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§ 101
Não gosto que leiam meu livro superficialmente. (O pequeno príncipe, capítulo IV)
Antes de ler este capítulo (o mais longo capítulo desse
blog, talvez perdendo apenas para o
capítulo LXXXIV, destinado à crítica da publicidade), sugiro a leitura do
capítulo anterior (100), bem como do capítulo
### 33, os quais servem como um referencial teórico com o que é dito aqui. Recomendo também a leitura do
capítulo XCVI, pois veremos aqui, na prática, como funciona a “teoria” do
real e do ideal enquanto discursos.
Chamo esse texto de "esboço" pois enquanto o escrevia percebi que, caso me dedicasse o suficiente, seria possível escrever um texto muito maior, mesmo um livro com centenas de páginas, utilizando-se, inclusive, de outras abordagens metacríticas além da marxista. Mas infelizmente eu nunca terei tempo livre o suficiente para me dedicar a um projeto desses que, todavia, eu reconheço ser totalmente exeqüível.
Por fim, antes vejamos o que a
Wikipédia diz desse livro:
Le Petit Prince, conhecido como O Principezinho em Portugal e O Pequeno Príncipe no Brasil, é um romance de Antoine de Saint-Exupéry publicado em1943 nos Estados Unidos. A princípio, aparentando ser um livro para crianças, tem um grande teor poético e filosófico. É o livro francês mais vendido no mundo, cerca de 80 milhões de exemplares, e entre 400 a 500 edições. Também se trata da terceira obra literária (sendo a primeira a Bíblia e a segunda o livro o peregrino) mais traduzida no mundo, tendo sido publicado em 160 línguas ou dialetos uma das 11 línguas oficiais da África do Sul. Em Portugal, "O Principezinho" integra o conjunto de obras sugeridas para leitura integral, na disciplina de Língua Portuguesa, no 2º Ciclo do Ensino Básico.
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Toda crítica pressupõe um discurso do real que é admitido como verdadeiro, pois a crítica nada mais é do que a demonstração da inadaptação do discurso criticado ao discurso que se admite como verdadeiro. Como indica o título desse capítulo, o discurso do real pressuposto aqui, nesse capítulo, como fiel descrição da realidade é o discurso marxista. Isso significa que a metacrítica aqui realizada tem por conteúdo comparar esses dois discursos críticos do real (cada qual, por sua vez, associado a um respectivo discurso do ideal) e demonstrar que o primeiro - O pequeno príncipe - não se adapta ao segundo - o(s) marxismo(s) -, que é admitido aqui como descrição "verdadeira" do real. Se é bem-sucedida a pretensão marxista de conhecer a realidade, essa é uma outra questão - certamente digna de consideração - que não é levada em conta no presente trabalho. Se você acha que é "covardia" opor Marx & cia ao pequeno (e ingênuo) príncipe, eu lhe pergunto o que é então um outsider empreender sozinho, no seu blog que ninguém lê, uma batalha contra um dos maiores best-sellers de todos os tempos.
Eu não me considero um marxista:
eu sou um
outsider, e, por isso, recuso-me a me encaixar em qualque "ismo", recuso-me a abraçar qualquer discurso do real como a verdade última, pronta e acabada. Mas, para todos os efeitos, eu tentei me comportar, nesse texto, "como se" fosse um
marxista, assim como em outros textos desse
blog eu me comportei "como se" fosse
schopenhauriano, ou
teórico da conspiração, ou militante das causas do
ateísmo e do
agnosticismo. Na "verdade" (seja lá o que for isso)
eu sou todos esses "personagens" simultaneamente, ao mesmo tempo que
não sou nenhum deles, por
ser também outro que se sobrepõe a todos: um
outsider (com relação ao que eu entendo por
outsider, ver cap.
CVII).
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Ninguém pode pois escrever sem tomar apaixonadamente partido (qualquer que seja o distanciamento aparente de sua mensagem) sobre tudo o que vai bem ou vai mal no mundo; as infelicidades e as felicidades humanas, o que elas despertam em nós, indignações, julgamentos, aceitações, sonhos, desejos, angústias, tudo isso é a matéria única dos signos, mas esse poder que nos parece primeiramente inexprimível, de tal forma é primeiro, esse poder é imediatamente apenas o nomeado. (Barthes, Crítica e Verdade)
Em vez de elaborar um corpo teórico que lhe permita fazer uma apresentação coerente da condição humana atual, bem como lhe permita apresentar sugestões consistentes para uma transformação política do real, o autor do livro O pequeno príncipe constrói uma crítica reducionista condenada a servir de mero escapismo, mera masturbação mental. Em vez de organizar-se politicamente, o autor (e o leitor), resolveu fugir para um mundo infantil, reificado, e, de lá, ficar resmungando contra o mundo burguês do qual ele é participante e cúmplice, mundo esse tipificado em seu discurso tosco como sendo antropomorfizado em “pessoas grandes”. Essa cumplicidade, a qual ele busca purgar em sua regressão a um mundo infantil, é a verdadeira fonte da “vergonha” que ele alega sentir quando o principezinho o acusa de agir como “as pessoas grandes” (no cap. VII)
A culpa e a frustração sentidas por
Saint-Exupéry (o autor do livro) pela execução de uma prestidigitação barata dessas transparece repetidamente n’
O pequeno príncipe. Ao remoer esses sentimentos, o autor parece entender que essa crítica inócua do real não irá eximi-lo – nem irá eximir o leitor – de sua responsabilidade para com a reprodução do
establishment: em sua futilidade, esse exercício ficcional se esgota numa masturbação mental domesticadora, cujo discurso emancipador se revela totalmente contraproducente, e que, portanto, se reduz a um entretenimento, a um escapismo.
