domingo, 15 de agosto de 2010

CXIV - Acerca de breve consideração econômica sobre a superação do ciclo vicioso da pobreza.


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§ 114




Eu não gosto de ficar me justificando para os leitores desse blog. Mas aqui estou eu fazendo isso novamente. Os magros parágrafos que se seguem eram para ser apenas o rascunho de um texto mais longo no qual eu discorreria mais aprofundamente acerca do assunto indicado no título. Todavia, surgiram tantos assuntos para eu pensar ultimamente que eu não estou com paciência de pensar mais sobre o que está sendo postado aqui hoje. Como já deve ser do conhecimento dos leitores, eu geralmente escrevo os capítulos do blog semanas ou meses antes de postá-los. Pois bem, os parágrafos que se seguem foram escritos faz uns três meses. Era para eu desenvolver melhor a argumentação. Não o fiz. E no momento não estou com paciência para fazê-lo. Lamento.

Estou com pressa. Tenho que ir. Fiquem agora com o meu texto de três meses atrás.



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Se você acha que a educação é cara, tenha a coragem de experimentar a ignorância. (Derek Bok)



A autonomia, o senso crítico, a inteligência e o conhecimento são ferramentas que permitem ao indivíduo questionar a ordem estabelecida, viabilizando, assim, a sua superação histórica por uma nova ordem. A ausência do desenvolvimento individual dessas ferramentas propicia, ao contrário, no indivíduo o medo de perder os poucos benefícios que já possui, alimentando assim a reprodução do establishment.

Para a classe média, ter um filho representa custos altos para reproduzir alguém que possa manter-se pelo menos no mesmo nível econômico dos pais. Esses altos custos representam um incentivo econômico à queda na taxa de natalidade daqueles que estão inseridos no "setor moderno" da economia, ou seja, que estão inseridos no ambiente competitivo e dinâmico das "economias de mercado". O capitalismo é o principal contraceptivo [1]. Ao longo do século XX, os países ditos desenvolvidos assistiram a uma brusca queda nas taxas de natalidade - e a maioria deles se encontra, atualmente, com taxas de natalidade abaixo da taxa de reposição, necessitando, assim, de imigrantes para manter o exército de reserva de força de trabalho trabalho.

Já para os pobres, excluídos, marginalizados e para aqueles que vivem em economias de subsistência (portanto, não capitalistas), os filhos representam investimento, e não custo, pois desde cedo contribuem com seu trabalho infantil para o sustento da família - e isso é feito em detrimento da formação do "capital humano", o que gera um ciclo reiterativo da pobreza: a pessoa nasce pobre, e por nascer pobre é considerada investimento por seus pais, e por isso não forma o capital humano, e por isso continua pobre, e por isso faz mais filhos como opção de investimento, etc. Em países subdesenvolvidos, essa lógica se exprime em escala nacional, e não apenas na classe mais baixa. Para o pensamento econômico do mainstream, esse comportamento das famílias pobres é racional: "se os filhos são investimento, nada melhor do que fazer mais filhos, ué". Para o referido pensamento, é necessário, se se quer eliminar a pobreza, inserir essas pessoas na "economia de mercado" (os economistas do mainstream geralmente não usam o termo "capitalismo"), a fim de que eles recebam novos incentivos econômicos no sentido de diminuir a taxa de natalidade e assim romper o ciclo vicioso. Ou seja, é preciso que para os pobres os filhos deixem de ser considerados investimento, e sejam considerados um custo, como ocorre com a classe média. Sem esse incentivo econômico, qualquer outra política de natalidade (que não envolva genocídios...) estará condenada ao fracasso.

