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§ 55
Toda palavra exprime uma ideologia, dizia um professor de filosofia. Estava em casa, com muitas idéias imponderáveis na cabeça. "Apenas o incerto é certo; e até a certeza da incerteza é incerta" afirmava a mim mesmo.
A filosofia é alienada (vide Cândido) ; o jornal de domingo, intacto (já era terça-feira). Espantei as reflexões transcendentes (que, afinal, não levam a lugar nenhum); queria pensar em coisas "importantes", tal qual a situação sócio-econômica do globo. Queria saber de juros, diabo de juros; de fome; de greve (encabeçada pela ANDES, sem aprovação da CUT); enfim, queria libertar-me da alienação voluntária.
Eis que abri o dito jornal: "Fed prevê recessão americana". Quê? Concomitantemente, na CNN em espanhol (a televisão estava ligada, esqueci de avisar), uma apresentadora dizia: "Dos soldados estadounidenses morreram hoy en Iraquí".
Já percebe o leitor que, a essa hora, novamente, a minha cabeça não mais queria saber das notícias, mas das palavras. !Estadounidenses! !No me puedo creer!
Corro ao dicionário de português. Não há "estadouniense". Mas espere você, olho mais abaixo; ei-la: "estadunidense".
Então....?
Sim, isso mesmo.
Abro a revista Veja - a eterna tocha da verdade cuja luz ilumina esse país perdido e sem salvação possível. Um ensaio do senhor Alencastro: "O sentimento antiamericano". Páginas à frente: "O poder militar americano." Etc.
Conclui que o brasileiro é vendido; pois até os latinos, da CNN (empresa estadunidense) não utilizam o adjetivo "americano" para se referir aos EUA, já que sabem que americano é todo aquele que vive no continente chamado de América (que não se resume aos EUA). Mas eles, aquela gente, furtaram o continente com uma palavra, com o nosso eternamente cordial beneplácito.
Seria o mesmo, penso, que concordar com a qualificação dos alemães como simplesmente "europeus". Isso não ocorre, provavelmente porque na Europa há vários países "importantes", cujos pés e mãos beijamos com avidez.
Mas não é necessário conjecturar, não. O próprio brasileiro erra de forma análoga ao se referir à África como se fosse um país. Isso deve ocorrer porque lá não há nenhum país "importante"...Ignorância análoga à do sábio povo estadunidense (ne varietur), que acredita ser Buenos Aires a capital do Brasil, isso quando sabe que o Brasil existe (o que, confessemos, já deve ser muito, mesmo um favor da parte deles).
Duvida?
Pois se o senhor leitor se ater melhor ao que lê e ao que ouve, perceberá o óbvio: nós nos vendemos nas esquinas do mundo; o brasileiro é uma prostituta devassa.
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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.
2 comentários:
Na nossa mídia tupiniquim, o único veículo que eu conheço que utiliza a palavra "estadunidense" no lugar de "americano" é a revista Carta Capital. Mesmo assim, ela apenas passou a fazê-lo depois que, creio eu, muitos leitores, entre eles eu mesmo, secreveram-lhe reclamando.
Estava escrevendo o capítulo 77 quanto tive um insight que me revelou porque eu utilizei um imagem do Pikachu para censurar a foto pornográfica que ilustra essa postagem. Trata-se de uma simbologia para sodomia: Pika + chu. Eu não tinha percebido isso quando fiz a fotomontagem.
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