O “mundo dos adultos” (o mundo capitalista, com sua indústria cultural) é um requisito para que Saint-Exupéry escrevesse e divulgasse o próprio livro que ingenuamente acredita compreender a realidade e criticá-la com alguma coerência. Essa incoerência do autor não é mera hipocrisia; é, antes, testemunha da função social da indústria cultural na sociedade capitalista pós-industrial, uma sociedade que se transcende mistificadamente enquanto cultura: a função de promover uma catarse onírica da responsabilidade que cada membro da sociedade tem pela perpetuação da ordem social vigente, para assim desincentivar a transformação política do real, mantendo dessa forma o establishment. A suposta crítica de Saint-Exupéry ao mundo é utilizada por ele (o mundo) para manter tudo tal qual está, para manter o status quo.
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Vamos analisar a história, em seus 27 capítulos, mais de perto. Obviamente o texto a seguir contém spoilers (revelações sobre o enredo), aliás, essa metacrítica será muito melhor entendida por quem leu o livro e lembra dos seus detalhes. Admito que essa não seria a forma mais eficiente de estudar o livro. O melhor seria organizar a metacrítica por eixos temáticos, e não pela cronologia do livro. Mas isso daria muito mais trabalho...
Capítulo I
Aqui o autor apresenta a dicotomia básica de seu sistema crítico do real, que, simultaneamente é a defesa do seu ideal (sobre o real e o ideal enquanto discursos, sugiro a leitura do
capítulo XCVI). A dicotomia é a seguinte: “as pessoas grandes” (ou ainda “gente séria”)
versus “as crianças”. As primeiras são a antropomorfização do
establishment, que é criticado pelo autor, e as segundas são apresentadas como as autoras de um projeto de redenção e de superação do real.
O autor, e seu alter ego aviador, nem preciso dizer, é uma “pessoa grande” (assim como todos os autores de literatura infantil); portanto, ao referir-se aos adultos na terceira pessoa ele apresenta sinais inequívocos de regressão, de infantilização. Ele regrediu pois acredita que, agindo como uma criança, atingirá um ideal de transformação do real; noutras palavras, ele se comporta como criança porque acredita que o problema do mundo são os adultos. Como primeira contra-argumentação, eu saliento que toda a produção material – todo o trabalho (aliás, seguindo a reificação básica das histórias infantis, o mundo do trabalho está ausente na história, como veremos repetidamente abaixo) – necessária para a manutenção biológica da vida é realizada por adultos, e não por crianças, nem desenhistas ou poetas.
Mas cabe salientar que essa regressão não custou esforço algum ao aviador-narrador: ele não precisou se esforçar para regredir pois, por algum motivo não explicado, ele, mesmo sendo um homem, um adulto, naturalmente e espontaneamente não se comporta como as pessoas grandes. No fundo, o que o aviador-narrador, e portanto o autor desse livro, quer é transformar toda a humanidade numa cópia de si mesmo, que ele projeta na figura das crianças: esse é o “caminho” de emancipação proposto por ele: “sejam como eu sou, e tudo será bom”. Bom se a realidade fosse tão simples assim. Mas não é.
O autor afirma que as pessoas grandes têm dificuldade de entender as coisas, e que precisam de explicações detalhadas. Depois ele afirma que essas pessoas o desaconselharam a continuar desenhando – e assim eles culpa os outros (as pessoas adultas, o mundo cruel) pelo seu fracasso profissional (“Foi assim que abandonei, aos seis anos, uma promissora carreira de pintor”). Percebemos que a frustração pessoal do autor é canalizada para a formação de um discurso crítico do real, discurso, como veremos, extremamente pobre e incoerente. Como eu já disse no
capítulo VII desse blog,
o rebelde não passa de um desajustado.
Em oposição à complexidade e à polissemia do mundo real (ver
capítulo LVII), o autor advoga que a realidade é muito simples e evidente, sendo que são as pessoas grandes que a complicam. Não é difícil perceber, já aqui no capítulo I, que a “realidade” à qual o autor se refere é o seu próprio mundo imaginário interno. Quando diz que o mundo é simples, na verdade ele está enunciando um desejo: que o mundo fosse simples.
Veremos constantemente o autor-narrador desprezar os conhecimentos práticos e instrumentais, não raro de forma irônica, sendo que são justamente esses conhecimentos condição social concreta básica para a configuração de uma sociedade na qual ele pudesse se dedicar à sua criação literária e pictórica, e na qual pudesse vendê-la como mercadoria. Vemos a grande incongruência do autor: no fundo ele critica a realidade sem ter um conhecimento mínimo dela.
Vemos, no último parágrafo desse capítulo I que, claramente, as “pessoas grandes” são uma antropomorfização do mundo burguês, do establishment político e econômico. Vemos também como o autor – em seu reducionismo verdadeiramente grotesco – criou um método para separar as “pessoas grandes” dos outros. Ele afirma que, fora as crianças, que já são identificáveis visualmente, não encontrou ninguém, a não ser ele mesmo (que arrogância...), que manteve a inteligência quando adulto (isso mesmo, “inteligência”). Veremos adiante que é essa a explicação que o autor usará para decifrar os enigmas do mundo: os adultos perdem a inteligência e a bondade que possuem quando crianças. Noutras palavras: as pessoas nascem boas e depois ficam más, por isso o mundo é mau. Para resolver os problemas do mundo, os adultos precisam voltar a se comportar como crianças (ou talvez, como os adultos já são um caso perdido, seja o caso de impor uma “ditadura das crianças” (se não me engano isso chegou a ser defendido por Mário Quintana), ou mesmo seja o caso de promover um holocausto como “solução final” para o problema dos adultos). E viveram felizes para sempre. Fim.