Porém, de um ponto de vista marxista, as coisas não são tão felizes assim. Há um probleminha: o exército de reserva de força de trabalho - que, para o marxismo, é algo inerente à lógica do capital. Em outras palavras: o capitalismo produz a pobreza, pois precisa dela para se perpetuar. Achar que toda a população poderia ser pelo menos "classe média", sem a existência do pauperização absoluta (e suas conseqüências em termos de incentivos econômicos), é ignorar a real dinâmica do capital, é ignorar que ele, em seu despotismo, engendra reiteradamente um exército de reserva de força de trabalho. O desemprego de alguns gera o sobre-emprego de outros, o que alimenta novamente o desemprego, e assim num ciclo vicioso: quanto maior o medo de perder o emprego, mais o trabalhador se deixa explorar, e quanto mais ele se deixa explorar, menor a necessidade de contratar novos trabalhadores, e, portanto, maior o desemprego. Como a mais-valia é trabalho não pago, é impossível ao capitalismo emancipar o trabalhador do seu trabalho: trabalho e capital são duas faces da mesma moeda. Pleno emprego é utopia, pelo menos o capitalismo. Inexistência de exército de reserva de força de trabalho, idem. Pois é do interesse do capital que exista uma camada de pobres e excluídos - que fiquem à disposição do capital, para serem usados nos ciclos de alta atividade e serem logo descartados nos ciclos de baixa e para servirem, ainda, de incentivo à baixa salarial dos que estão empregados. Isso ajuda a entender porque os países desenvolvidos acabam cedendo à imigração, mesmo que haja movimentos xenófobos ou que os trabalhadores locais de baixa qualificação se oponham energicamente - pois estão perdendo seus empregos. Ora, quem dita as regras no mundo político não são os trabalhadores, não são aqueles que defendem uma raça pura, etc. Quem dá a palavra final é sempre ele: o deus capital.

O sonho do capital nós já conhecemos: um único mercado global e selvagem, sem freios, sem moral, sem leis, sem piedade - aos fracos, a superexploração até morte por exaustão, ou a exclusão social até a morte por fome.


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[1] A beleza do capitalismo está em efetuar essa coerção inibidora de reprodução humana de maneira sutil, sem que se seja necessário infanticídios ou genocídios. O único país no qual o capitalismo, uma vez subsumido na cultura, não levou a uma queda na taxa de fertilidade é nessa Ilha da Fantasia chamada EUA, na qual há uma abundância artificial (via imperialismo e o poder do dólar) e em fase terminal.

Com relação a uma sociedade pós-capitalista, o meu temor é que a diminuição (ou eliminação) do consumo conspícuo e da competição por status e poder acabe servindo de incentivo para que as pessoas – sem nada melhor para ocupar as suas vidinhas – acabem investindo suas energias no recrudescimento da procriação, isto é, tendo um número maior de filhos.

Certa vez vi em um vídeo o utopista Jacques Fresco dizendo que, para evitar que num estado de ausência de coerção via competição as pessoas se reproduzissem demais, as pessoas seriam instruídas mediante a leitura de livros sobre o impacto da reprodução humana sobre os recursos naturais...

Ora, esse terreno em que Freco está se movendo é o terreno da pura ideologia, a saber, a crença de que o comportamento humano pode mudar apenas por causa de um processo educacional, independentemente de qualquer tipo de coerção sobre os interesses pessoais dos indivíduos. Um apelo pelo bem coletivo de nada serve para um ser humano – pelo menos nunca serviu até hoje.

Ou Fresco está mentindo (porque sabe que seria necessário algum tipo de coerção por parte de um governo para evitar a natalidade excessiva) ou é um completo ingênuo.

Se há algo com o qual neoliberais e marxistas concordam é que as pessoas só mudam seu comportamento quando recebem (dês)incentivos (coerções ou gratificações) e não por causa de uma pura informação que apele para o bem comum, escrita ou não em algum livro. É claro que eu gostaria que as coisas não fossem assim, que as pessoas realmente mudassem de opinião pelo bem comum – mas isso nunca ocorreu, nem na (pré)história nem na natureza.

Ora, um dos alimentos da imaginação utópica é justamente a crença de que é possível mudar magicamente o comportamento humano, de tal forma que algo que até agora foi a regra se torne a exceção. Mas, na hora de implantar a discurso utópico, ao que parece todas as utopias degringolam para alguma forma de fascismo.





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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

8 comentários:

adriano disse...

Muito precisa a sua visão.

