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§ 100
Antes de ler este capítulo, sugiro a leitura do capítulo ### 33, o qual serve como um referencial teórico com o que é dito aqui.
Esse capítulo, e os cinco próximos, serão dedicados à indústria cultural. Nesse capítulo, teremos considerações sobre a literatura infantil mercantilizada; no capítulo 101 trataremos do caso específico do livro O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry; no capítulo 102 faremos breves considerações sobre um dos primeiros filmes animados de Walt Disney, Steamboat Willie, e veremos como o seu subtexto contém uma legitimação das relações autoritárias; já no 103 trataremos da catarse da pulsão de morte na indústria cultural (com destaque para os casos do anime Dragon Ball e da triologia hollywoodiana Matrix); no capítulo 104 teceremos breves considerações acerca do filme Avatar, de James Cameron; no capítulo 105 faremos observações sobre o vídeo de auto-ajuda Filtro solar, e veremos novamente o papel político conservador da indústria cultural; e, como contraposição à indústria cultural, faremos, por fim, no capítulo 106 considerações sobre o filme Anticristo, de Lars von Trier. Todos esses capítulos seguirão a linha editorial desse blog, a saber, a de iconoclastia e de crítica radical ao mainstream, ao establishment e, em última instância, à vida tal como ela se apresenta historicamente - ou seja, um espécie de terrorismo intelectual.
Saliento que eu estudei muito pouco a teoria da indústria cultural. Portanto, o conteúdo desses texto é mais um reflexo das minhas conjecturas pessoais do que de um estudo sistematizado da referida teoria.
Todos esse capítulos serão marcados pelo marcador “indústria cultural/cultura de massa”, que já contém 12 textos, inclusive os destinados à critica da publicidade e da auto-ajuda.
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Não pretendo, nesse texto, “analisar” longamente os diversos aspectos relativos à literatura infantil como indústria cultural, mas sim viso fazer uma metacrítica da mesma. Ou seja, viso fazer uma crítica do seu próprio discurso crítico. Depois desse capítulo “teórico” veremos no próximo capítulo um “estudo de caso”, o livro O pequeno príncipe.
O sucesso comercial – entre adultos – de mercadorias da indústria cultural voltadas para o público infantil, como o livro O pequeno príncipe e o filme E.T., é a prova mais gritante da infantilização da maioria dos adultos, o que, por sua vez, é indicativo da existência de mecanismos culturais de manipulação e regressão na sociedade capitalista.
O fato do imaginário infantil ser apropriado como utopia do adulto, foi satirizado recentemente por alguns, por exemplo pela banda Radiohead (não só no vídeo 2+2=5, mas também nos seus "mascotes" depressivos com dentes afiados), que utilizou a simbologia desse imaginário para retratar um mundo distópico.
Um mundo idealizado e irreal é apresentado sub-repticialmente como argumento na racionalização de um discurso crítico do real e de construção de um ideal (conforme descrito no capítulo XCVI). O real, em última instância, é referenciado como ausência, testemunha de uma sociedade que se transcende ilusoriamente enquanto cultura infantilizada de massas. O papel dessa transcendência ilusória é, por fim, impor como fatalidade, à qual se deve resignar, o próprio real que é criticado de forma amadora e inconseqüente: o próprio senso-crítico é desmerecido mediante sua infantilização, e silenciado pela demonstração de sua vacuidade, erigindo-se assim o real como inevitabilidade histórica, e transformando dessa maneira a história em natureza, e contribuindo para a despolitização de uma sociedade que busca escapar do real, em vez de lutar politicamente por sua transformação superação. A emancipação ilusória da história infantil, enquanto eufemismo alienante, é inimiga da emancipação real, a qual apenas pode ser alcançada mediante a práxis política das massas que lutam por sua emancipação. Ou o consumo individual de uma mercadoria da indústria cultural seria capaz de ensejar uma emancipação efetiva?
Para ser melhor imposto, mediante persuasão, o real é espetacularizado num ideal ilusório que só na aparência o nega, mas que, em última instância, se esgota num escapismo cujo resultado é precisamente afirmar o que aparentemente nega.
O texto ficcional cria as condições para a validade epistemológica do conhecimento filosófico que lhe fundamenta, que é o seu subtexto. Mas o que isso diz sobre o mundo real? Não raro, não diz nada, sendo o mundo do texto ficcional uma caricaturização burlesca do mundo real, ou mesmo um escapismo explícito. Não se pode esperar que uma história seja capaz de nos ensinar alguma coisa sobre a realidade quando essa não é retratada com fidelidade, mas sim de maneira caricaturizada.