Capítulo II
A solidão que o narrador-autor afirma sofrer nos permite inferir que ele é um outsider (falaremos mais do outsider no capítulo CVII, a ser postado em 05/06/10). Mas ele, como veremos, é um outsider totalmente diferente de mim. Enquanto eu sou racional (desenvolvo meu psiquismo por meio da complexificação do pensamento), ele é sentimental, o que reflete no seu discurso de mundo simplório, raso e reducionista (e, portanto, totalmente inútil como ferramenta de transformação do real). Porém, foram os sentimentos e o reducionismo ontológico que permitiram a esse livro se tornar tão popular, inclusive – e nunca é demais insistir nesse ponto – entre adultos, popularização essa que nunca ocorrerá com a literatura intelectualizada.
O aviador-narrador repete que viveu só, pois fora ele não há adultos inteligentes e puros no mundo. Por que ele não buscou mitigar essa sua solidão criando um orfanato? Ou adotando crianças abandonadas? Isso não nos é dito, o que sabemos é que, em vez de agir, fazer alguma coisa, ele ficou se lamentando, roendo a própria alma, e isso enquanto já era detentor do conhecimento dos mais íntimos segredos do funcionamento do universo. Quando a alucinação (o “pequeno príncipe”) aparece, a primeira coisa que chama a atenção é justamente a sua aparência: em incoerência grotesca com a crítica feita às pessoas grandes no capítulo IV (que elas são pessoas superficiais que se importam com a aparência e com as roupas), vemos que o garoto está muito bem vestido. E não apenas isso: vemos que ele é loiro e que porta uma espada (portanto, não só um símbolo fálico, mas uma arma de guerra usada para matar). Como o autor adverte, o garoto, em seu porte e expressões, era “extraordinário” (ou seja, fora do comum) e “sedutor”. Vemos aqui, novamente se repetir o estereótipo idealizado (descrito no
capítulo XLIII) segundo o qual os heróis são homens, jovens (nesse caso, criança), ricos (nesse caso, um príncipe), brancos (nesse caso, um ariano – conforme informado no capítulo VII do livro o garoto tem “cabelos dourados”), saudáveis (obviamente o pequeno príncipe está muito bem de saúde), belos e heterossexuais (se bem que, nesse caso, o garoto parece ser assexuado, o que confirma a negação do corpo, da materialidade concreta, como veremos repetidamente abaixo). Todos esses sinais “sedutores” e “extraordinários” são justamente testemunhas da
cumplicidade do pequeno príncipe com uma sociedade machista, falocrática, elitista, preconceituosa, violenta, opressiva, etc., enfim, com o
establishment, com o “mundo das pessoas grandes”. Em sua vã e ingênua tentativa de libertação, Saint-Exupéry apenas faz afundar-se ainda mais em sua prisão.
Depois da aparência do garoto, outra coisa que chama a atenção – e que também é um componente clássico nas histórias infantis e da indústria cultural – é a ausência de necessidades materiais associada a um idealismo (a mais pura ideologia): o garoto não pede água (eles estão no meio do deserto) ou comida, mas sim pede para desenhar um carneiro: ou seja, a necessidade do garoto é – como ele próprio – ideal, e não material, repetindo o tão desgastado fetichismo. E, como será dito no capítulo IV, o garoto não quis um carneiro por nenhuma necessidade material (como fonte de matérias-primas para ele se vestir e se alimentar), mas sim porque precisa de um amigo. O estado mental do autor é da mais completa e total alienação (no sentido marxista).
Obviamente que o garoto passa no teste que o aviador-narrador usa para encontrar “pessoas inteligentes”. Não surpreende que o garoto seja uma alucinação do aviador, pois mais ninguém passaria num teste ridículo desses, que é apresentado como uma metodologia infalível que decifrou os mais ocultos segredos do mundo.
Capítulo III
A “explicação” da origem do garoto novamente reafirma a mais grotesca reificação, a mais radical indeterminação material, a mais tosca e ridícula caricaturização do mundo real, a destruição absoluta de qualquer referência ao mundo real, concreto e histórico no qual vivemos.
Capítulo IV
Novamente vemos uma caricaturização absurda e radical da realidade material do mundo, associada a uma crítica irônica a todo nobre esforço da civilização em buscar, acumular e sistematizar o conhecimento científico. Um verdadeiro absurdo! Um discurso que vai às raias da loucura furiosa, uma explicação ridícula que destrói toda a polissemia angustiante do mundo real. Como já dito, comparar aqui a crítica que ele faz às pessoas grandes (“ninguém lhe dera crédito por causa das roupas típicas que usava”), com a aparência do pequeno príncipe, conforme descrita no capítulo II. Se a criança, diferente do adulto (e do próprio Saint-Exupéry), supostamente ignora o traje de cavaleiro (“elegante casaca”), é por ignorância da simbologia social, não por virtude, de tal forma que o mérito do ato é significativamente nenhum.
Novamente o autor confirma seu elitismo e seu pensamento burguês. É tão difícil perceber o pobre deslizamento conceitual que existe entre “Vi uma bela casa de tijolos cor-de-rosa, gerânios na janela, pombas no telhado...” e “Vi uma casa de seiscentos mil reais”?
Quando ele afirma que a história absurda da origem do garoto seria aceita pelas pessoas grandes porque ele deu o nome do asteróide, essa afirmação é tão absurda, tão grotesca, tão tosca, tão ignorante, tão radical, que me faz duvidar seriamente da sanidade mental do seu autor. Seja como for, ela é a prova da ignorância extrema que o autor tem acerca do que seja o mundo real e as pessoas que o habitam.
Quando o narrador diz que é preciso “não querer mal” as “pessoas grandes” por suas falhas morais e por sua ignorância, ele está justamente expondo que sente esses sentimentos (e, junto com ele, o autor do livro), que nada mais são que o reflexo de sua angústia existencial diante de sua responsabilidade e cumplicidade para com o establishment que ele odeia e diante do qual está reduzido a um estado de impotência.
No fim do capítulo IV fica clara outra “virtude” infantil que, para o autor, falta nos adultos e explica os problemas do mundo real: a “imaginação”. A idolatria à imaginação é recorrente na literatura infantil e, como nos explicam os autores de “Para ler o Pato Donald”, é sintomática duma concepção da realidade totalmente reificada, que ignora por completo a realidade material de produção e de trabalho necessária para manter nossa materialidade concreta, nossa corporeidade biológica, sem a qual não há imaginação ou sentimentos.
