sábado, 18 de julho de 2009

LXXII - Memórias das Trevas: Acerca do melhor dia da minha vida.


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§ 72





Just because you feel it
Doesn't mean it's there
(Radiohead - There There)



Assim, os sonhos isolados distinguem-se da vida real na medida em que não entram na continuidade da experiência que se prossegue através da vida: e é o despertar que mostra esta diferença. Mas, se o encadeamento causal é a forma que caracteriza a vigília, cada sonho tomado em si apresenta também esta mesma conexão. Se nos colocamos, para julgar as coisas, num ponto de vista superior ao sonho e à vida, não encontramos na sua natureza nenhum caráter que os distinga claramente, e é preciso conceder aos poetas que a vida é apenas um longo sonho. (Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação, Tomo I, § 5)


Eu acordei. Estava deitado na mesa do professor de uma sala de aula da faculdade que costumo freqüentar. Observei que ainda estava de madrugada. Coloquei as mãos nos bolsos e encontrei uma chave. Não pergunte como, mas eu sabia de onde a chave era. Eu não acreditei no que estava acontecendo. A chave era da sala de um professor, o qual me iria aplicar uma prova na noite seguinte. Corri pelo edifício deserto até a sala dele e abri a porta. Lá dentro não foi muito difícil encontrar o gabarito da prova (que eu tive que copiar à mão). Enquanto procurava o gabarito, eu achei algo a mais do que esperava: uma pistola 9 mm, e pentes de munição. E o que eu fiz com ela? Quando eu saí da sala, eu encontrei quatro dos meus inimigos mortais (dois atuais e dois do meu passado distante) amarrados no chão, indefesos. Como eu já imaginava que aquilo era um sonho, eu tratei de matá-los rapidamente, mas não sem prazer.

Foi quando eu acordei.

Eu estava na minha cama, onde eu geralmente costumo estar quando acordo. Percebi que o gabarito da prova estava no chão. Não acreditei no que estava acontecendo. Levantei, confirmei se aquilo no chão era realmente o dito gabarito (e era) e procurei a pistola, para confirmar se ela "tinha vindo" junto comigo também (não tinha).

Eu obviamente achei que eu continuava sonhando, e por isso comecei a me dar tapas na cara e beliscões nos braços, para ver se acordava. Mas não acordei. Resolvi então lavar o rosto (o que eu não tenho o costume de fazer - pois lavar o rosto aumenta a incidência de espinhas), para ver se "acordava". Não funcionou. Não demorou e eu percebi que eu estava diferente. Eu estava mais "gordo", ou melhor dizendo, estava mais forte. Eu sempre fui pele e osso (antes daquela manhã eu tinha 1,74 metro e 52 kg) e agora, "do nada", eu devia estar pesando uns 65 kg, peso esse um pouco maior que o suficiente para eu não ser considerado tecnicamente um "desnutrido" (isso é, suficiente para eu ter um IMC - Índice de Massa Corporal - superior a 20). A maioria dos mortais, quando está insatisfeita com seu peso, geralmente se queixa do excesso de peso; comigo era o oposto. Mas agora tudo parecia estar resolvido. Não acreditei no que estava acontecendo. Como eu já tinha certeza que eu não estava sonhando, eu imaginei uma hipótese mais sinistra para explicar essa minha "sorte": eu provavelmente tinha vendido a minha alma para Lúcifer, em troca de uns poucos prazeres. Bem, se fosse isso mesmo, o melhor que eu tinha a fazer era aproveitar, pois provavelmente a minha felicidade seria curta.

Percebi que era "bem cedo" (7:36 AM). Eu geralmente acordo lá pelas 10h20 (saio de casa 10h35), e com muito esforço. Aproveitei para "estudar" o gabarito e para fazer meus exercícios matinais (os quais, aliás, não fazia há meses, pois sempre acordo tarde demais). Nossa, foi muito estranho quando eu me sentei na cadeira e percebi que não estava sentado em meus próprios ossos (em outras palavras: agora eu tinha uma "bunda"); também foi prazeroso fazer os exercícios físicos, pois o corpo estava bem mais "receptivo" a esse tipo de coisa. Pensei no psicomotrisismo e em Schopenhauer (pensei em Schopenhauer? que novidade...): com esse novo corpo eu percebi que tudo, do nada, parecia melhor e mais fácil (já faz algum tempo que, para mim, o sujeito está reduzido ontologicamente ao seu corpo). Eu sentia um prazer pelo simples fato de existir. Achei aquilo muito estranho, pois nunca havia sentido nada parecido. Foi quando eu entendi que aquilo era o que as pessoas chamam de "tudo bem" (eu nunca havia entendido esse negócio das pessoas se perguntarem umas às outras se "está tudo bem"; agora eu entendia facilmente). Meu deus, como era fácil viver assim!, com esse corpo e esse estado de espírito a vida parecia completamente diferente do que era antes. Eu não acreditei no que estava acontecendo. Saber como a vida "era fácil" com aquele corpo e aquela disposição de espírito me deixou com um pouco de raiva "do mundo" por não ter me dado isso antes; mas eu estava tão bem disposto que simplesmente não senti necessidade de ficar remoendo esse assunto.

