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§ 87
Há exceções incompreensivelmente grandes; a diferença de individualidades é enorme; mas, em conjunto e conforme já se disse, o mundo vai mal: os selvagens se entredevoram e os civilizados enganam uns aos outros, sendo a isso que se chama a marcha do mundo. (Arthur Schopenhauer, Aforismos para sabedoria na vida, cap. V, C)
Eu vejo aqui as pessoas mais fortes e inteligentes.
Vejo todo esse potencial desperdiçado.
Que porra é essa, uma geração inteira de garagistas, garçons, escravos de colarinho branco.
A propaganda põe a gente pra correr atrás de carros e roupas.
Trabalhar em empregos que odiamos para comprar merdas inúteis.
Somos uma geração sem peso na história.
Sem propósito ou lugar.
Nós não temos uma Guerra Mundial.
Nós não temos uma Grande crise.
Nossa Guerra é a espiritual.
Nossa crise, são nossas vidas.
Fomos criados através da tv para acreditar que um dia seriamos milionários, estrelas do cinema ou astros do rock.
Mas não somos.
Aos poucos tomamos consciência do fato.
E estamos muito, muito putos.
Você não é o seu emprego.
Nem quanto ganha ou quanto dinheiro tem no banco.
Nem o carro que dirige.
Nem o que tem dentro da sua carteira.
Nem a porra do uniforme que veste.
Você é a merda ambulante do Mundo que faz tudo pra chamar a atenção.
Nós não somos especiais.
Nós não somos uma beleza única.
Nós somos da mesma matéria orgânica podre, como todo mundo.
Escolha não ter uma TV grande
nem baixo colesterol
nem um abridor elétrico de latas
nem plano de saúde e dentário
e muito menos uma casa de dois andares numa rua arborizada e filhos que só tiram A+.
As coisas que você possui acabam te possuindo.
Você só é realmente livre após perder tudo.
Pois ai não terá o que perder, e, enfim, encontrar-se-á livre.
Tyler Durden (Em O clube da Luta)
Eu estava conversando com uma colega de trabalho (ela tem uns 25 anos), quando ela, em uma nova tentativa de me dar uma "lição de moral" (1), soltou o lugar-comum: "A gente recebe o que a gente dá". Muito bem, o que as pessoas querem realmente dizer com isso? Que, em última instância, recebemos o mal por que praticamos o mal, dessa forma o nosso sofrimento é, em última instância, causado por nós mesmos. Trata-se do velho golpe de tentar fundamentar a moral sobre o egoísmo. (O lugar onde eu trabalho é cheio de gente subserviente, que fica se justificando o tempo todo, como se pedisse desculpas por existir. (2))
Mas as pessoas que repetem esse clichê em geral são estúpidas o bastante para não perceber o óbvio (e se percebem, então fingem não perceber): que se um indivíduo recebe o que dá, ele, obviamente, dá o que recebe; e que se nós regredirmos esse ciclo de dar e receber nós inevitavelmente chegaremos a um momento inicial no qual o indivíduo "recebeu" antes de "dar": dos pais, da escola, da sociedade, enfim, do mundo.
Não é difícil perceber que a intenção desse clichê é colocar a responsabilidade desse processo sobre o próprio indivíduo, transformando-o de vítima em algoz, ou seja, após receber tanto mal do mundo e, então, responder com mais mal e, assim, receber mal de novo... o indivíduo é então informado que, por fim, a culpa pelo mal que ele recebe é, afinal de contas, dele próprio, já que ele tinha dado mal antes (e sobre o mal que recebera anteriormente nada lhe é dito), como se ele fosse também responsável pelo mundo que já existia antes dele.
Após saber de tudo isso, cabe agora ao indivíduo o desafio hercúleo de quebrar esse ciclo vicioso, já que "o mundo" certamente não o quebrará para ele. Ou seja, agora o indivíduo, um "adulto responsável e maduro", terá que responder ao mal que receber com o bem, na esperança de receber, então, e pela primeira vez, o bem também. Cabe ao indivíduo a responsabilidade de quebrar um ciclo vicioso que ele não começou. Mas essa é a vida, essa bosta.