Capítulo V
Novamente, como em todo o restante do livro, a realidade material é amputada e reduzida a uma caricatura burlesca e reducionista, que já não faz mais referência alguma à materialidade concreta na qual vivemos.
As definições de "bom" e "mal" (aliás, esses conceitos tão infantis não poderiam faltar aqui) usadas pelo autor reafirmam sua ingenuidade crassa e seu completo desconhecimento da complexidade da vida numa sociedade capitalista de alta entropia.
Assim como as aventuras (buscas ao tesouro) pelo mundo de Disneylândia são (de acordo com os autores de Para ler o Pato Donald) uma remissão tosca da realidade concreta do trabalho, assim também o trabalho concreto é referenciado pela “toalete do planeta”, servindo, inclusive, à introdução de uma teleologia moral (farei uma breve crítica da teleologia moral no capítulo CXIII desse blog): os preguiçosos acabam se dando mal. Nem é preciso repetir o caráter alienado, reificado, fetichista, da história dos baobás, e como qualquer lição de moral que ela pretenda passar é anulada pelo fato de que ela é válida numa caricatura do mundo real, e não na nossa realidade concreta. Por falar em “toalete”, todo o processo civilizador que essa pressupõe – cuja história secular está tão bem relatada no livro homônimo (O processo civilizador, 1939) de Norbert Elias, com uma bela riqueza de exemplos retirados dos manuais de etiqueta publicados na Europa a partir do século XIII – é reificado, é subsumido como natural, como uma coisa em si mesma, e não como um processo histórico cumulativo multidirecional que, simultaneamente, é determinado materialmente e possui uma dimensão simbólica influenciada por contingências e especificidades locais.
Capítulo VI
Uma das características da reificação presente na indústria cultural, e presente nesse livro também, é a tomada dos produtos da divisão social do trabalho como coisas em si mesmas. Ora, os desenhos que ilustram o livro nos mostram vários produtos do trabalho (roupas, espada, pá, cadeira, regador, cúpula de vidro, frigideira, cercas, trono, mesa, garrafas, papel, lampião, cordas, lupa, etc.) que simplesmente apareceram do nada: a realidade concreta do mundo, a realidade cotidiana e histórica do trabalho, é negada. Como se pode esperar qualquer validade epistemológica dum discurso que nega nossa materialidade básica? Qualquer afirmação moral que o livro contenha (e ele contém várias) é anulada pelo fato dessa afirmação se dar num contexto completamente diverso do mundo real.
Outra característica da reificação presente na indústria cultural é a clássica inversão da determinação histórica dos nossos valores e gostos, que são tomados como coisas em si mesmas, independentes da história e da realidade concreta - caindo-se, assim, num grosseiro e característico etnocentrismo. É o que ocorre, nesse capítulo, com o prazer estético oriundo do pôr-do-sol. Ora, toda a contextualização material e histórica determinante dessa beleza está ausente na realidade do garoto, e mesmo assim ele possui sensibilidade para ela. A beleza do pôr-do-sol obviamente não existiria num asteróide, pois, devido a sua massa pequena, o mesmo não tem força gravitacional para ter atmosfera (ou para manter corpos maiores – como cadeiras, carneiros e meninos – presos a sua superfície). Ademais, a beleza da aurora e do pôr-do-sol não seria levada em consideração se fosse constante (se bastasse afastar nossa cadeira alguns centímetros para renová-la), pois a sensibilidade se acostumaria a ela e não lhe daria atenção (é impossível, no mundo concreto de trabalho, viver, enquanto corporeidade, num estado permanente de embevecimento, de deslumbre estético).
A melancolia causada pela solidão do garoto é, em verdade, a projeção da melancolia sentida por Saint-Exupéry por viver sozinho num “mundo cruel”, o qual ele não entende, o qual ele não consegue mudar, e ao qual ele, como outsider, não consegue se ajustar.
Capítulo VII
É totalmente ridículo e descabido de qualquer racionalidade afirmar – e, no entanto, essa é uma das principais mensagens do livro – que os interesses egoístas, ingênuos e sentimentais de uma criança imaginária são mais importantes que o trabalho de um adulto do qual depende a sua sobrevivência material (sim, cabe lembrar aqui que o autor – diferentemente do menino, que é uma mera alucinação regressiva – possui um corpo com necessidades materiais que precisam ser atendidas constantemente). Aliás, cabe ressaltar que o próprio aviador em momento algum faz referência a sua alimentação – ele só fala que precisa beber água, como se isso fosse suficiente para nutrir o seu corpo e manter a sua consciência e a sua imaginação ingênua.
Mas a tarefa de consertar o avião não remete apenas à materialidade, à concreção, à corporeidade negada a todo instante no livro. Remete também ao retorno à sociedade, ao convívio com as infames "pessoas grandes”. Não por acaso, a alucinação, o pequeno príncipe, surgiu ao narrador quando esse estava isolado num deserto, há milhas da civilização. Pois se tivesse surgido quando este estivesse na cidade, toda a ingenuidade absurda e absoluta do garoto seria esmagada e estilhaçada pela complexidade duma realidade cruel que não lhe daria qualquer crédito ou atenção, justamente porque está ocupada demais com sua materialidade, sua concreção e sua complexidade. O isolamento do narrador num deserto permite-lhe auto-referenciar-se e projetar seu próprio narcisismo ingênuo e superficial na figura do garoto (no capítulo II ele diz que viveu só, até o dia em que encontrou o garoto num deserto: ou seja, a solidão suavizada pela presença do garoto é na verdade uma projeção delirante do narcisismo rasteiro do próprio narrador). O retorno à sociedade é o retorno a uma realidade de dependência (pois existe uma divisão social do trabalho) dos outros – esse retorno é uma re-inserção, uma renovação da cumplicidade, numa sociedade que o autor-narrador despreza, não entende, não consegue mudar, e da qual não consegue se livrar.
