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O sexo já está bastante desvinculado de sua função biológica. Na maior parte das vezes, participamos de atividade sexual para nos aproximarmos intimamente e para obtermos prazer sensual, e não pela reprodução. Da mesma forma, possuímos diversos métodos para gerar bebês sem o ato físico do sexo, embora a maior parte da reprodução ainda derive desse ato. Apesar de não ser aceita por todos os setores da sociedade, essa dissociação entre sexo e a sua função biológica foi prontamente -pode-se dizer até ansiosamente- adotada pela maioria.
Então por que não separar o propósito da biologia em outra atividade que também proporciona tanta intimidade social quanto o prazer sensual, a saber, o ato de comer? Temos maneiras toscas de fazê-lo hoje. Certos bloqueadores de amido impedem parcialmente a absorção de carboidratos complexos; já determinados bloqueadores de gordura unem-se a moléculas de gordura e fazem com que elas não sejam absorvidas pelo sistema digestivo; e substitutos de açúcar fornecem doçura sem calorias. Há limitações e problemas em cada uma dessas tecnologias contemporâneas, mas uma geração mais eficiente de drogas está sendo desenvolvida e bloqueará o excesso de absorção calórica em nível celular.
Devemos considerar, entretanto, uma reengenharia mais fundamental do processo digestivo para podermos desconectar o aspecto sensual de comer de seu propósito biológico original: prover nutrientes para a corrente sanguínea, que são então entregues a cada uma de nossos trilhões de células. Esses nutrientes incluem substâncias calóricas (portadoras de energia) como a glicose (de carboidratos), proteínas, gorduras e uma miríade de moléculas de outros compostos, como vitaminas, minerais e elementos fitoquímicos, que proporcionam blocos de montagem e enzimas facilitadoras para diversos processos metabólicos.
Nosso conhecimento das complexas vias subjacentes ao processo digestivo se expande rapidamente, embora ainda haja muita coisa que não compreendemos inteiramente. Por um lado, a digestão, como qualquer outro grande sistema biológico do ser humano, é assombrosa em sua complexidade e engenhosidade. Nossos corpos são capazes de extrair os complicados recursos necessários à sobrevivência, apesar das condições altamente variáveis, enquanto simultaneamente filtram uma multiplicidade de toxinas.
Por outro lado, nossos corpos se desenvolveram em uma era muito diferente. Nosso processo digestivo, em particular, é otimizado para uma situação dramaticamente distinta daquela em que nos encontramos.
Para a nossa herança biológica, havia uma grande probabilidade de que a próxima estação de coleta ou caça (e, por um período breve e relativamente recente, o próximo plantio) pudesse ser catastroficamente parca. Então fazia sentido que nossos corpos armazenassem cada caloria possível. Hoje, essa estratégia biológica é extremamente contraproducente. Nossa programação metabólica obsoleta é subjacente à epidemia contemporânea de obesidade e é causa de processos patológicos de doenças degenerativas, como a doença arterial coronária e diabetes do tipo 2.
Até recentemente (em uma escala temporal evolucionária), não era interessante para a espécie que pessoas velhas como eu (que nasci em 1948) usassem os recursos do clã. A evolução favorecia uma existência curta -a expectativa de vida era de 37 anos há apenas dois séculos- para que essas reservas restritas pudessem ser devotadas aos jovens, aos que tomavam conta dos pequenos e aos que fossem fortes o bastante para se devotar a intenso esforço físico.
Vivemos agora em uma era de grande abundância material. A maior parte do trabalho requer esforço mental, em vez de físico. Um século atrás, 30% do trabalho nos EUA consistia no esforço físico em fazendas, enquanto outros 30%, em fábricas. Ambos os números estão agora em menos de 3%. A grande maioria das categorias de emprego atuais, que variam de comissário de bordo a "web designer", não existia um século atrás. Em 2003, temos a oportunidade de continuar a contribuir para o conhecimento de nossa civilização, que cresce exponencialmente -por acaso, um atributo único de nossa espécie-, bem além de nossos dias de economizar recursos para criar crianças.
