sábado, 27 de setembro de 2008

XXXV - Acerca de um pensamento "abominável" que se pode concluir a partir da analogia pseudo-sociológica da "linha de montagem".

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§ 35







Nos habtat, non tartara, sed nec sidera caeli: Spiritus, in nobis qui viget, illa facit. (Agrippa, Epistulae)

Há verdades cuja obscenidade é insuportável.

Já que as duas coisas são incompatíveis, o que é mais importante: a "verdade" ou a "felicidade"? (1)
Fiz-me, acaso, vosso inimigo dizendo-lhe a verdade? (Gálatas 4:16)
Interpretado timidamente, esses desejo de não enganar pode passar por um quixotismo, uma pequena sem-razão de entusiasta; mas é também possível que seja coisa pior: um princípio destruidor, inimigo da vida. "Querer o verdadeiro" poderia ser, secretamente, querer a morte. (Nietzsche, Gaia ciência, V, § 344)

No fundo, abstraindo da representação e das suas formas, é uma única e mesma vontade de viver que se mostra neles todos, e que, desconhecendo-se a si própria, volta contra si suas próprias armas (...). (Arthur Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação, Tomo I, § 65)
Basta recordar quanto sofrimento é poupado àquele que não tem muitas idéias e quanto mais "de acordo com a realidade" se comporta quem aceita a realidade como verdadeira, e até que ponto dispõe do domínio sobre o mecanismo somente aquele que o aceita sem objeções, (...) (Theodor W. Adorno, O fetichismo na música e a regressão da audição)

Há aqueles que vivem nas trevas, enquanto outros vivem na luz. Somente podem ser vistos os que vivem na luz. (Bertolt Brecht)
(...) a fome (e ele chupava filosoficamente a asa do frango), a fome é uma prova a que Humanitas submete a própria víscera. Mas eu não quero outro documento da sublimidade do meu sistema, senão este mesmo frango. Nutriu-se de milho, que foi plantado poe um africano, suponhamos, importado de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, foi vendido; um navio o trouxe, um navio construído de madeira cortada no mato por dez ou doze homens, sem contar a coradalha e outras partes do aparelho nautico. Assim, este frango, que eu almocei agora mesmo, é o resultado deuma multidão de esforços e lutas, executados com o único fim de dar mate ao meu apetite. (Quincas Borba em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, cap. CXVII)


Duan: "Do jeito que você fala, é como e a civilização escravizasse as pessoas. É como se as pessoas vivessem para servir à sociedade, e não o contrário."

Conrado: "Bem.., eu sei que é difícil admitir isso...Mas eu tenho a sensação de que a civilização e a maioria das pessoas servem para trabalhar em prol de uma minoria, cuja vida é uma contínua fruição de prazeres. "

Duan: "Como assim?..."

Conrado: "O sofrimento causado por doenças, exclusão social, pobreza, exploração do homem pelo homem, desajustamentos de toda espécie, injustiças...todo esse sofrimento, que vitima a maioria das pessoas, é necessário, é conditio sine qua non , para que uma minoria viva uma vida harmoniosa e bela, equilibrada e prazerosa, o que vem a ser, afinal de contas e sob o ponto de vista da plenitude da vida, o objetivo último da sociedade e da própria vida, consideradas sob o ponto de vista geral. Essas poucas pessoas - deixe-se bem claro - não são necessariamente as mais ricas da sociedade. Certas pessoas - pouquíssimas, é verdade - transmitem pela linguagem corporal e pela voz tal harmonia, tal paz e, é necessário confessar, tal futilidade, que nos fazem desconfiar seriamente quanto a possibilidade delas nunca terem sofrido na vida.
A felicidade do indivíduo se consubstancia por meio do sacrifício de indivíduos. Em outras palavras: a felicidade de um é o suplício do outro. O prazer se paga com a dor."

Duan: "Espera aí, você está dizendo que o sofrimento de um se justifica na medida em que é condição necessária para o prazer do outro?"

Conrado: "Exatamente. Por exemplo: certo dia eu estava lá na Fazenda Rio Grande e vi uma mulher – uma épsilon - parda, de baixa estatura, gorda (e nós sabemos que esse tipo de excesso de peso é decorrente de uma alimentação de baixa qualidade) e que puxava junto de si duas crianças pequenas (3 e 5 anos); como se não fosse suficiente, a pobre diaba estava grávida. Minutos depois eu passei em frente à PUC, em Cu-ritiba, e vi, às 16h de um dia de semana, dois caras jovens – dois betas - jogando tênis despreocupadamente.
"O que importa é que eu percebi que esses dois estereótipos sociais não são independentes, eles existem um em função do outro. A vida de prazeres dos rapazes pressupõe mão-de-obra barata, e portanto pressupõe pobreza, doença, feiúra, sujeira, ignorância, etc. Vivemos em uma sociedade de castas concêntricas. Geralmente é possível identificar a qual casta pertence alguém apenas por meio das suas roupas, da sua voz, da linguagem que usa, da forma do seu corpo, do seu olhar e da sua pele (nossa, como eu sou preconceituoso, meu deus...). Qual é a real liberdade de mobilidade social que aquela mulher possui?
"Da mesma forma, todo tipo de doença, de deformidade, de acidente, de sonho frustrado, é, de um ponto de vista puramente estatístico, ‘necessário’ para que existam pessoas que vivam livres de tudo isso, e possam fruir a plenitude da vida. Para que alguns ‘vençam’ o ‘jogo da vida’ se faz necessário - eu repito: se faz necessário - que a maioria ‘perca’. Para que alguns possam gozar a tal da plenitude da vida, muitos devem viver na privação e na indigência.”