Mas o que você acha que poderia ser menos desumano do que o capitalismo, sem o risco de acabar sendo pior?

Duan Conrado Castro disse...

Adriano,

Sinceramente, eu não sei. Na verdade eu penso que o capitalismo é uma das melhores intenções da humanidade. Mas isso não significa que ele não deva ser criticado, e que não devamos tentar superá-lo historicamente. Agora, o que colocar do lugar? Como estruturar uma sociedade que consiga manter as vantagens do capitalismo sem os seus malefícios? E será que tal projeto é realmente possível? Ou o capitalismo já é o melhor dos mundos possíveis? Ou será que o próprio capitalismo desmoronará em algumas décadas (ou séculos) dando lugar a um novo modo de produção? Eu não tenho as respostas para essas perguntas. Talvez tenha daqui a décadas. Talvez nunca tenha. Mas eu pelo menos ouso questionar, em vez de aceitar a visão oficial dos fatos.

Duan Conrado Castro disse...

A discussão acerca da crítica ao capitalismo e da busca da sua superação histórica é um tema fascinante e enciclopédico, que, certamente, poderia ocupar toda a minha vida intelectual. Porém, eu sou uma pessoa generalista demais para me focar em um único tema.

Talvez um bom começo para pesquisar esse tema seja o Fórum Social Mundial, evento que eu adoraria acompanhar e estudar detalhadamente. Veja bem, a discussão de busca de superação do capitalismo vai muito além da velha dicotomia capitalismo versus socialismo. Na época dos primórdios do capitalismo (época em que crianças trabalhavam de 12 a 18 horas nas lúgubres fábricas da fedorenta Londres), era comum que a literatura de crítica ao capitalismo fosse recheada de saudosismos da Idade Média - atualmente vista como a “era das trevas” [não sei quanto a você, mas sempre que me falam em Idade Média eu automaticamente penso em um lugar triste e nublado].

Desde seus primórdios, o capitalismo deu origem a críticas e a farta literatura buscando documentar a sua podridão e vislumbrar a sua superação. Da Igreja condenando os juros ao Fórum Social Mundial, passando pelo socialismo utópico, pelas várias vertentes do marxismo, pelos anarquismos, pelo situacionismo e pelos recentes Projeto Vênus e Projeto Atlas, para não falar dos ecologistas e das diversas modalidades de sociedades alternativas, etc: a literatura é diversificada.

Em resumo, é uma discussão muito ampla. E eu, infelizmente, conheço muito pouco dela para poder responder a sua pergunta.

Cabe salientar que, na minha opinião, se as pessoas simplesmente não questionassem e não lutassem contra o capitalismo na sua forma original, a classe trabalhadora – inclusive crianças – estariam até hoje trabalhando 18 horas por dia em locais insalubres, e teriam até hoje uma expectativa de vida inferior a 30 anos. Foi a rebelião, a luta por melhorias, que permitiu o fim dessas tragédias (nos países desenvolvidos, pois essas cenas continuam se repetindo na periferia do sistema produtivo global): não foi o mero progresso tecnológico de per se. SEM LUTA NÃO HÁ MELHORIAS: cada avanço que os trabalhadores obtiveram em sua qualidade de vida foi exigido e conquistado ao custo de muitas vidas: nada foi dado de graça.

Agora, se nós simplesmente nos contentarmos com “tudo que aí está”, então eu não vejo como alguma coisa pode melhorar.

O primeiro passo é se permitir questionar.

adriano disse...

Concordo totalmente com a necessidade de questionarmos. Minha pergunta foi muito resumida, e talvez com isso eu tenha dado a entender que prefiro me conformar com as condições do capitalismo, apenas por receio de nos depararmos com algo pior em seu lugar. Mas isso não é de inteiro falso. Acontece que faz pouco tempo que comecei a estudar na Internet sobre sistemas econômicos, justamente por insatisfação com a situação atual do mundo. E nos últimos dias tenho me dedicado mais a ler sobre os países da América Latina. Entendo que está por vir, a começar pelo Brasil, o estabelecimento de um novo sistema, levado a cabo através de muita dissimulação e inconstitucionalismos. Os chamados esquerdistas simplesmente me parecem mais cruéis do que seus conclamados opostos.