Corpo sem pane ou doenças
Nossa espécie já aumentou a ordem "natural" de nossas vidas por meio de nossa tecnologia: drogas, suplementos, peças de reposição para virtualmente todos os sistemais corporais e muitas outras invenções. Já temos equipamentos para substituir nossos joelhos, bacias, ombros, cotovelos, pulsos, maxilares, dentes, pele, artérias, veias, válvulas do coração, braços, pernas, pés e dedos. Sistemas para substituir órgãos mais complexos (por exemplo, nossos corações) começam a funcionar. Estamos aprendendo os princípios de operação do corpo e do cérebro humanos e logo poderemos projetar sistemas altamente superiores, que serão mais agradáveis, durarão mais e funcionarão melhor, sem serem suscetíveis a panes, doenças e envelhecimento.
A artista Natasha Vita-More é pioneira em um design conceitual de um sistema assim, chamado "Primo Posthuman" [saiba mais no site www.natasha.cc/primo.htm], projetado para mobilidade, flexibilidade e longevidade. Ele dispõe de inovações como um metacérebro para conexão global em rede dotado de uma prótese de neoneocórtex de inteligência artificial entremeada com nanorrobôs; pele inteligente que é protegida contra o sol e biossensores para mudança de tom e textura, além de sentidos altamente aguçados.
Nós não projetaremos o corpo humano versão 2.0 de uma vez só. Será um processo contínuo, que já está em andamento. Apesar de a versão 2.0 ser um grande projeto, que por fim resultará em uma melhora radical de todos os nossos sistemas físicos e mentais, nós a implementaremos a um passo benigno de cada vez. Baseados em nosso conhecimento atual, nós já podemos tocar e sentir os meios para atingir cada aspecto dessa visão.
Dessa perspectiva, retornemos a uma consideração do sistema digestivo. Nós já temos uma imagem razoavelmente abrangente daquilo que constitui a comida que ingerimos. Nós já temos os meios para sobreviver sem comer, usando alimentação intravenosa (para pessoas incapazes), apesar de esse ser claramente um processo desagradável, dadas as limitações atuais em nossas tecnologias para pôr e retirar substâncias da corrente sanguínea.
A próxima fase de desenvolvimento será em grande parte bioquímica, na forma de drogas e suplementos que bloquearão a absorção calórica excessiva e de outra forma reprogramarão os caminhos metabólicos para uma saúde otimizada. Nós já temos o conhecimento para evitar a maior parte das etapas de doenças degenerativas, como as do coração, derrames, diabetes do tipo 2 e câncer, por meio de programas abrangentes de nutrição e suplementação. Vejo nosso conhecimento atual como uma ponte para o completo florescimento da revolução biotecnológica, que por sua vez será uma ponte para a revolução nanotecnológica.
Nanorrobôs
Em uma famosa cena do filme "A Primeira Noite de um Homem" [de 1967, dirigido por Mike Nichols], o mentor de Benjamin lhe dá um conselho a respeito da carreira a seguir com uma só palavra: "Plástico". Hoje, essa palavra pode ser "software" ou "biotecnologia", mas em algumas décadas a palavra provavelmente será "nanorrobôs". Nanorrobôs -robôs do tamanho de uma hemácia- nos darão os meios para refazer radicalmente os nossos sistemas digestivos e, incidentalmente, quase tudo o mais. Em uma fase intermediária, nanorrobôs no sistema digestivo e na corrente sanguínea extrairão de forma inteligente os nutrientes exatos de que precisamos, nos avisarão quais são os nutrientes e suplementos que nos faltam por meio de nossa rede sem fio local e mandarão o restante da comida a caminho da eliminação. Se isso parece futurístico, saiba que máquinas inteligentes já estão encontrando o caminho para o nosso fluxo sanguíneo.
Há dúzias de projetos encaminhados para a criação de "sistemas microeletromecânicos biológicos" (bioMEMS, em inglês) com uma ampla possibilidade de aplicações diagnósticas e terapêuticas. Equipamentos bioMEMS estão sendo projetados para encontrar de forma inteligente agentes patogênicos e para aplicar medicamentos de maneira muito precisa.