Por isso eu sou tão reticente em ler literatura (contos e romances), mesmo porque o eventual conteúdo filosófico existente está bem mais aberto a múltiplas interpretações (fora nos muitos casos em que este conteúdo é o puro senso-comum), além de estar imiscuído com o enredo, exigindo de mim a tarefa de separá-los.
A caricaturização do mundo nas histórias infantis nos lembra que a mesma técnica é, não raro, usada na publicidade (conforme eu descrevi no capítulo LXXXIV, e também no LXXXV), o que é testemunha do poder persuasivo que ela (a caricaturização) tem sobre as massas, as quais em geral não percebem os deslizamentos conceituais que são realizados sub-repticialmente no processo de caricaturização e acabam por remeter incorretamente ao mundo real conclusões tiradas num mundo ficcional que não diz mais respeito à realidade. Mais um exemplo disso se encontra no conceito de natureza presente no subtexto do filme Avatar (ver cap. CIV, a ser postado em 08/05/2010). As conclusões (“morais da história”) tiradas no mundo ficcional (ideal) não dizem respeito ao mundo real, pelo simples fato de que se tratam de universos ontologicamente diferentes. Essa inversão, em vez de assinalar para uma transformação do real (conforme sugere o texto), assinala para uma reiteração do mesmo, pois (conforme o subtexto) a irrealidade do ideal sinaliza para a naturalidade (e inevitabilidade histórica) do real.
O autor da história infantil busca, pateticamente, exorcizar a sua responsabilidade pelas injustiças do mundo real concreto mediante um escapismo, assim estruturado: (i) ele concebe um mundo alternativo e idealizado, no qual os aspectos positivos do mundo real são abruptamente divorciados dos aspectos negativos aos quais eles estão intimamente ligados (eliminando assim as contradições do mundo real), e no qual é vigente um outro tipo de causalidade reificada (1) e onírica (“magia” ou “imaginação") que abole as necessidades concretas e, portanto, a necessidade do trabalho produtivo, transformando todos os personagens em gozadores do ócio conspícuo (conceito desenvolvido por T. Veblen, conforme eu apresentei no capítulo XXI) ; (ii) esse mundo idealizado é associado a uma figura idealizada da infância, igualmente amputada, na qual aspectos agradáveis (“bons”) são divorciados dos aspectos desagradáveis (“maus”) (por exemplo, a “inocência” da criança é apresentada como uma fonte de virtude, como uma realidade em si mesma, e não como uma mera conseqüência de sua ignorância, conforme eu já tratei no capítulo LIII); (iii) o mundo real, caricato, é criticado em oposição a um ideal, patético, reducionista, imaginário e para sempre impossível de se concretizar; (iv) a criança é apresentada com agente transformador do mundo, como a esperança de que um dia o mundo real pode ser parecido com o mundo ideal; (v) essa crítica promove uma catarse da co-responsabilidade e da cumplicidade que o autor (e o leitor adulto) tem em relação ao mundo no qual está inserido, ele, assim sente, por meio de uma gratificação simbólica, que “fez a sua parte” para mudar as coisas. Porém essa gratificação simbólica é usada pelo establishment, justamente por ser simbólica e deixar a realidade tal qual está, como forma de catarse simbólica que perpetua ideologicamente e contribui para a reprodução histórica do status quo.
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(1) O conceito de reificação (alienação, coisificação, fetichização) será central nas análises desenvolvidas nos próximos dois capítulos. Por isso, caso você não o domine, sugiro que o estude, a começar pelo capítulo ### 5 desse blog.
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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.
6 comentários:
Bem curioso pra ver suas considerações sobre "Avatar", o video do filtro-solar e sobre o Anticristo, que a propósito eu ainda não vi.
“O sucesso comercial – entre adultos – de mercadorias da indústria cultural voltadas para o público infantil, como o livro O pequeno príncipe e o filme E.T., é a prova mais gritante da infantilização da maioria dos adultos, o que, por sua vez, é indicativo da existência de mecanismos culturais de manipulação e regressão na sociedade capitalista.”