“- Então... para que servem os espinhos?” Temos aqui o clássico raciocínio funcionalista, antropocêntrico, teleológico, e narcísico: os espinhos são interpretados como executores de uma função que remete ao ego do ser pensante e desejante que enunciou a sentença.
Nesse capítulo o autor-narrador-aviador afirma duas vezes estar envergonhado da sua condição, o que remete ao seu sentimento de culpa por ser participante e cúmplice da sociedade na qual está inserido, e a qual sem dúvida alguma ele não compreende, não entende nem um pouco, como prova seu discurso absolutamente ingênuo e radicalmente reducionista até o absurdo delirante.
Cabe também salientar o caráter eminentemente narcísico dos sentimentos “puros” do pequeno príncipe. Como eu já discorri no
capítulo LIII desse
blog, a suposta pureza moral da criança é fruto não de uma virtude abnegada, mas de um desconhecimento da complexidade de interesses conflitantes existentes no mundo burguês. Mas Saint-Exupéry, e junto com ele o senso comum e tantos outros produtos da indústria cultural,
compra a aparência pelo conteúdo e utiliza a suposta pureza moral infantil para construir seu ideal ético, o qual desmorona quando percebemos que o principezinho – como ficará definitivamente provado no capítulo XX – é egoísta e narcísico, aliás, tão egoísta e narcísico a ponto de não perceber que a sobrevivência concreta do seu amigo aviador é muito mais importante que suas reflexões superficiais e tolas sobre carneiros e rosas. Mas nada disso é visto por Saint-Exupéry, e o menino é apresentado como exemplo de virtude a ser seguido.
Capítulo VIII
Como em todo o resto desse livro, esse capítulo está cheio da mais grotesca reificação do começo ao fim. O autor afirma que a flor não poderia “conhecer nada de outro mundo”, afirmando que qualquer conhecimento que ela alegasse ter sobre outro mundo seria “uma mentira tão tola”. Mas por acaso a flor já não sabe o idioma do garoto? (Aliás, existe um idioma universal – problemas oriundos da diversidade de idiomas não existem nesse mundo tosco idealizado por Saint-Exupéry; padrão, aliás, que exaustivamente se repete na indústria cultural (O Surfista prateado, apenas para dar um exemplo, chega à Terra, no filme no qual contracena com o Quarteto fantástico, falando inglês fluentemente.)) Por acaso a flor já não sabia o que era sol, o que era café da manhã, o que era tigre, o que era vento, o que era redoma, etc? E tudo isso não é, por acaso, “uma mentira tão tola”?
A flor será o primeiro de uma série de tipos de companhia que se relacionaram com o garoto. Cada um desses tipos compõem um “tipologia crítica”, a qual nada mais é do que uma tentativa ridícula e superficial do autor em sistematizar sua crítica às “pessoas grandes”, ou seja, ao mundo real no qual ele está inserido e do qual é cúmplice. Assim mesmo, a flor representa alguém que é possível amar (e o garoto – que não tem uma materialidade concreta (não sabemos de onde veio, não se alimenta, etc.) – lamenta não ter sido “maduro” o suficiente para amá-la), diferentemente de outros personagens com os quais ele irá se relacionar nos capítulos seguintes.
Capítulo IX
Nesse capítulo somos informados que o garoto, no seu planeta natal, toma “café da manhã”. Mas de onde vêm a comida que ele come? Convenientemente o planeta lhe fornece fogões naturais. Imagino que tenha fornecido as suas roupas e os outros produtos que no nosso mundo real só existem em função de uma intrincada divisão social do trabalho.
Veremos que a motivação para que o garoto deixasse seu planeta não foi, novamente, uma motivação material, que remeta à sua corporeidade (pois esta na verdade está ausente, é mera aparência idealizada), mas sim a sua solidão (que vem a ser a solidão do próprio autor do livro, um outsider sentimental): ele busca um amigo. Só não é dito por que alguém auto-suficiente (e que deve ter brotado do nada) teria a necessidade de um amigo. Temos aqui, novamente, a reificação: a própria necessidade social e psicológica de amizade é tomada em si mesma, completamente descontextualizada de suas condições reais de existência.
Capítulos X a XV
Entre os capítulos X e XV o autor apresenta o restante da sua “tipologia crítica”. O fato dessa tipologia surgir mediante as experiências pessoais do garoto não é mera coincidência: trata-se de um recurso para forjar uma tosca “comprovação empírica” para os raciocínios preconceituosos, superficiais e reducionistas do aviador (alter ego de Saint-Exupéry). Não surpreende que no fim do capítulos X, XI, e XII o garoto conclua exatamente a mesma opinião pessoal do próprio aviador-narrador-autor, forjando-se assim a comprovação duma realidade dividida entre crianças – o "bem" – e pessoas grandes – o "mal", a causa dos problemas da vida.
A metáfora de que cada um vive num planeta até tem algum sentido ao remeter à solidão e ao narcisismo que faz parte das vidas que cada um de nós leva, principalmente numa sociedade capitalista. A reificação do indivíduo-ilha burguês é levado ao seu apogeu caricato: o indivíduo-planeta. Mas, para superar uma reificação grotesca, faltou construir um complexo sistema de inter-relações entre as pessoas, o qual seria a simbolização duma sociedade na qual há uma intrincada divisão social do trabalho e, portanto, uma interdependência anônima entre as pessoas.
Os problemas e suas soluções relatados nessa tipologia crítica seguem o padrão recorrente na literatura infantil e, de resto, na indústria cultural: eles surgem completamente descontextualizados, sem ligação com o mundo real, o que significa que qualquer “lição de moral” que a história tenha se mostra contraproducente e acaba afirmando a realidade que supostamente nega.