Por exemplo, um pesquisador da Universidade de Illinois, em Chicago, criou uma pequena cápsula com poros que medem apenas sete nanômetros. Os poros fornecem insulina de maneira controlada, mas evitam que anticorpos invadam certas células pancreáticas dentro da cápsula. Esses equipamentos projetados com nanoengenharia curaram ratos com diabetes do tipo 1, e não há razões para que o mesmo método venha a falhar em seres humanos.
Sistemas similares poderiam fornecer dopamina para o cérebro de pacientes com mal de Parkinson, fornecer fatores coaguladores para hemofílicos e fornecer drogas para o tratamento do câncer diretamente no local do tumor. Um novo projeto possui até 20 reservatórios para substâncias que podem fornecer sua carga em horários e locais programados do corpo.
Kensall Wise, um professor de engenharia elétrica da Universidade de Michigan, desenvolveu uma minúscula sonda neural que pode monitorar precisamente a atividade elétrica de pacientes com doenças neurológicas. Espera-se que projetos futuros entreguem drogas a pontos específicos do cérebro.
Kazushi Ishiyama, da Universidade Tohoku, no Japão, desenvolveu micromáquinas que usam parafusos giratórios microscópicos para injetar drogas em pequenos tumores cancerígenos.
Uma micromáquina particularmente inovadora desenvolvida pelos laboratórios Sandia tem verdadeiros microdentes com uma mandíbula que abre e fecha para capturar células individuais e nelas implantar substâncias como DNA, proteínas ou drogas. Há já pelo menos quatro grandes conferências científicas a respeito de bioMEMS e outras abordagens para o desenvolvimento de máquinas em micro e nanoescala que entrem no corpo e na corrente sanguínea.
Por fim, os nutrientes individuais necessários para cada pessoa serão completamente compreendidos (incluindo todas as centenas de elementos fitoquímicos) e facilmente, do ponto de vista econômico, encontráveis, então não haverá nenhuma necessidade de extrair nutrientes da comida. Como hoje nós fazemos sexo por suas recompensas sensuais e relacionais, teremos a oportunidade de desligar o ato de comer da função de obter nutrientes para a corrente sanguínea.
Essa tecnologia deverá estar razoavelmente amadurecida na década de 2020. Os nutrientes serão introduzidos diretamente na corrente sanguínea por nanorrobôs metabólicos especiais. Sensores no fluxo sanguíneo e no corpo, utilizando comunicação sem fio, fornecerão informação dinâmica a respeito dos nutrientes necessários a cada momento.
Uma questão-chave ao projetar essa tecnologia deverá ser os meios pelos quais esses nanorrobôs entram e saem do corpo. Como mencionei acima, as tecnologias de que dispomos hoje, como cateteres intravenosos, deixam muito a desejar. Um benefício significativo da tecnologia de nanorrobôs é que, ao contrário de meras drogas ou suplementos alimentares, nanorrobôs têm alguma inteligência. Eles podem saber quanto e o que carregam e, inteligentemente, entrar e sair de nossos corpos. Um cenário possível é o de que usaremos uma "veste de nutrição" especial, como um cinto ou uma camiseta. Essa veste seria carregada de nanorrobôs que carregam nutrientes, que entrariam e sairiam de nossos corpos através da pele ou de outras cavidades.
Nesse ponto do desenvolvimento tecnológico, seremos capazes de comer o que quisermos, o que nos der prazer e realização gastronômica e, portanto, explorar sem reservas as artes culinárias por seus sabores, texturas e aromas.
Ao mesmo tempo, forneceremos um fluxo otimizado de nutrientes a nossas correntes sanguíneas, usando um processo completamente diverso. Uma possibilidade seria que toda a comida que comêssemos passasse por um sistema digestivo desconectado de qualquer possível absorção por parte da corrente sanguínea.
