sábado, 28 de fevereiro de 2009

LIII - Acerca de esboços duma crítica à idealização e à idolatria das crianças.

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§ 53






"Se a gente parasse para pensar no custo, a gente não tinha filhos." (Dito a mim por uma bela garota gama de 23 anos, feliz e de bem com a vida, na noite de 05/08/2008)


"Se você for pensar racionalmente, você não teria um filho." (Professor doutor em economia ministrando aula sobre a teoria microeconômica da fertilidade na cadeira de desenvolvimento econômico do curso de ciências econômicas da UFPR, na data de 16/09/2008)

"Você nunca perde a esperança de recuperar 'o investimento' que você fez [no filho]." (Idem)

"A sociedade, ou mal ou bem, acaba impondo determinados padrões os quais se é discriminado quando se foge deles" (Idem, referindo-se à coerção social para que o indivíduo tenha filhos)

"Essa teoria microeconômica da fertilidade é, também ela, um retrato do princípio de prazer (as 'preferências', ou os 'gostos') curvando-se ao princípio de realidade (no caso, uma realidade econômica, na qual tudo é quantificável em dinheiro)." (Eu, nas minhas anotações dessa aula)


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Flashback # 5 - Iconoclastia reloaded - 19/05/2007



"Minha filhinha está cantando: 'ah-ah-ah-ah'. Não compreendo o que significa, mas sinto o que ela quer dizer. Ela quer dizer que tudo...não é horror, mas alegria." (O Diário de Vaslav Nijinsky, citado no final do capítulo IV do lvro O outsider - o drama moderno da alienação e da criação, de Colin Wilson.)

Estava eu, tranqüilo, almoçando, sozinho, em um restaurante vegetariano, como costumava fazer todos os sábados, quando adentraram ao recinto um pai, uma mãe, e a pequena filha, que tinha algo entre 2 e 4 anos. O espetáculo estava prestes a começar.
Enquanto o pai fazia o prato da pequena monarca, a mãe paparicava aquele ser desprezível, com as lorotas de sempre. O pai, passos rápidos, chega; a refeição é apresentada à criança, que com gestos de nojo a rejeita veementemente. A mãe ausenta-se para fazer seu prato, pois ela também tem direito à alimentação. Enquanto tentava, sempre em vão, convencer a cria a comer aquela colorida e saborosa comida, o pai, de vez em quando, ingeria um pouco do alimento destinado àquele macroaglomerado celular - não sei se buscando com isso "dar o exemplo" ou apenas aliviar sua fome.
A mãe, prato feito, chega; não para comer, mas para alimentar a fera. Tenta, também ela em vão, alimentar o bicho, o qual reage como se estivesse diante da coisa mais nojenta do mundo e que, não obstante a opulência alimentar que tinha diante de si, exigia unicamente o que não havia à sua frente: queria suco, e queria i-me-di-a-ta-men-te. Império dos sentidos.
Enquanto o pai, que se ausentara da sacra presença do animal, tentava escolher algo para alimentar o seu carcomido corpo, a criança - obviamente não se importanto com o ouvido dos outros que lá almoçavam, como eu, e que absolutamente nada têm a ver com a sua vida torpe de infante - gritava-lhe a exigência do atendimento imediato dos seu desejo supérfluo. O pai chega correndo com a bebida (ele certamente não teve tempo de escolher com calma e parcimônia os alimentos que iria ingerir - toda opulência do restaurante em vão): ele é obrigado a descuidar da própria alimentação; a criança, é claro, não quer nem saber: só ela importa, os outros que se fodam. Princípio de individuação. Pronto, chegou o suco, meu deus! Princípio do prazer. Nem por isso foi fácil fazer a menina simplesmente comer, coisa que deveria ser simples e óbvia - mas não é.
A rainha ficava olhando o mundo em redor, se mexendo, se pegando, fazendo qualquer coisa, menos comer. Apenas assisti até aí, já estava enojado, passando mal.
Como é que desgraçados e hipócritas têm a coragem de afirmar que as crianças são "puras" e "sem pecado"? Já estava, diante de meus olhos inescrutavelmente perplexos e dos pobres e atônitos pais, toda a merda de sempre: a mesquinhez, o egoísmo, o imediatismo, a animalidade, e o resto.
Para quê tudo isso, meu deus? Na melhor das hipóteses, caso a criança sobreviva e "vença" na vida, ela apenas conseguirá repetir o velho estribilho: casar, ter filhos...e assim o ciclo recomeça. Isso é o melhor que ela poderia ser, isso é o melhor que ela poderia fazer, isso é o máximo que a vida poderá lhe oferecer. E ache bom.

