e me aceitará como uma filha bondosa e generosa que sempre fui."
Outra suposta carta suicida obtida na mesma fonte da anterior, a qual também expressa uma convicção na continuidade da vida após o suicídio:
"Meu amor hoje estive no hospital e chorei de tristeza por não ter feito tudo q eu queria fazer por vc estou me sentindo fraco impotente covarde ignorante prepotente grosso to me sentindo o ultimo dos homens do mundo eu não sabia q te amava ao ponto de desejar estar morto.
quem le essa mensagem saiba q eu irei pro mesmo lugar onde a dora estara se acontecer algo com ela eu estarei do lado da minha amada pois nós somos eternos não quero mais viver se ela for embora
avisem a minha familia q eu não quero choro quero felicidade vou atras do meu amor eterno por favor orem por todos q precisem de deus no coração."
Um exemplo midiático dessa crença na continuidade da vida após o suicídio – e de que a vida após esse ato será melhor que a vida que o antecedeu – é dado pelo
vídeo da música Pure Morning da banda Placebo. Esse vídeo também pode ser visto como uma simbolização da gratificação que o suicida experimenta ao antecipar imaginariamente o choque, a consternação, e, muitas vezes, o sentimento de culpa que essa ato causa nos outros.
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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.