Sem eliminação
Isso traria um ônus para os nossos intestinos, então uma abordagem mais refinada dispensará a função de eliminação. Seremos capazes de fazê-lo utilizando nanorrobôs especiais de eliminação que ajam como minúsculos compactadores de lixo. À medida que os nanorrobôs de nutrientes vêm da veste de nutrientes para o nosso corpo, os nanorrobôs eliminadores fazem o caminho inverso. Periodicamente, substituiríamos a veste de nutrientes por uma nova. Alguém poderia comentar que nós obtemos prazer na função de eliminação, mas eu suspeito que a maioria das pessoas ficaria feliz sem ela.
Por fim não precisaremos nos preocupar com roupas especiais ou recursos nutricionais explícitos. Assim como a computação será eventualmente ubíqua e disponível em todo lugar, também os recursos básicos para os nanorrobôs metabólicos estarão embutidos em todo lugar em nosso ambiente. Mais ainda, um importante aspecto desse sistema será manter dentro do corpo reservas amplas de todos os recursos necessários. A versão 1.0 de nossos corpos faz isso de maneira bastante limitada, por exemplo, guardando alguns minutos de oxigênio em nosso sangue e alguns dias de glicogênio e outras reservas. A versão 2.0 terá reservas substancialmente maiores, nos permitindo separar recursos metabólicos para períodos bastante extensos.
Uma vez concluída essa evolução, não teremos mais nenhuma necessidade da versão 1.0 de nosso sistema digestivo. Eu chamei a atenção acima para o fato de que a nossa adoção dessas tecnologias será cautelosa e em etapas, portanto não dispensaremos o processo digestivo à moda antiga no momento de sua introdução. A maioria esperará o sistema digestivo versão 2.1 ou 2.2 antes de descartar espontaneamente a versão 1.0. Afinal, as pessoas não jogaram suas máquinas de escrever no lixo quando surgiram os primeiros processadores de texto. As pessoas guardaram suas coleções de vinis por muito tempo depois do aparecimento dos CDs (eu ainda tenho a minha). As pessoas ainda têm suas câmeras com filme, apesar de a maré estar rapidamente mudando em favor das câmeras digitais.
Sangue programável
Na medida em que fizermos a engenharia reversa (aprendermos os princípios de funcionamento) dos diversos sistemas de nossos corpos, estaremos em posição de projetar novos sistemas que proporcionarão melhorias dramáticas. Um sistema pervasivo que já tem sido tema de redesign conceitual abrangente é o nosso sangue.
Um dos maiores propositores da "nanomedicina" (reprojetar os nossos sistemas biológicos por meio da engenharia em escala molecular) e autor de um livro com o mesmo nome é Robert Freitas, pesquisador de nanotecnologia da Zyvex Corp. O ambicioso manuscrito de Freitas é um mapa rodoviário abrangente para rearquitetar a nossa herança biológica.
Um dos projetos de Freitas é substituir (ou aumentar a capacidade de) os nossos glóbulos vermelhos com "respirócitos" artificiais que nos permitiriam segurar a respiração por quatro horas ou correr em velocidade máxima por 15 minutos sem tomar fôlego. Como a maioria de nossos sistemas biológicos, nossos glóbulos vermelhos cumprem sua função de oxigenação de forma bem pouco eficiente, e Freitas os tem reprojetado para otimizar sua performance. Ele estudou muitos dos requisitos físicos e químicos com um nível impressionante de detalhamento.
Será interessante ver como lidar com esse desenvolvimento em disputas atléticas. Presumivelmente, o uso de "respirócitos" e sistemas similares será proibido em Jogos Olímpicos, mas então teremos o espectro de adolescentes de 14 ou 15 anos superando atletas profissionais nas aulas de educação física.
Freitas prevê plaquetas artificiais do tamanho de um mícron que poderiam conseguir hemóstase (controle do sangramento) até mil vezes mais rápido do que plaquetas biológicas. Ele descreve substitutos de glóbulos brancos nanorrobóticos que baixarão softwares para destruir infecções específicas centenas de vezes mais rapidamente do que antibióticos e que serão eficazes contra todas as infecções bacterianas, viróticas ou causadas por fungos, sem as limitações da resistência a remédios.