Ora, a superficialidade, o reducionismo, o preconceito e o narcisismo que o garoto encontra no rei, e nas outras “pessoas grandes” são, a rigor, as mesmas características que ele próprio tem, mas que não se manifestam de forma desagradável e criticável (para o autor) por meras causalidades, meras contingências do enredo. São essas mesmas características que o aviador-narrador tem e das quais – por sinalizarem sua cumplicidade com o establishment – ele se envergonha.
De forma análoga ao que ocorre em Disneylândia (conforme explicitado pelos autores de Para ler o Pato Donald), os personagens rasos desse enredo lutam para manter a sua própria superficialidade, a sua própria pobreza existencial e previsibilidade, pois o pouco que se movem já ameaça desmontar a sua máscara existencial caricata, fora da qual simplesmente não existem. Esses personagem ficam girando incessantemente dentro de argumentos circulares e paradoxos lógicos, "sabiamente" percebidos pelo princepezinho.
Embora isso já esteja ficando repetitivo, chamo novamente a atenção para a reificação. Por exemplo, no caso do bêbado: de onde vem a bebida que ele consome? Brota do planeta? Certamente não vem da divisão social do trabalho. O que garante que o nosso pequeno herói não seria bêbado ele também caso tivesse, tal qual o bêbado, acesso fácil e rotineiro à bebida?
A caricatura do empresário mostra quão rasa é a concepção que o autor tem do que seria o trabalho (ou o capitalismo), bem como a sua completa alienação da realidade concreta na qual está inserido. Exatamente como ocorre em Disneylândia, e na ideologia burguesa, a idéia, o pensamento, é tido como a fonte da riqueza, e todo o mundo real é caricaturizado para tornar essa concepção "factível"; tanto que, quando o empresário afirma que as estrelas são dele porque ele teve a idéia de as possuir, o garoto, e junto com ele a ideologia burguesa, concorda (o que lhe desagrada não é isso, mas o fato de ser impossível criar um laço afetivo recíproco do empresário com sua propriedade).
Diante do empresário, o garoto (e, portanto, Saint-Exupéry, pois o garoto é mera projeção narcísica do narrador, o qual é alter ego do autor) revela qual é a sua concepção moral de utilidade: a interdependência afetiva. É o afeto que, para o sentimental Saint-Exupéry, realmente importa na vida. Não vou dizer que ele está errado, mas certamente trata-se de uma concepção reducionista e insuficiente. Mais adiante (capítulo XIV) vemos que o autor acrescenta ao seu utilitarismo a beleza. Novamente, isso é insuficiente como ontologia do real e como idealidade ética e estética.
O autor delineia o seu projeto moral no capítulo XIV: o que importa é abandonar o ego, é viver afetivamente com os outros. Mas repito: o próprio garoto é egoísta e narcisista, ou seja, essa suposta virtude nem ele a possui. O problema do acendedor de lampiões é o seu “legalismo”: ele segue cegamente a lei, em vez de perceber que essa supostamente é uma ferramenta para vivermos melhor: ele troca o fim (a felicidade) pelos meios (a lei). Obviamente o autor, mediante contigências, eximiu arbitrariamente o garoto de cair numa armadilha existencial circular como essa, o que, dada a sua ingenuidade, facilmente poderia ocorrer.
Diante do geógrafo, não é de estranhar o desdém do autor para com o acúmulo de conhecimento – sem o qual, aliás, a sociedade opulenta na qual ele vive não poderia existir e sustentar os seus devaneios –, uma vez que esse desdém já aparecera no primeiro capítulo. Na verdade o que o autor não vê é que todos esses personagens da sua tipologia crítica são necessários para o funcionamento de uma sociedade fundada na divisão do trabalho. Por isso, querer reduzir todos a um tipo – o do próprio autor, que é o mesmo do aviador, do garoto, e da rapoza – é uma pretensão narcisista que revela desconhecer a configuração básica (divisão social do trabalho) da sociedade na qual Saint-Exupéry está inserido. Novamente, as “lições de moral” que ele pretende dar se mostram contraproducentes.
Diante do geógrafo, o pequeno príncipe é apresentado à morte. O seu desconhecimento desse fato básico é nova prova de que sua virtude aparente é mera conseqüência de sua ignorância. Para alguém tão afetivo, certamente a descoberta da morte deveria ter sido recebida de forma muito mais trágica do que foi para o garoto, mas, como esse açucarado livro não é drama nem tragédia, mas sim literatura infantil, isso não ocorre.
Por fim, saliento o caráter narcísico, antropocêntrico, e egoísta da afirmação do geógrafo de que a Terra “goza de boa reputação...”. E, assim, por causa dessa frase, o garoto veio parar na Terra.
Capítulo XVI
Esse capítulo é destinado a fazer uma “apresentação” do que seria o planeta Terra e sua população – a qual foi toda ela dividida preconceituosamente de acordo com a tipologia crítica de Saint-Exupéry. Depois o autor apresenta uma descrição tosca e reificada da divisão social do trabalho de acender lampiões...e só isso.
Capítulo XVII
Imediatamente ao chegar na Terra, o garoto, do nada, se depara com uma serpente que, também do nada, tem o poder, completamente reificado,
de devolver aquele que ela toca a sua terra de origem. Mas que coincidência mais feliz, não? A serpente, que usará sua
magia para devolver o garoto ao seu asteróide no capítulo XXVI, é um artefato
deus ex machina, que só não soa mais ridículo e absurdo porque toda a história do livro é ridícula e absurda do começo ao fim. A serpente é um mero remendo do enredo, mas todo o enredo é feito de remendos. Que tipo de magia e de sortilégio inexplicável confere esse poder à serpente? Toda a realidade material, a do trabalho concreto, desmorona diante de um poder absurdo e de uma coincidência delirante. Mas “as crianças entendem” (capítulo XXV)? Na verdade qualquer retardado mental “entende”.