Bom... mas se você conhece pouco sobre o assunto, eu conheço menos ainda! Achei muito bom seu texto, e incitei a questão por achar que você acreditasse em algum modelo de sistema já proposto ou que tivesse um inédito para propôr!

Continuarei estudando, e quando você postar mais sobre assuntos correlatos tentarei criar mais discussão.

Duan Conrado Castro disse...

Cada vez eu sei menos sobre qualquer assunto: isso que dá se entregar a um trabalho de busca IMPARCIAL pela verdade. Eu não quero e nem consigo me encaixar em grupo nenhum, em comunidade interpretativa nenhuma. Por causa disso, as minhas pesquisas não me levam muito longe na proposição de construção de um "conhecimento"(uma explicação para tudo, ou pelo menos tudo considerado relevante). Estou mais para a construção de um "anticonhecimento", de uma mera desconstrução crítica de "tudo isso que aí está". Agora, propor algo melhor, isso é realmente difícil e exigiria: (i) ou muita fé em alguma doutrina já existente (e se há alguma coisa que eu definitivamente não tenho, não quero ter e nuca terei é fé, seja no que for), (ii) ou extensos estudos, que levariam décadas e poderiam ser inconclusivos, ou concluir que não há nada a fazer pois já estamos no melhor dos mundos possíveis. Eu até gostaria de me dedicar a esses extensos estudos, mas sei que não vou fazê-lo, quer porque tenha que trabalhar para viver, quer porque eu seja um generalista, quer porque planejo dedicar-me menos a pesquisas e buscar cuidar mais da minha saúde e da minha paz de espírito: ou seja, as limitações humanas...

Seria muito mais fácil simplesmente seguir uma escola de pensamento (a marxista, por exemplo), mas eu sou um outsider: não consigo me encaixar em nenhum grupo, por me faltar a fé e a empatia necessárias. Mas isso não é de todo ruim...eu posso tentar volitar livremente entre os diversos mundos, as diversas realidades, sem me comprometer com nenhum.

Se eu tivesse alguma proposta acerca da substituição do capitalismo, ou se defendesse alguma proposta já existente, certamente iria explaná-la longamente em um ou mais textos desse blog. Mas não tenho.

Anônimo disse...

Quantas pérolas em um blog...

"É melhor ser um especialista ou um generalista?"

http://duislifebox.wordpress.com/2008/04/01/e-melhor-ser-um-especialista-ou-um-generalista/

"Sonegar impostos é roubar o governo"

http://duislifebox.wordpress.com/2008/01/16/sonegar-impostos-e-roubar-o-governo/

"Faz-me" repensar o "Imposto é roubo" de Konkin III ao "Pleno desemprego" de Bob Black.

Duan Conrado Castro disse...

É...se queres sucesso, é melhor se conformar e jogar o jogo, e dançar conforme a música. Nada de questionar o capitalismo, isso não vai trazer "sucesso" para ninguém...talvez para um Chavez.

Use todo o seu potencial para "vencer na vida", para acumular consumo conspícuo até sair pelos ouvidos (por que não ter uma Ferrari dentro da sala de estar? legal né...)

É o progresso, a civilização, a reificação, o cinismo. O poder.

A ideologia burguesa está tão incrustada nas mentes que é fácil imaginar o fim do mundo, mas muito difícil imaginar o fim do capitalismo, o qual foi naturalizado pela ciência burguesa e santificado pela religião burguesa.

Duan Conrado Castro disse...

Ah sim. Concordo que é muito mais divertido e excitante ser um generalista, enquanto ser especialista é o caminho para o tédio e a rotina mortificante.
Então, realmente há uma escolha a se fazer: ser generalista é o caminho para o “insucesso” (leia-se, um caminho que não trará riqueza material, que não vai deixar ninguém milionário).
Mas, para se ter “sucesso”, antes de tudo é necessário dizer “SIM” ao capitalismo, dizer “SIM” à ideologia burguesa. Esse é o pré-requisito básico.