Eu observei (através de um microscópio) os meus próprios glóbulos brancos cercarem e destruírem um agente patogênico e fiquei surpreso com o incrível vagar desse processo natural. Apesar de saber que a reposição de nosso sangue com bilhões de aparatos nanorrobóticos vá requerer um longo processo de desenvolvimento, refinamento e aprovação legal, nós já temos o conhecimento conceitual para projetar melhoramentos substanciais nos incríveis, mas bastante ineficientes, métodos utilizados por nossos corpos biológicos.
Problemas de coração
O próximo órgão na minha lista é o coração. É uma máquina considerável, mas tem uma série de problemas sérios. É sujeito a uma miríade de falhas e representa uma fraqueza fundamental em nossa longevidade potencial. O coração, em geral, quebra muito antes do restante do corpo -e com frequência de modo prematuro.
Apesar de corações artificiais estarem começando a funcionar, uma abordagem mais eficaz será a de nos livrarmos do coração de uma vez. Entre os projetos de Freitas estão glóbulos sanguíneos nanorrobóticos que se movem sozinhos. Se o sistema sanguíneo se move sozinho, os problemas de engenharia resultantes da extrema pressão necessária para manter um bombeamento central podem ser eliminados. À medida que aperfeiçoamos os meios para transferir nanorrobôs para e a partir do fluxo sanguíneo, poderemos também repor continuamente os nanorrobôs que compõem o nosso suprimento de sangue.
A energia será fornecida por células de combustível de hidrogênio microscópicas. A Integrated Fuel Cell Technologies, uma das muitas companhias pioneiras em tecnologia de célula de combustível, já criou células de combustível microscópicas. O seu design de primeira geração fornece dezenas de milhares delas em um circuito integrado e é direcionado para uso em eletrônicos portáteis.
Com os "respirócitos" fornecendo acesso bastante estendido à oxigenação, estaremos em posição de eliminar os pulmões utilizando nanorrobôs que nos forneçam oxigênio e se livrem do dióxido de carbono. Alguém pode ressaltar que nós obtemos prazer na respiração (mais do que no ato de defecar). Como ocorre com todos esses redesigns, nós certamente atravessaremos estágios intermediários em que essas tecnologias aumentam os nossos sistemas naturais, para que possamos ter o melhor dos dois mundos. Eventualmente, entretanto, não haverá mais motivo para continuar com as complicações da respiração e a necessidade de ar respirável onde quer que formos. Se nós realmente acreditarmos que respirar é prazeroso, encontraremos maneiras virtuais de simular essa experiência sensória.
Nós também não precisaremos dos diversos órgãos que produzem elementos químicos, hormônios e enzimas que fluem no sangue e em outras vias metabólicas. Nós já criamos versões bioidênticas de diversas dessas substâncias e teremos os meios de criar rotineiramente todas as substâncias bioquimicamente relevantes em algumas décadas. Essas substâncias (à medida que ainda forem necessárias) serão entregues via nanorrobôs, controlados por sistema de resposta biológica inteligente para manter e equilibrar os níveis necessários, como os nossos sistemas "naturais" fazem atualmente (por exemplo, o controle da insulina de parte das células pancreáticas).
Já que estamos eliminando a maior parte dos nossos órgãos biológicos, a maioria dessas substâncias se tornará desnecessária e será substituída por outros recursos requeridos pelos sistemas nanorrobóticos. De forma similar, os órgãos que filtram as impurezas do sangue, como os rins, podem ser substituídos por sistemas de eliminação baseados em nanorrobôs.
É importante enfatizar que esse processo de redesign não se completará em um único ciclo de projeto. Cada órgão e cada idéia terão seu próprio progresso, designs intermediários e estágios de implementação. Mesmo assim, estamos claramente nos dirigindo a um redesign fundamental e radical da versão 1.0, extremamente ineficiente e de funcionalidade limitada, do corpo.
E o que resta?
Consideremos o lugar onde estamos. Eliminamos o coração, pulmões, glóbulos brancos e vermelhos, plaquetas, pâncreas, glândula tireóide e todos os órgãos produtores de hormônios, rins, bexiga, fígado, parte inferior do esôfago, estômago, intestinos grosso e delgado.