Capítulos XVIII e XIX
Mais reificação, narcisismo e pretensa lição de moral sobre a condição humana.
Capítulo XX
Nesse capítulo fica patente o egoísmo e o narcisismo do garoto, e que, portanto, ele não apresenta uma superioridade moral. Mas a “solução” (o “segredo”) para que o egoísmo do garoto se manifeste de forma “saudável”, de forma diferente das “pessoas grandes”, será apresentada pela raposa no capítulo XXI, embora já estivesse subsumida no utilitarismo que o garoto definiu no capítulo XIII (é que a diferença entre o garoto, a raposa e o aviador é meramente aparente: no fundo é o mesmo personagem – o autor – que se relaciona consigo mesmo num monólogo).
Capítulo XXI
“E foi então que apareceu a raposa”. Sim, as "coisas" “aparecem” do nada, sem qualquer história, sem qualquer sentido, sem qualquer critério.
A raposa, como todos os outros personagens, a começar pelo pequeno príncipe e pelo próprio aviador-narrador, revela ter um discurso de mundo reducionista e totalmente narcisista e ingênuo. Pelo menos a raposa, ao procurar galinhas, remete a uma materialidade concreta, diferentemente do garoto que aparentemente se alimenta de luz e que cruza o sistema solar em busca de um amigo (de fato, no capítulo XXIV somos informados que o garoto realmente vive de luz!). O encontro com a raposa novamente é ocasião para o autor apresentar o seu ideal ético e estético baseado no seu tipo psicológico sentimental. É a raposa quem passa a “sabedoria” tão associada a esse livro: somos responsáveis por quem cativamos (mesmo que a raposa tenha surgido casualmente, do nada), casando, assim, virtude com egoísmo (assim como ocorre no paraíso cristão). O que o autor quer é reduzir a angustiante polissemia do mundo ao transformar todas as pessoas (ou melhor, as crianças – porque os adultos já estão perdidos) naquilo que ele é; no seu narcisismo quer que todos sejam como ele, pensem como ele pensa, priorizem o que ele prioriza. Seu ideal supostamente virtuoso mostra-se o mais puro egoísmo mesquinho e ignorante, a mais cega vontade de poder.
A raposa faz menção à crescente mercantilização da vida, causada pela subsunção do capital no ser social (é claro que ela não usa essas palavras...). Novamente aqui se confirma que o autor pretende se opor ao establishment; pretende, através do livro, expor uma ontologia crítica do real e sinalizar como superá-lo e atingir um ideal ético e estético, um novo projeto de humanidade. Infelizmente, como já cansei de falar, esse projeto mostra-se contraproducente em sua superficialidade (e eu arriscaria dizer que Saint-Exupéry escreveu literatura infantil - antes que me acusem, eu sei que ele escreveu outros livros além desse - por ser simplesmente incapaz de escrever para adultos – por mais que os adultos infantilizados adorem esse livro).
O que é completamente incompreensível – e que só é factível num discurso no qual o real foi amputado – é como uma raposa, que afirma se alimentar de galinhas que caça (e que, portanto, mata, estraçalha e bebe o sangue morno durante o ato necrofágico, isso quando não devora suas vítimas ainda durante a agonia da morte violenta), teria esses sentimentos puros e ingênuos, e teria como “segredo” não a “lei da atração” (que está exposta em um outro livro...) mas sim que “o essencial é invisível aos olhos”. Infelizmente a crença nesse “segredo” não impediu o autor de se mover num mundo reificado, num mundo de superfícies e aparências, no qual ele naufragou definitiva tragicamente.
Pelo discurso da raposa, e do garoto, fica claro que a “formação de laços” continua sendo orientada por um narcisismo egoísta: o “laço” nada mais é do que jogar o seu ego no outro e pegá-lo novamente, com a condição que o movimento seja recíproco.O outro, em si, não importa, não é nada, ele só importa quando me diz respeito, quando é um “destino pulsional” meu, quando eu invisto a minha libido nele. Que belo ideal ético, não? Aliás, nem preciso dizer que esse ideal se opõe ao defendido por Cristo, assim como a prática de "tipologia crítica" se opõe à orientação de Cristo para não julgarmos o próximo. Não por acaso esse livro é tão popular, não por acaso esse livro é tão usado ideologicamente pelo establishment, pois ele reproduz enquanto cultura o nosso isolamento egoísta e mesquinho, contribuindo para que não pensemos nossos problemas coletivamente, contribuindo para que não nos unamos politicamente para lutar por nossa emancipação. E isso é ensinado, disfarçado de discurso emancipador, às crianças – a quem pertence a responsabilidade de construir o futuro –, reproduzindo, assim, historicamente, a nossa tragédia existencial fundamental.
Capítulo XXII
Esse capítulo é muito claro, em seu reducionismo, ao apresentar, simultaneamente, a ontologia do real e do ideal propugnada pelo autor. Em resumo: a vida das pessoas grandes é infeliz porque elas não formam laços. Só as crianças são felizes, porque elas formam laços. Fim. Simples assim. Seguindo uma concepção sartraniana, penso que as crianças são felizes (se é que são) porque não tem responsabilidades, e, portanto, não são chamadas a serem cúmplices da ordem social vigente.
Capítulo XXIII
Esse capítulo é uma nova ilustração para a vacuidade da vida das “pessoas grandes”. Provavelmente não apareceu na “tipologia crítica interplanetária” dos capítulos X a XV porque as pessoas lá eram ensimesmadas, e o vendedor precisa interagir (comprar e vender), e, portanto, precisa viver numa sociedade.