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"Então, a serpente disse à mulher: Certamente não morrereis." (Gênesis, 3:4)


Ora, essa suposta virtude que as pessoas querem ver nas crianças (chegando à petulância de as verem como "anjinhos") é decorrente, no que concerne às próprias crianças, principalmente da sua ignorância. Elas para um olhar desatento e superficial parecem virtuosas pelo simples fato que elas não possuem, ainda, o discernimento para perceber: (i) quais são exatamente seus interesses (refiro-me àqueles interesses menos imediatos, que estão escondidos por detrás duma corrente causal ainda desconhecida pela criança) e (ii) que esses seus interesses estão necessariamente em conflito com o de outros indivíduos (como o interesse de comer qualquer ser vivo se opõe ao interesse desse ser de viver e se multiplicar). Se a criança fosse capaz de perceber isso, ela seria a primeira a passar por cima dos outros, indiferentemente.

Contra essa ilusão da virtuosidade infantil, a verdade disponível à experiência nos indica que qualquer adulto, por mais rasteiro e mesquinho que seja, é menos egoísta que uma criança. Como eu já disse antes, com o processo de educação (domesticação) o animal selvagem que todos nós somos ao nascer é condicionado à vida social, esse condicionamento inclui a diminuição do seu egoísmo e a modelagem desse egoísmo aos interesses sociais (da "coletividade"). A visão de que as pessoas se tornam mais egoístas na vida adulta é totalmente falsa (pois a verdade é exatamente a oposta): é que elas, agora que são adultas, percebem muito mais claramente quais são seus interesses e que esses estão em conflito com os de outrem. A criança ainda não viveu o bastante para aprender a ser hipócrita, embora já minta tão logo seja capaz de perceber a utilidade desse artifício.

Essa ilusão da virtuosidade da criança também se vincula à ilusão de que o ser humano - e a vida em geral - é "essencialmente bom" e de que é vida e esse mundo (os quais por alguma fatalidade - como o logro da serpente sobre Eva - temporariamente são "maus") que corrompem-no. Dessa forma, mantém-se em aberto a vã esperança de que uma configuração mais adequada e feliz desse mundo poderia corresponder ao desabrochar da bondade humana, supostamente presente na "pureza" da criança, levando-nos enfim a uma improvável e inacreditável conciliação entre o egoísmo e a virtude.

De forma análoga ao que já foi dito, é apenas a ignorância infantil (e não uma bondade legítima) que livra a criança de ser hipócrita e mentirosa: é que ela, que, em seu egoísmo, apenas vê a si mesma e não percebe os interesses alheios, simplesmente não percebe que precisa muitas vezes utilizar-se desses artifícios para obter o que quer. Mas com o seu "amadurecimento" a criança aprende, na marra (pois a vida a ensinará), como deve se portar em um mundo como esse.


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"E Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai, e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; (...)" (Gênesis, 1:28) [Esse é o único mandamento que os humanos pecadores nunca tiveram dificuldade alguma em respeitar.]


Não é difícil perceber que uma das razões pelas quais as pessoas são condicionadas a idealizar as crianças reside na necessidade de procriação, para a qual tanto a sociedade quanto a natureza, de mãos dadas, preparam e coagem o indivíduo, essa marionete a qual é sua (da natureza e da sociedade) criação e legítima propriedade, sob todos os aspectos.

Afinal, se as pessoas de forma geral vissem as crianças com maus olhos, ou pelo menos com uma visão mais justa, científica e imparcial que a atual, certamente aí teriam um motivo adicional - e são tantos! - para não terem filhos. Como já disse Schopenhauer (O Mundo como vontade e como representação, § 60, Parerga e Paralipomena, § 156 e § 167, etc.) e como eu já ouvi - não sem surpresa - da boca de muita gente que absolutamente não conhece o filosofo do pessimismo, se pararmos para pensar se devemos ter filhos, se pesarmos os custos e os benefícios, tanto para nós quanto para o indivíduo que nascerá, nós muito provavelmente não teríamos filhos.



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"Então disse o Senhor Deus: Eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; ora, pois, para que não estenda a sua mão, e tome da árvore da vida, e coma, e viva eternamente, a Senhor Deus, pois, o lançou fora do jardim do Éden, para lavrar a terra, da qual fora tomado." (Gênesis, 3:22-23)

Outra idealização hipócrita associada a essa questão das crianças e de ter filhos é aquela que afirma, ou insinua, que os pais "decidem" ter filho(s) por algum tipo de virtude e desprendimento moral. O quê?!