O que ainda temos agora é o esqueleto, a pele, genitais, boca e parte superior do esôfago e o cérebro.
O esqueleto é uma estrutura estável, e nós já temos uma compreensão razoável de seu funcionamento. Nós substituímos partes dele hoje, apesar de nossa tecnologia para fazê-lo ter severas limitações. Nanorrobôs de interligação nos darão a habilidade de aumentar e, em último caso, substituir o esqueleto. Substituir partes do esqueleto hoje requer cirurgia dolorosa, mas substitui-lo por meio de nanorrobôs a partir de dentro pode ser um processo gradual e não-invasivo. O esqueleto humano versão 2.0 será muito forte e capaz de se consertar sozinho.
Nós não notaremos a ausência de muitos de nossos órgãos, como o fígado e o pâncreas, pois não sentimos diretamente o seu funcionamento. A pele, entretanto, é um órgão que nós de fato desejaremos manter -ou pelo menos manter a sua funcionalidade. A pele, que inclui os nossos órgãos sexuais primários e secundários, nos fornece uma função vital de comunicação e prazer.
Mesmo assim, seremos por fim capazes de melhorar a pele com novos e flexíveis materiais nanoprojetados que nos darão maior proteção contra os efeitos cinéticos e térmicos do ambiente, aumentando ao mesmo tempo nossa capacidade de comunicação íntima e prazer. O mesmo pode ser dito da boca e da parte superior do esôfago, responsáveis pelos aspectos do sistema digestivo que utilizamos para o ato de comer.
O processo de engenharia reversa e de redesign também abrangerá o sistema mais importante de nossos corpos: o cérebro. O cérebro é no mínimo tão complexo quanto todos os outros sistemas simultaneamente, com aproximadamente metade de nosso código genético dedicado ao seu design. É um engano ver o cérebro como um único órgão: é na realidade uma intricada coleção de órgãos processadores de informação, interconectados em uma hierarquia elaborada, da mesma forma que o acidente que é nossa história evolucionária.
O processo de compreensão dos princípios de operação do cérebro humano já está bem encaminhado. As tecnologias subjacentes de análise do cérebro e de modelagem de neurônios melhoram exponencialmente, assim como o nosso conhecimento generalizado de seu funcionamento. Nós já temos modelos matemáticos detalhados de algumas dúzias das várias centenas de regiões que compõem o cérebro humano.
A era dos implantes neurológicos também está encaminhada. Temos implantes cerebrais baseados em modelagem "neuromórfica" (isto é, engenharia reversa do cérebro humano e do sistema nervoso) para uma lista crescente de regiões. Um amigo meu que ficou surdo em idade adulta agora pode conversar pelo telefone novamente graças a um implante coclear, um aparato que se comunica diretamente com o sistema nervoso auditivo. Ele planeja substituí-lo por um novo modelo que tem mil níveis de discriminação de frequências, o que lhe permitirá voltar a escutar música. Ele lamenta o fato de ter as mesmas melodias tocando em sua cabeça há 15 anos e espera ansioso ouvir outras canções.
Uma geração futura de implantes de cóclea, atualmente na prancheta, proverá níveis de discriminação de frequências que irão significativamente além daqueles captados por uma audição "normal".
Pesquisadores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e da Universidade Harvard desenvolvem implantes neurológicos que substituirão retinas danificadas. Há implantes cerebrais para pacientes com mal de Parkinson que se comunicam diretamente com as regiões do núcleo ventral posterior e do núcleo subtalâmico do cérebro para reverter os sintomas mais devastadores dessa doença.
Um implante para pessoas com paralisia cerebral e esclerose múltipla se comunica com o tálamo ventral lateral e foi eficiente no controle de tremores. "Em vez de tratar o cérebro como sopa, adicionando químicas que melhoram ou suprimem certos neurotransmissores", diz Rick Trosch, um médico norte-americano que ajuda a elaborar essas terapias, "nós agora o estamos tratando como uma série de circuitos".