Saí para almoçar e ir trabalhar (logo descobriria que pela última vez). (Eu trabalhava apenas de tarde, das 12h às 18h.) Todas as minhas roupas estavam justas (algumas nem entravam mais), pois eu tenho o costume de apenas usar roupas tamanho P (os outros tamanhos ficavam ridiculamente grandes e largos, devido a minha magreza). Passei em uma farmácia e confirmei que eu estava 13 kg mais pesado. Quando almocei também percebi que conseguia comer com mais facilidade. É que eu não tinha uma relação muito boa com a comida (1); sempre comi por obrigação, quase sem nenhum prazer; se pudesse eu viveria de pílulas, ou mesmo da luz do sol e da umidade do ar. Fiquei pensando como é que eu iria explicar aos colegas de trabalho que engordei 13 kg em um fim de semana. Resolvi dizer que simplesmente não sabia como e que iria esperar alguns dias para ver o que aconteceria (vai que eu continuaria engordando, até virar uma bola de carne?).

Enquanto trabalhava, aproveitei para consultar na internet os últimos 8 resultados da mega-sena. Se eu tivesse vendido minha alma a Satanás, eu provavelmente teria pedido para ganhar na loteria, o que me libertaria da "escravidão do salário" e permitiria que eu desperdiçasse minha vida com o que eu quisesse, ou seja, com uma fruição ininterrupta de prazeres fúteis. Anotei os resultados para conferir à noite (pois esquecera de levar o bilhete comigo - eu costumo fazer uma aposta por mês, no randômico ("surpresinha") e repito-a oito vezes ("teimosinha"), assim não tenho que ficar indo na loteria duas vezes por semana (pois não tenho tempo para isso)).

Quando foi tomar um café na copa, fui "assediado" por uma colega de trabalho (a mais gostosa, aliás). Como eu não tinha o costume de passar por isso, eu não acreditei que aquilo estava acontecendo. A seguir apresento a transcrição fiel do nosso diálogo; por mais inverossímil que ele possa parecer, eu asseguro, pela luz que me ilumina, que é isso mesmo que dissemos:

Laura: Você está uma delícia hoje, senhor Conrado.

Duan Conrado: Ah, capaz!

Laura: Como é que alguém pode mudar assim em dois dias.

Duan Conrado: Tem coisa que é melhor a gente nem saber...

Laura: (pegando no braço de Duan) Sério, eu não estou acreditando no que eu estou vendo.

Duan Conrado: Você que ver melhor?.. Talvez você acredite...

Nós transamos no banheiro feminino do oitavo andar (eu trabalhava no sétimo). Eu nem preciso dizer que percebi que meu "o rapaz" estava mais longo e grosso, e que a minha performance foi muito boa e mesmo surreal.

Duan Conrado: Temos que ir, antes que alguém perceba.

Laura: Duan...

Duan Conrado: O quê?

Laura: Eu acho que te amo.

Duan Conrado: Eu vou primeiro.

O quê?? Primeiro eu sou cantado, depois eu tenho uma ótima performance sexual, depois ainda alguém me diz que acha que me ama?!. Obviamente eu não acreditei que aquilo estava acontecendo. E novamente eu percebi como a vida era fácil quando se tinha aquele corpo e aquele estado de espírito.

Eu esqueci de dizer, mas quando eu cheguei ao trabalho eu descobri que um colega meu (que era um dos quatro inimigos que eu matei a tiros quando estava sonhando) morrera na noite passado, aparentemente de ataque cardíaco (embora ele estivesse em boa forma); a causa da morte não tinha, ainda, sido confirmada. A surpresa de todos com a morte prematura dele me ajudou, pois pouca gente prestou atenção em mim, o que me livrou de dar grandes explicações (obviamente ninguém seria louco de tentar estabelecer uma ligação causal entre os dois eventos). Em virtude da morte desse meu inimigo, eu fiz umas ligações e acabei "descobrindo" que um outro inimigo meu tinha morrido na mesma noite, por uma causa ainda desconhecida. Fiquei imaginando, então, como eu faria para confirmar a morte dos outros dois, já que eles não fazem mais parte da minha vida. Resolvi deixar isso para depois.

Na faculdade, fui para a biblioteca, estudar o tal do gabarito (que a essa altura eu tinha certeza que realmente seria o gabarito da prova que eu faria). Dessa vez fui assediado por um certo Vinícius. Eu até transo com mulheres, mas o que eu gosto mesmo é de homem - de rapazes, mais especificamente. Comi ele em cima da "mesa de estudos" de uma das "salas de estudos" da biblioteca.