Sim, por mais sofrido que seja ter um filho, por mais ingrata que seja essa tarefa, por mais decepcionante e desiludido que seja o resultado, a verdade é que as pessoas são convencidas, pelo processo de educação e pela eterna polícia do pensamento da coerção social, de que poderão se "realizar pessoalmente", como "ser humano", tendo filho(s). Ou seja, o sujeito se reproduz movido por motivos egoísticos (que surpresa, hã?): para satisfazer sua vaidade com a paternidade/maternidade, para tentar, por meio do(s) filho(s), realizar alguma pretensão pessoal frustrada, para ganhar o respeito da sociedade e da família (que primeiro coagem ao namoro, depois ao casamento, depois ao primeiro filho, depois ao segundo filho...), como "garantia" (?) de que haverá alguém para cuidar dele na velhice, etc.

É claro que o comportamento virtuoso seria o da abnegação e o da renúncia, e é coerentemente a isso que a ideologia popular tenta falsificar, para aqueles que são tolos o bastante para acreditar, em desprendimento e abandono do ego um ato que é totalmente egoístico e mesquinho.

Mentiras análogas são contadas acerca do amor romântico e do amor materno: eles são pintados como sendo virtuosos, quando na verdade são (surpresa de novo!) mesquinhos e egoísticos: o indivíduo apenas busca satisfazer o seu ego faminto através do reconhecimento e da admiração do outro. O prazer feminino em servir é o prazer de se reconhecer útil, portanto necessário e "importante" (e o livro Ensaio sobre a cegueira, de Saramago, é esclarecerdor nesse sentido).

Com relação às promessas de realização pessoal, o indivíduo precisa acreditar que vai ganhar algo com o serviço que presta á espécie (reproduzir-se), pois em caso contrário, preso que está em seu egoísmo (ou mesmo, caso raro, consciente das conseqüências morais do ato), jamais se prestaria a tal tarefa.

É um mundo cheio de mentiras.






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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

10 comentários:

Anônimo disse...

E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era MUITI BOM; e foi a tarde e a manhã: o sexto dia. (1:31):D

Anônimo disse...

Quem se importa com tolices ditas por pessoas tolas?

Duan Conrado Castro disse...

Todo mundo. Cada um alimente suas próprias tolices. Mas se as minhas são diferentes das suas, que eu posso fazer?

Anônimo disse...

Nada! Vc não pode fazer nada.

Duan Conrado Castro disse...

Eu o sei.

Anônimo disse...

Não é um pouco contraditório manifestar repúdio ao egoísmo humano, visto que isso só reflete nosso próprio egoísmo em querer que as coisas fossem "boas" e "justas" à nossa maneira (e não naturais á maneira que são) ?

Duan Conrado Castro disse...

Caro,

Primeiramente, o repúdio não é exatamente ao egoísmo, mas sim à hipocrisia, que quer esconder a realidade egoística atrás de virtuosismo barato...

Além disso, pode ter certeza que NUNCA nesse blog eu vou, junto com Nietzsche, fazer apologia do "natural" em detrimento do "moral" (que vc coloca como se fosse apenas a minha birra, e não algo digno de consideração); antes, repetirei sempre com o velho Schopenhauer:

"A desculpa, que vez por outra se ouve para muitos dos vícios, "mas isto é a natureza do homem", de maneira alguma é suficiente. Cumpriria, então, replicar: "é exatamente por ser perverso, que é natural; e exatamente porque é natural, é perverso". (Parerga e Paralipomena, §156a)

Agora se para vc o problema não é a vida (o natural), e sim a moral, então nossas visões estão para sempre irreconciliáveis.

Silas disse...

Primeiro é bom que algo fique claro aqui: a sua argumentação é essencialmente sentimental.

Assim, você tende a projetar seus sentimentos na existência alheia, e isso é um erro.

Eu tenho um irmão de 4 anos. Ele mora com meu pai, e por isso dificilmente o vejo, mas tenho amor pelo moleque.

Pode me chamar de iludido por isso: não tornará a realidade diferente do que é. O sacana é assim também: quer o que quer, mas se você mostra pra ele que ele não é o rei da cocada preta ele acaba acalmando e se comportando bem. O problema é que, muito por questões BIOLÓGICAS, a mãe se apega profundamente ao filho, e o pai também, daí, por não saberem lidar com os sentimentos, acabam sendo dominados.

Eu amo crianças, mas o paradigma de que são puras é cristão: as crianças não são egoístas, só são ignorantes. E essa é a máxima do cristianismo. Não é a caridade, e sim a ignorância. Não se pode comer da arvore da ciência do bem e do mal.