Uma variedade de técnicas está sendo desenvolvida para fornecer um elo de comunicação entre o mundo úmido e analógico do processamento de informações biológico e a eletrônica digital. Pesquisadores no Instituto Max Planck, na Alemanha, desenvolveram equipamentos não-invasivos que podem se comunicar com neurônios em ambas as direções. Eles demonstraram o seu "transistor de neurônios" controlando os movimentos de uma sanguessuga viva a partir de um computador pessoal.
Tecnologia semelhante foi usada para reorganizar neurônios de sanguessugas e coagir esses neurônios a resolver simples problemas lógicos e aritméticos. Cientistas agora experimentam um novo design, chamado de "pontos de quantum", que usa minúsculos cristais de material semicondutor para conectar equipamentos eletrônicos a neurônios.
Esses desenvolvimentos nos oferecem a promessa de reconectar caminhos neurológicos quebrados para pessoas com dano no sistema nervoso e ferimentos na coluna vertebral. Havia muito tempo que se acreditava que isso só seria realizável em pacientes feridos recentemente, uma vez que os nervos gradualmente se deterioram se não utilizados. Uma descoberta recente, entretanto, mostra a possibilidade de um sistema neuroprostético para pacientes com antigas lesões na coluna vertebral. Pesquisadores na Universidade de Utah pediram a um grupo de quadriplégicos de longa data que movessem seus membros em um certo número de modos e então observaram a resposta de seus cérebros por meio de ressonância magnética.
Apesar de os caminhos neurais para seus membros estarem inativos havia anos, o padrão de atividade cerebral quando tentavam mover seus membros se mostrou muito próximo do observado em pessoas que não portam deficiências físicas.
Seremos capazes, portanto, de colocar sensores no cérebro de uma pessoa paralisada, que serão programados para reconhecer os padrões cerebrais associados com os movimentos desejados, podendo então estimular a sequência apropriada de movimentos musculares. Para pacientes cujos músculos não mais funcionam, já há projetos de sistemas "nanoeletromecânicos" (NEMS, em inglês) que podem se expandir e contrair para substituir músculos danificados e podem ser ativados por nervos reais ou artificiais.
Estamos ficando cada vez mais íntimos de nossa tecnologia. Os computadores começaram como grandes máquinas em salas com ar-condicionado, controlados por técnicos com jalecos brancos. Subsequentemente, foram para nossas mesas, para debaixo de nossos braços, agora para nossos bolsos. Logo, os poremos rotineiramente dentro de nossos corpos e cérebros. Por fim nos tornaremos mais não-biológicos do que biológicos.
A obrigatória necessidade e os benefícios de superar doenças graves e deficiências manterão essas tecnologias em rápida evolução, mas aplicações médicas representam apenas a fase de adoção inicial. À medida que as tecnologias forem se estabelecendo, não haverá barreiras que impeçam seu uso para expansão do potencial humano. Da forma como vejo, expandir o nosso potencial é o que melhor nos distingue como espécie.
Além disso, todas as tecnologias subjacentes estão se acelerando. O poder da computação cresceu em uma taxa de dupla exponencial por todo o século passado e continuará a fazê-lo neste século por meio da computação tridimensional. As bandas de comunicação e o ritmo da engenharia reversa do cérebro também se apressam. Enquanto isso, de acordo com meus modelos, o tamanho da tecnologia está diminuindo numa taxa de 5,6 por dimensão linear por década, o que tornará a nanotecnologia onipresente na década de 2020.
Ao final desta década, a computação desaparecerá enquanto tecnologia separada, que precisamos carregar conosco. Teremos rotineiramente imagens em alta resolução abrangendo todo o campo visual projetadas diretamente em nossas retinas a partir de nossos óculos e lentes de contato (o Departamento de Defesa dos EUA já usa tecnologia similar da empresa Microvision). Estaremos conectados sem fio em altíssima velocidade com a internet permanentemente. O equipamento eletrônico para isso estará embutido em nossas roupas. Aproximadamente em 2010, esses computadores altamente pessoais permitirão que nós encontremos uns aos outros em total imersão visual e auditiva, em ambientes de realidade virtual, assim como aumentarão nossa visão com informações específicas relativas ao local e ao horário a todo instante.