Não seria o contrário? Pra mim pareceu que você dizia precisamente o contrário no post indicado. Que essa é uma idealização fantasiosa do adulto sendo projetada na criança. Não seriam as crianças sendo “fantasiadas” pelos adultos ao invés de adultos se “infantilizando”? Afinal, concordamos que esse tipo de fantasia não tem nada a ver com as crianças na realidade.
Essa ponto não teria um efeito “psicolgizante” na segunda parte do argumento, exigindo não uma explicação relacionada ao sistema capitalismo, mas reflexões sobre o processo de projeção que parece ser comum nos adultos?
“emancipação ilusória da história infantil, enquanto eufemismo alienante, é inimiga da emancipação real, a qual apenas pode ser alcançada mediante a práxis política das massas que lutam por sua emancipação.”
Você não acha que há prisões individuais das quais podemos nos emancipar que são independentes do contexto social? Quero dizer, não há forma de escravidão profundas e exclusivas de alguns indivíduos?
Não poderia ser a literatura criativa, de um modo geral, a interação entre o indivíduo e o próprio Inconsciente, tomando ele, assim, consciência de si mesmo e se livrando do feito coercivo dos conteúdos “escondidos” e/ou desconhecidos?
Pode não efetivar uma emancipação, uma libertação do trabalho escravo e tudo, mas emancipação não é só isso. Tem muito de descobrir a si mesmo, de ter harmonia consigo mesmo, mesmo que em choque com a sociedade: afinal, a sociedade é organizada de formar agressiva e desarmônica, mas não impossibilita nosso equilíbrio pessoal.
Se por um lado esse tipo e harmonia auxilia a pessoa a aceitar a vida, ele dificilmente a torna adapatada. Pelo contrário, quanto maior a harmonia interna, tanto mais desajustado ele será.
Para ser ajustado, você tem que ser um enorme nada. Nem desequilibrado e nem equilibrado: apenas um robô.
A maioria das pessoas que conheço que gostam do Pequeno príncipe, por exemplo, acham o livro bonito, mas ele não parece trazer grandes implicações na vida deles. Pelo contrário, constroem seu comportamento de maneira que sejam ajustados. Assim, viram robôs pra fugir da agonia da solidão.
Meu ponto aqui é que esse tipo de literatura trata de uma perspectiva pessoal, e que não pode ser usado como guia político. Pelo contrário, para estudarmos a sociedade e as relações políticas, devemos ir à fontes apropriadas a tal perspectiva. Não vejo como uma coisa exclui a outra.
“Mas o que isso diz sobre o mundo real? Não raro, não diz nada, sendo o mundo do texto ficcional uma caricaturização burlesca do mundo real, ou mesmo um escapismo explícito.”
Que mundo real? A expressão psicológica é muito íntima. Diz respeito não à sociedade, mas ao profundo dos indivíduos. Aliás, esse tipo de expressão criativa é uma linguagem muito mais humana do que a "realidade ... retratada com fidelidade". Essa fidelidade, essa exatidão de estudo racional, abole a criatividade em nome da razão, como se esta fosse nos levar a algum lugar sem uma força motriz irracional para movê-la.
“Por isso eu sou tão reticente em ler literatura (contos e romances), mesmo porque o eventual conteúdo filosófico existente está bem mais aberto a múltiplas interpretações (fora nos muitos casos em que este conteúdo é o puro senso-comum), além de estar imiscuído com o enredo, exigindo de mim a tarefa de separá-los.”
O problema é que você iguala um trabalho explicativo racional com um criativo intuitivo. O objetivo de um romance não é explicitar de maneira concisa um conteúdo filosófico como num livro de Schopenhauer. Pelo contrário, ele é uma forma de expressão que vai pra além da razão. Se você, ao invés de perceber a obra com sensimentos, sensações imaginação, etc. apenas buscar um sentido racional e filosófico, só duas coisas poderão acontecer.
1)Você pode extrair uma idéia do livro que nunca foi o objetivo do autor.
2)Também pode se decepcionar ao perceber que a obra é irracional e que, em última análise, não tem o objetivo de apresentar explicações ou razões.
Se você sentir a obra com outras faculdades que não apenas o pensamento, no entanto, os efeitos em você serão claros. Isso humaniza, trás calor.