Se eu puder terei tantos filhos quanto puder. Aliás, eu queria adotar crianças. Porque a vida é boa, a minha vida é boa, e creio que mesmo se alegrando por motivos diversos, meus filhos crescerão amando a vida. Serão livres e terão nascido num lugar cheio de amor. Não é uma questão de extroversão: eu estou cagando e andando para o que dirão, honestamente. E também não quero projetar minhas aspirações na criança. Afinal, como eu sou bem novo, eu ainda não tive a oportunidade de me frustrar em minhas aspirações, que nem são assim tão magníficas.

Mas eu vi meu irmãozinho comendo na mesa da cozinha do meu avô, e depois dizendo: Silas, "Silbas", vamos brincar de super homem.que é quando levanto ele(tão leve) e saio correndo, e ele coloca a mão pra frente e voa como o super homem.

Eu não sei em você, mas isso me inspira afeto. Creio que é justamente nessa fase da vida que a pessoa tem que receber amor, pois com esse amor que a pessoa viverá por toda a vida.

Não se trata de ser um escravo da criança: isso só acontece quando os pais permitem.

Contrariando sua filosofia, por questões sentimentais, eu te digo hoje, aos 19 anos de idade, que QUERO ter tantos filhos quanto minha situação financeira vindoura permitir.

Pra mim o amor materno se desenvolve por questões biológicas e não sociais, mas isso não o torna menos mesquinho: o amor real tem causas mentais e internas. Causas reais.

A maioria das crianças são “pestinhas” e não anjinhos, mas é em geral o amor pelo filho que muda a mente de muitos homens. Já viu californication? E se você não conhece o amor, como pode simplesmente chamá-lo de ilusão e dizer que quem diz amar um filho não faz mais do que buscar aceitação dos outros?

Leia no meu blog:

Vontade de amor:

http://insilasbrain.blogspot.com/2009/04/vontade-de-amor.html

Duan Conrado Castro disse...

Não entendendo porque você insiste em dizer que o que eu escrevo é sentimental e não racional: em algum lugar eu escrevi que o que escrevo é racional?

A criança é para mim o símbolo da perpetuação dessa vida de merda. Prefiro ser torturado até a morte do que colocar mais um desgraçado para infectar a superfície da Terra.

Quem tem filhos, para mim o faz por motivos egoísticos (e não por algum desprendimento ou virtude, como tantas vezes já ouvi por aí), e porque está sendo manipulado pelos instintos da espécie (o indivíduo é prisioneiro de um mecanismo que garante a sua própria existência enquanto indivíduo). Nesse contexto, o "amor" (que como sabemos eu não conheço) figuraria como uma ilusão engendrada pelo instinto (e Schopenhauer já disse isso, por exemplo no capítulo XLIV do Tomo II d' O mundo como vontade e como representação). Eu poderia dizer que a sensação de bem-estar que as pessoas podem sentir (seja ela chamada de amor, de deus, de felicidade, etc.) não é nada mais que a vontade de viver, a qual quer exatamente essa vida e esse mundo, como eles são, e que se mostra satisfeita e realizada assim.

Caprice Jacewicz disse...

Gostei muito do texto e concordo plenamente com ele.

Tenho 32 anos, sou solteira e nunca quis ter filhos. Visto que vivo uma vida diferente dos padrões sociais impostos, já aturei e ainda aturo inúmeras críticas de pessoas que não aceitam que alguém queira e possa viver de forma diferente.

Raras são as pessoas que conseguem enxergar além dos condicionamentos sociais a que estamos sujeitos desde o nascimento, e mais raras ainda são aquelas que conseguem buscar formas de viver de acordo com seus próprios valores e não fazendo cegamente o que a sociedade espera.

Considero procriar nos dias de hoje um ato de completo egoísmo e irresponsabilidade. Nosso país é um caos e sempre penso como estará a situação daqui a 20 anos, quando as crianças de hoje precisarem de vagas na universidade, de empregos e de segurança.

Me chamam de egoísta porque não quero ter filhos. Mas não consigo pensar em UMA só razão que não seja egoísta para se TER filhos.

A idolatria da maternidade e a mania de sempre a associarem à mulher realizada apenas escravizam a mulher a um papel que não é necessário e válido para todas
(Simone de Beauvoir fala brilhantemente a respeito).

Ver as crianças como elas são na realidade, sem ilusões ou idealizações, certamente permite que se tome decisões mais conscientes a respeito da maternidade/paternidade. Ser pai e mãe não é pra qualquer um, e sim para poucos que realmente sabem a árdua tarefa que os espera. Crianças são seres humanos, têm desejos e defeitos. Mas raramente vejo adultos realmente cientes disso. Decidir ser pai ou mãe sem ter consciência do que se está fazendo, baseando-se em ilusões e na preocupação em adquirir um status aceito socialmente, é o ato mais egoísta que posso imaginar.