Em 2030, a eletrônica utilizará circuitos do tamanho de moléculas, a engenharia reversa do cérebro humano terá sido concluída e os bioMEMS terão evoluído para bioNEMS (sistemas biológicos nanoeletromecânicos). Será rotineiro ter bilhões de nanorrobôs cruzando os capilares de nossos cérebros, comunicando-se entre si (por meio de uma rede local sem fio), com nossos neurônios biológicos e com a internet.
Uma aplicação será permitir imersão total em realidade virtual, abrangendo todos os nossos sentidos. Quando quisermos entrar em um ambiente virtual, os nanorrobôs substituirão os sinais obtidos por nossos sentidos reais por sinais que o nosso cérebro receberia se estivesse de fato no ambiente virtual. Nós teremos uma miríade de ambientes virtuais a escolher, incluindo desde mundos terrenos com os quais estamos familiarizados a mundos que não têm reflexo na Terra. Seremos capazes de ir a esses locais virtuais e ter todo tipo de interação com outras pessoas reais (ou simuladas), de encontros de negócios a situações eróticas. Na realidade virtual, não estaremos restritos a uma única personalidade, já que seremos capazes de mudar nossa aparência e nos tornar pessoas diferentes.
Experiências arquivadas
"Carregadores" levarão todo seu fluxo de experiências sensoriais assim como os correlatos neurológicos de suas reações emocionais na web, do mesmo modo que hoje as pessoas carregam imagens de seus quartos a partir de suas webcams. Um passatempo popular será o de se ligar no raio emocional-sensorial de alguém e experimentar o que é ser outra pessoa, como no filme "Quero Ser John Malkovich" [de 1999, dirigido por Spike Jonze". Haverá também uma vasta seleção de experiências arquivadas a escolher. O design de ambientes virtuais e a criação de experiências de imersão total se tornarão novas formas de arte.
A aplicação mais importante dos nanorrobôs de 2030 será literalmente expandir nossas mentes. Estamos hoje limitados a meras centenas de trilhões de conexões entre neurônios; seremos capazes de aumentá-las adicionando conexões virtuais por meio da comunicação entre nanorrobôs. Isso nos proporcionará a oportunidade de expandir amplamente as nossas habilidades de reconhecimento de padrões, nossas memórias e a capacidade de pensar de um modo geral, assim como a capacidade de nos comunicarmos com formas poderosas de inteligência não-biológica.
É importante ressaltar que uma vez que a inteligência não-biológica consiga entrar em segurança em nossos cérebros (um limiar que nós já cruzamos), ela crescerá exponencialmente, como é próprio da natureza acelerante das tecnologias baseadas em informação. Um cubo de uma polegada de aresta composto de circuitos de nanotubo (que já funciona em escalas ainda menores em laboratórios) será no mínimo um milhão de vezes mais poderoso do que o cérebro humano.
Em 2040, a porção não-biológica de nossa inteligência será muitíssimo mais poderosa do que a parte biológica. Será, entretanto, ainda parte da civilização homem-máquina, tendo derivado da inteligência humana, isto é, sido criada por humanos (ou por máquinas criadas por humanos) e baseada ao menos em parte na engenharia reversa do sistema nervoso humano.
[O físico] Stephen Hawking comentou recentemente na revista alemã "Focus" que a inteligência dos computadores ultrapassará a humana em algumas décadas. Ele advoga que desenvolvamos "o mais rápido possível tecnologias que tornem viável a conexão direta entre cérebro e computador, para que cérebros artificiais contribuam para a inteligência humana, ao invés de se oporem a ela". Hawking pode se reconfortar com o fato de que o programa de desenvolvimento que ele recomenda já está bem encaminhado.
Escrito por Ray Kurzweil e reproduzido no jornal Folha de São Paulo em 23/03/2003. Disponível em: http://www.neuropedagogia.com/versaohumana2.html
Este texto foi veiculado originalmente no site www.kurzweilai.net
Tradução de Victor Aiello Tsu.
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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.