É claro que eu, pessoalmente, nem mesmo acredito que esse clichê, como ocorre com a maioria dos clichês, tenha uma validade estatisticamente significante. Trata-se de mais uma coleira para o povo, mais uma cenoura para o cavalo. Ou alguém aqui acredita realmente que o mundo é dos bons e dos justos? Já cansei de fazer o mal e receber o bem, já cansei de ver o mal sendo recompensado com o bem (3). Porque uma análise fria e mais detalhada da realidade mostra que "a verdade" geralmente está justamente na direção oposta da indicada pelos lugares-comuns.
Pois a verdade é que a maioria das pessoas que perpetra o mal contra os outros tendo em vista o próprio bem acaba por receber - impunemente - o próprio bem que almejava: no mundo real, o crime, desde que perpetrado com a devida astúcia, recompensa, e muito! Aqueles que realmente acreditam que nossas sociedades (sejam ocidentais ou orientais) estão fundadas sobre valores nobres e sublimes não conhecem a história da humanidade, ou são muito estúpidos para interpretá-la.
Contra essa pretensa sabedoria que tenta fundamentar a moral, o "fazer o bem", sobre o egoísmo, o "receber o bem", nós temos a filosofia schopenhauriana, cujo discernimento está para sempre interditado à maioria da humanidade; o que, aliás, vem a ser uma testemunha adicional da miséria humana...
Outro lugar-comum, muito parecido com o anterior, é aquele que diz que "o mal que a gente faz volta para nós". Na verdade é a mesma afirmação que a anterior, mas dessa vez acrescenta-se uma espécie de princípio divino (geralmente o velho e bom deus, esse pau para toda obra) que se responsabiliza por recompensar o justo e castigar o injusto. Como ninguém mais, fora poucas exceções, acredita sinceramente em paraíso e em inferno, então nós regressamos ao mais grosseiro judaísmo, no qual a promessa de castigo, caso não fiquemos na linha, cai-nos sobre essa própria vida atual. O ser humano, esse ser maravilhoso, apenas porta-se moralmente se for coagido a fazê-lo, se for ameaçado com castigos: não é assim que as crianças são educadas?
Mas contra a veracidade desse tipo de afirmação (do clichê), abundam provas à exaustão. Quem leu os capítulos paralelos intitulados "laisse fair laisse passer" já está familiarizado com as barbaridades que os capitalistas perpetraram no século XIX na "civilizada" e "cristã" Inglaterra, enquanto a mesma enriquecia com o comércio de escravos (o qual depois iria condenar e reprimir no mundo todo). Agora, leitor, você acha que a maioria desses criminosos foi castigada pelos seus crimes, ou que, ao contrário, lucraram fabulosamente e seus descendentes vivem até hoje na opulência praticando crimes semelhantes, porém mais ocultos, adequados à farsa da "democracia"? É claro que é uma pergunta retórica.
Leitor, não seja estúpido. Não acredite em clichês, principalmente naqueles que pretendem pintar o mundo como um lugar justo e, na sua essência, bom. Nada mais falso do que isso. Não, o universo não conspira a nosso favor (nem da humanidade, nem de mim, nem de você): ele não está nem aí para nós. Não, a vida não é justa. Não, tudo não acaba sempre bem. Não, o bem não vencerá necessariamente o mal. Não, as coisas não mudam sempre para melhor. Não, você não merece ser feliz: você não merece nada. Não, não existem "pessoas de bem": todos são criminosos em potencial, bastando as circunstâncias adequadas para se manifestarem (na verdade todos nós somos, no mínimo, estelionatários: ficamos nos enganando mutuamente o tempo todo para obter algum ganho particular).
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(1) Certa vez eu conversei com a assistente social de um lugar onde trabalhei e ela me disse que "nós temos que crescer em todas as áreas da vida: familiar, profissional, psicológica e espiritual". Nós temos quê? TEMOS QUÊ????? Vá tomar no meio do olho do seu cu, sua bosta!! Essa gente de merda acredita que nós somos "livres" e são as primeiras a dizer que nós "temos que" seguir um comportamento padronizado e medíocre. Poucas pessoas foram inteligentes o bastante para me dar conselhos sem usar o maldito tem que.