Capítulo XXIV
Finalmente a materialidade concreta se faz presente, e o aviador é obrigado a ir atrás de um poço de água (o que é uma idéia meio estúpida de só se fazer só no oitavo dia). Em nenhum momento é feita menção à necessidade de alimentação, quer do aviador, quer do menino (com exceção do tal "café da manhã" do cap. IX). Seja como for, novamente há a confirmação do que já ficou tão evidente no livro: o garoto não possui materialidade concreta, não possui necessidades físicas, o seu corpo é mero álibi, é mera ilusão, mero simulacro. A única coisa que lhe importa são os sentimentos ingênuos e narcísicos que cultiva.
“- O que torna belo o deserto é que ele esconde um poço em algum lugar.” Novamente percebe-se que a beleza é concebida como meramente
funcional em relação ao ego – o que fica ainda mais ridículo quando percebemos que as necessidades fisiológicas não existem na vida do garoto (e que, portanto, ele não precisa do poço). Mas trata-se de se referenciar ao real eufemisticamente como ausência (assim como, nos
vídeos publicitários de fraldas e absorventes, os fluidos corporais reais –
sangue,
urina e
fezes – são referenciados por sua ausência na forma de um líquido
azul celeste). Com essas palavras do garoto o aviador é levado a uma epifania que lhe revela a “verdade” de que o “que torna belo é invisível”, ou, em outras palavras, que as coisas só nos importam quando se tornam um destino pulsional nosso: eis a sua suprema sabedoria de vida, eis o caminho (insuficiente) idealizado pelo autor para a emancipação humana.
Capítulo XXV
Do nada eles encontram um poço (o que remete a uma teleologia moral do tipo “lei da atração”: pense positivo e você vai conseguir o que quer). O narrador-aviador, remetendo à materialidade concreta, acha isso “estranho”: um poço pronto no meio do deserto. Mas o garoto não acha isso “estranho”. O mundo real do trabalho socialmente necessário para construir um poço está completamente omitido. Não é de surpreender que um garoto imaginário, que vive de objetos desenhados pelo aviador, não tenha achado isso “estranho”.
O narrador-autor dá de beber ao garoto. Agora, no antepenúltimo capítulo do livro, é a primeira vez que o garoto apresenta alguma necessidade material (fora o tal “café da manhã” do capítulo IX). Ou não? “Essa água era muito mais que um alimento.” Pois, na verdade, a água é um mero álibi: ele a bebeu não para atender a uma necessidade material (a alimentação do seu corpo), mas sim para atender sua necessidade afetiva, “provando”, assim, que “o que é belo é invisível”, ou seja, que só damos importância aos nossos destinos pulsionais. A incoerência suprema e insolúvel gerada por essa reificação extrema é que, sem um corpo real e concreto, sem um corpo biológico (e o garoto só tem um simulacro de corpo – como é afirmado no capítulo seguinte), simplesmente não há pulsão alguma para ser destinada, não há libido alguma para ser investida, não há, portanto, laço algum para ser formado. Assim, a idealidade ética que o garoto representa – a “lição de moral” do livro – se mostra um projeto de humanidade totalmente divorciado de nessa realidade materialmente concreta e, por isso mesmo, totalmente irrealizável. Trata-se de pura ideologia, mero escapismo, mera regressão infrutífera como ferramenta de transformação, mero instrumento de alienação, mera muleta existencial, mero lubrificante social.
E depois de “ensinar” esse ideal ético o que o garoto diz ao narrador-autor? “Tu deves agora trabalhar” (consertar o avião)! Depois de omitir e amputar a materialidade concreta ele se remete a ela: depois de destruir completamente o mundo real, ele pretende salvá-lo.
Capítulo XXVI
Aqui a serpente do capítulo XVII volta para remendar a história e levar o garoto novamente ao seu planeta. Fora o blá blá blá sentimental, o ideal ético e estético de Saint-Exupéry, que é repetido, o que chama a atenção, novamente, é a confirmação de que o garoto não tem um corpo de verdade, mas um mero simulacro, o que significa que ele não tem todas as necessidades reais de uma pessoa real, o que significa uma amputação da materialidade concreta do mundo.
O garoto ficou um ano longe de uma flor que ele sabe ser “efêmera” (mortal), e que ele sabe ser frágil e incapaz de se defender do mundo. Ora, se tudo isso é verdade, não é também evidente que a flor, indefesa e depois de uma ano, já nem existe mais? Aliás, um ano em relação
a qual calendário? Novamente, está subsumido como natural algo (o
calendário gregoriano) que é um produto histórico.
Capítulo XXVII
Repetindo mais uma vez a reificação, a fetichização, o corpo do garoto simplesmente desaparece (tal qual o corpo dos inimigos derrotados nos videogames).
O autor repete seu ideal ético e, para fortalecer sua mensagem, afirma que “jamais nenhuma pessoa grande entenderá que isso possa ter tanta importância!”. O que não fica explicado (e que deveria ser objeto de uma autocrítica, impedida por sua racionalidade fraca - aliás, a ausência de autocrítica é a estupidez fundamental) nesse seu discurso do mundo, sua descrição do real e do ideal, é por que ele, sendo um adulto, está imune aos defeitos das “pessoas grandes”, bem como ele encontrou, no meio do deserto, um garoto imaterial que lhe ensinou uma sabedoria que ele mesmo já tinha e conhecia desde os seis anos de idade.
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E a aplicabilidade, no mundo real e material, do ideal ético e estético defendido no livro? Talvez um bom exemplo do que ocorreria, no complexo e cruel mundo real, caso alguém se referenciasse por esse ideal, seja dado pelo filme
Dançando no escuro, de Lars von Trier (aliás, é o meu filme favorito). Nesse filme vemos o que um mundo cruel faz com uma pessoa ingênua e boa. O destino do pequeno príncipe, caso tivesse aparecido não no deserto do Saara mas sim na sociedade humana, não seria muito diferente do de Selma (a protagonista do filme): ele provavelmente terminaria morto, enforcado, ou talvez crucificado... Falaremos,
no capítulo CVI, de outro filme de Lars von Trier,
Anticristo.
Confira a tradução do presente capítulo para o neo-miguxês:
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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.