Duan Conrado: Tá gostando hã? Toma pica, vai! Não era isso que você queria? Teu homem come o teu cu assim, seu vagabundo?..Cavalga nessa rola,vai......

Enquanto ele "me limpava" eu percebi que já estava 15 minutos atrasado para a tal da prova. Eu já estava na porta quando tivemos o seguinte diálogo:

Duan Conrado: Tenho que ir, estou atrasado para a prova.

Vinícius: Duan...

Duan Conrado: O quê?

Vinícius: Eu acho que te amo.

Duan Conrado: Eu também acho que...me amo.

Fui embora antes que ele me respondesse. Depois de gabaritar a prova e ser o primeiro a sair da sala de aula (mesmo sendo o último a entrar) eu fui para casa. A primeira coisa que fiz foi tomar banho, pois cheirava a sexo. Depois de comer algo que não um ser humano, eu fui conferir os resultados da loteria. Você não vai ficar surpreso se eu lhe falar que eu ganhei 30 milhões de reais, vai? Pois é, eu fiquei um pouco. Aquilo já estava indo longe demais. Resolvi "acender um da paz para relaxar". Pensei: "Doravante tenho autonomia para complexificar minha alteridade para além dos limites de todo paroxismo. Preparai-vos, gentes! Temei e tremei diante do que há de ocorrer!". Quando meu irmão, Rômulo, chegou em casa eu contei essa boa notícia para ele (perto dela, todas as outras pareciam pouco relevantes). Assim mesmo eu acabei contando tudo o que aconteceu, pois ele quis saber como é que eu tinha engordado daquele jeito em menos de 24 horas. Então nós passamos o resto da noite e da madrugada bebendo, fumando e tentando planejar o que faríamos com o dinheiro, além de especularmos uma explicação para o que estava acontecendo (ele achou a hipótese da venda da alma bem plausível).

Quando vi já era de manhã. Continuamos nossas piras até umas 10 horas, quando eu saí para tomar café da manhã em um hotel (pois dinheiro não era mais problema) e fui me "despedir" da minha chefe (fui formalizar minha demissão). Cheguei lá e joguei o meu crachá em cima da mesa dela, depois comecei a falar (ou melhor, a gritar) algumas "verdades". Por fim comecei a sapatear em cima da mesa dela (ah, eu esqueci de dizer que eu estava usando uma cartola e uma bengala). Pensei até em defecar em cima da mesa, mas, convenhamos, isso já seria exagero. Saí voando, triunfante, pela janela.

Foi quando eu acordei.

Eu estava na minha cama, onde eu geralmente costumo estar quando acordo. Não encontrei gabarito nenhum no chão, e verifiquei que já era 10:45. Para confirmar que tudo tinha voltado ao normal, eu levantei e constatei que eu estava tão magro e estropiado quanto antes. Além disso a sensação de "tudo bem" havia sumido. Fui ao espelho para confirmar que eu era eu mesmo, e não alguma outra pessoa (nunca se sabe). Enquanto me olhava, levei um susto. Atrás de mim havia um "preto velho", com um cigarro de palha na boca. Era o diabo...

Duan Conrado: Aí Bebu! Assim você me assusta. Nem para bater na porta, que nem gente...

Mefistófeles: Você sabe o que eu vim fazer aqui.

Duan Conrado: Sim, presumo que veio me lembrar que eu vendi a alma para você em troca de um sonho realista no qual eu conseguisse me divertir um pouco. Presumo que a essa altura da história eu já esteja morto e minha alma já esteja no inferno.

Mefistófeles: Eu vou me divertir muito! (solta uma risada maquiavélica)

Eu acreditei no que estava acontecendo.

Foi quando eu acordei.


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1 "O depressivo potencial, assim, possui dentro de si e como parte sua um objeto pelo qual ele tem sentimentos mistos: "a sombra do objeto cai sobre o eu". Ele fez uma identificação narcísica com o objeto tido como ambivalente. Sua auto-estima está comprometida, porque parte do seu eu contém elementos que ele odeia. Ele se encontra, portanto, vulnerável à depressão, ainda mais se uma perda ou um deslize na vida adulta o fizerem regredir à perda primordial com que ele não conseguiu se conciliar. A "oralidade" do depressivo, a recusa de comer ou a voracidade ("comida de consolo") são manifestações dessa regressão, em que o bebê lactente "destrói", por assim dizer, na sua mente o próprio seio que ele ama e do qual depende." (Jeremy Holmes - Ideas in Psychoanalysis - Depression)


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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

Um comentário:

Anônimo disse...

Hilário! rs.