“A caricaturização do mundo nas histórias infantis nos lembra que a mesma técnica é, não raro, usada na publicidade (conforme eu descrevi no capítulo LXXXIV, e também no LXXXV), o que é testemunha do poder persuasivo que ela (a caricaturização) tem sobre as massas, as quais em geral não percebem os deslizamentos conceituais que são realizados sub-repticialmente no processo de caricaturização e acabam por remeter incorretamente ao mundo real conclusões tiradas num mundo ficcional que não diz mais respeito à realidade.”
Realmente, é notável que quando a razão é ignorada completamente, a expressão artística pode ser usada como forma de manipulação. Note que meu discurso irracionalista não elimina a razão, mas apenas a ditadura dela sobre outros tipos de percepção/interpretação que são tão humanos quanto ela.
Sobre a explicação final, concordo plenamente pelo fato de que você deixou claro que fala sobre a criação de obra para crianças. Realmente, é isso mesmo que percebo e não vejo como discordar. Apenas defendo a arte que, livre desses critérios, pode exibir o belo e o horrível. Porque a vida tem das duas coisas. Acho que Dostoievski é um excelente artista, muito criativo. Se expressa com uma linguagem não apenas racional e mostra coisas “desesperadoras” sobre a realidade. Obviamente a obra dele não é recomendada para crianças...
Gostei desse texto.
Espero que perceba que não estou, de maneira alguma, defendendo a literatura infantil. Apenas a literatura de um modo geral...
Silas,
Sim, suas observações são razoáveis (e sem aquele tom "dono da verdade" que muitos dos seus comentários possuem). Concordo que existem "prisões individuais das quais podemos nos emanciapar que são independentes do contexto social", e que a literatura pode ser útil para essa emancipação.
Agora, com relação aos produtos da indústria cultural, o que eu pretendo é afirmar que eles exercem um papel social de perpetuação do establishment, e podem muito bem fazê-lo emancipando o indivíduo de alguma prisão pessoal, desde que a prisão social - a ordem política e social vigente - fique intacta. Afinal, se a indústria cultural faz sucesso, ela só pode fazê-lo entregando às pessoas o que elas querem. Eis o mecanismo persuasivo: desviar a atenção do questionamento da ordem social estabelecida por meio de discursos sedutores. E é aqui que surge seu PAPEL POLÍTICO CONSERVADOR (como eu falarei várias vezes nos próximos capítulos).
O "mundo real" que eu me refiro é o cotidiano do trabalho e da família, regido pelo despotismo do establishment. É desse "real" que o consumidor busca escapar num mundo infantil (infantil de acordo com a construção social de infância). Ele permanece "infantilizado" justamente por causa dessa sua necessidade de regredir para a utopia infantil como forma de efetuar a catarse da sua atuação no mundo real do trabalho e da família.
Com relação à minha oposição à literatura, eu, de forma alguma, estou dizendo que ela não deveria existir e que os livros deveriam ser queimados em praça pública, o que eu estou dizendo é porque eu - que sou do tipo racional - não me interesso por ela. Ou seja, a despeito dos vossos conselhos, eu continuo a me aprofundar na razão, em detrimento de viver o sentimento.
Na verdade quando eu contraponho a razão ao irracional, nem sempre esse irracional é sentimental. Quero dizer, valores são de ordem sentimental e, no entanto, a valoração é algo bem consciente e "racional".
Falo mais de intuição. Mas acho que no seu caso isso não é tão importante, porque, embora você se diga racional e agnóstico(através da razão, nada é mais adequado), essa não é sua posição efetiva.
Antes, você possui contato com a intuição. Daí surge criatividade e idéias, mesmo admitindo que são sempre esboços por causa do "amor à razão".
Pessoas completamente racionais não têm como construir nenhuma idéia, porque todas as idéias vão contra algo que é racionalmente viável. Isso nas premissas. O caminho mais razoável é o do meio. mas não o meio entre dois pontos, mas o meio de um círculo: não é um caminho, mas um ponto fixo. Se fossemos nos guiar pela razão, jamais teríamos idéias novas e jamais sairíamos do lugar.
Com relação ao manter o establishment, concordo. Não adianta um homem se equilibrar e ignorar o meio em volta dele. Homens não são ilhas.
Erotismo (ta legal, isso já é banal) e reificação escatológica em desenho do Cebolinha:
http://www.youtube.com/watch?v=EolsYzeuOj4
Será que essa imagem construída socialmente que nega à mulher o reconhecimento social do seu ato de defecar tem relação com a “prisão de ventre” (“intestino preguiçoso”) que afeta tantas mulheres?
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