E o que eles querem dizer exatamente com esse "tem que"? Bem, no caso dessa sabedoria da assistente social, presumo que esse "tem que" na verdade quer dizer que a maioria das pessoas "querem" crescer nessas "áreas da vida" (e querem porque são gado condicionado para querer isso); como a tal da assistente social é uma vaca, ela não é capaz de perceber que nem todas as pessoas querem essas merdas, portanto que esse discurso do "temos que" pode não fazer absolutamente sentido nenhum para um outsider (aliás, se ela não é um outsider - e certamente ela não é - é impossível para ela sequer entender o que faz sentido para um outsider).
Aproveito para fazer mais uma citação de Schopenhauer:
É contradizer-se - é muito difícil vê-lo? - chamar à vontade livre, para em seguida lhe impor leis, leis segundo as quais ela tem que querer. "Tem que querer!" (O mundo como vontade e como representação, Tomo I, § 53)
(2) Os sentimentos de culpa e de medo nos ajudam a entender a subserviência e mesmo o masoquismo que tantas pessoas apresentam. Enquanto a ideologia dominante insiste que as pessoas são livres e são senhoras de si mesmas, a verdade é que o indivíduo vive preso num sistema de escravidão múltipla e anônima. Por um lado, o indivíduo é escravo de instituições, como o capitalismo , a Igreja e o Estado; por outro, ele se deixa manipular por estas instituições pois é escravo de si mesmo: dos seus instintos, dos seus neurotransmissores, dos seus desejos, das suas vaidades, das suas ilusões.
A ideologia dominante trata de empurrar a culpa pelos "erros sistêmicos" (os erros na verdade não existem, apenas existem se o real é comparado com um ideal utópico) para o indivíduo, o qual é também incumbido da responsabilidade de mudar "tudo isso que aí está" (enquanto os fatores sistêmicos - reais causas desses problemas - permanecem imunes à crítica). (Aliás, a ideologia oficial chega mesmo a negar a existência de um "sistema": a sociedade é interpretada como um amontoado de indivíduos independentes, racionais, e mesmo "essencialmente bons". A Margaret Thatcher chegou a afirmar que "a sociedade não existe".) A impotência do indivíduo, confrontada com essa "obrigação" irrealizável gera medo e culpa. Os problemas sistêmicos aparecem, pois são assim tratados pela ideologia oficial, como problemas individuais. Dessa forma, uns vão para a cadeia, outros para o hospício, outros se afogam em drogas (lícitas ou não), outros nas igrejas, outros no trabalho, outros em formas "inofencivas" (para os donos do poder) de entretenimento (todos os hobbies possíveis e imagináveis), etc.
É compreensível que a maioria das pessoas se recuse a questionar as ideologias dominantes: essa é uma atividade perigosa (para o equilíbrio mental do indivíduo), custosa (é necessário mobilizar muita energia e gastar muito tempo para produzir uma ideologia substituta à dominante) e pouco gratificante (o único prazer que ela pode proporcionar ao indivíduo é a sensação de que ele conhece "a verdade" enquanto a grande "massa ignara" continua completamente alienada; assim ele se sente como uma espécie de alienígena, de espião ou de invasor, que está "disfarçado" como uma "pessoa comum").
E a alienação continua (escrevo isso aqui, nessa nota de rodapé, por falta de lugar melhor). Filmes como Transformers, O Grande Dave, O dia que a Terra parou, e Quarteto fantástico e o surfista prateado, entre outros (algo parecido e igualmente ridículo e infantil ocorre em O homem bicentenário) - e nós sabemos que a industria cultural em geral e o cinema em particular possuem funções catárticas, sublimativas e de promoção da ideologia dominante - trabalham com uma simbologia narcísica segundo a qual alienígenas apáticos - e inexplicavelmente ingênuos - chegam à Terra para rapidamente serem "seduzidos" pelo "charme" da humanidade. Esse processo de sedução, vale salientar, geralmente (e dos cinco filmes citados apenas o primeiro é exceção) passa por uma certa catexia libidinal recíproca desenvolvida (novamente de forma inexplicável) entre o alienígena e um dos protagonistas (femininos) do filme. Trata-se de uma simbologia ingênua utilizada como forma de justificação do establishment e da ferida vaidade do homo sapiens sapiens.
(3) Ser livre de escrúpulos, simpatia, honestidade e consideração pela vida alheia podem favorecer, em um limite razoavelmente amplo, o bom êxito do indivíduo pertencente à cultura pecuniária. (Thorstein Veblen, A Teoria da classe ociosa, capítulo IX)
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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.