Duan: "Um exemplo disso seria alguém que contrai uma grave doença e assim está servindo a outrem, na medida em que o doente preenche a estatística dessa moléstia e assim ‘livra’ outrem de contraí-la?"

Conrado: "Ah sim. Perceba, meu caro, que existe uma DIFERENÇA FUNDAMENTAL entre essa minha visão e a visão padrão: enquanto a visão do lugar comum-insiste insiste insiste insiste e insiste que o sofrimento que alguém padece é um fruto dos seus próprios erros pessoais, a minha visão insiste que esse sofrimento é também – e é, para falar com exatidão, mesmo PRINCIPALMENTE – causado por decisões tomadas por outras pessoas, e não apenas pelos pais, parentes e conhecidos, e não apenas pelos governantes ou pelas grandes empresas, mas também por pessoas que são totalmente alheias ao indivíduo que sofre e que, numa visão “superficial”, não têm ligação nenhuma com ele."

Duan: "Mas dizer que a vida de muitos, na verdade da maioria das pessoas, é um meio e não um fim em si mesmo, dizer que essas vidas se justificam unicamente pelos ‘serviços’ (reais e metafóricos) que prestam a outras, essas sim que valem por si mesmas, isso é um pensamento abominável, desprezível, repulsivo, satânico mesmo."

Conrado: "É, eu sei. Eu apenas estou descrevendo o que eu senti. Eu senti que é assim, embora isso me cause repulsa. Tudo se relaciona com tudo; todos estão interconectados. Ah, se você fosse capaz de entender...Você sabe o que é monismo, não?"

Duan: "Aham."

Conrado: "Então...é a mesma substância, é o mesmo sujeito, que ali sofre para acolá gozar. E esse sujeito se dispõe a isso, aceita isso como suficiente. O que eu posso fazer?"

Duan: "Imagine uma sociedade regida por um pensamento como esse. Seria como o III Reich, seria como se a Alemanha tivesse vencido a II Guerra Mundial."

Conrado: "É, eu sei."

Duan: "Eu não vou aceitar isso."

Conrado: "É, eu sei. Dane-se você. Que diferença faz?"

Duan: "Vá à medra. Doente."

Conrado: "Pior do que ser cego, é ser o único que consegue ver."

Duan: "Pensei que, em terra de cego, quem tinha um olho era rei..."

Conrado: "Acredite no que você quiser."

Duan: "Quanto a isso, não se preocupe, não."

Conrado: "Preocupado, eu?"

Duan: "É, você."

Conrado: "Você."

Duan: “Diga-me algo que eu ainda não saiba.”
Conrado: "Você acha que toda a injustiça, que toda a exploração, que toda a enganação, que o fato de que em todas as sociedades sempre existe duas leis: uma para os pobres e outra para os ricos, você acha, pergunto eu, que tudo isso são ‘erros’ do ‘sistema’? Que ingenuidade! Na verdade tudo isso faz parte do funcionamento normal do ‘sistema’. O governo deve mentir. As pessoas devem se enganadas e exploradas. Esses não são ‘erros’, são, na verdade, parte integrante do mecanismo de funcionamento do ‘sistema’.
“As pessoas não são educadas para ter pensamento crítico, para questionar. Ao contrário, são educadas para serem eleitores dóceis, para serem trabalhadores tímidos, disciplinados e produtivos, e para serem consumidores compulsivos. As pessoas são educadas para acreditar nas instituições: para acreditar no governo, para acreditar nas empresas (no capital), para acreditar nas igrejas para acreditar...nos publicitários [risos]. As pessoas merecem ser enganadas e elas querem ser enganadas. Elas têm o que elas querem e o que elas merecem.”
Duan: "Mais alguma coisa?"

Conrado: “Sabe por que não encontramos ninguém como nós?”

Duan: “Por quê?”

Conrado: “Por que morrem todos muito rápido. Ninguém agüenta viver assim por muito tempo.”

Duan: “Agradeceria a deus, se acreditasse nele.”
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1
Sugerimos que a noção consciente da repressão predominante é obnubilada no indivíduo pela restrição manipilada de sua consciência. Esse processo altera o conteúdo da felicidade. O conceito denota uma condição mais-do-que-particular, mais-do-que-subjetiva; a felicidade não está no mero sentimento de satisfação, mas na realidade concreta de liberdade e satisfação. A felicidade envolve conhecimento: é a prerrogativa do animal rationale. Com o declínio da consciência, com o controle da informação, com a absorção do indivíduo na comunicação em massa, o conhecimento é administrado e condicionado. O indivíduo não sabe realmente o que se passa; a máquina esmagadora de educação e entretenimento une-o a todos os outros indivíduos,num estado de anestesia do qual todas as idéias nocivas tendem a ser excluídas. E como o conhecimento da verdade completa dificilmente conduz à felicidade, essa anestesia geral torna os indivíduos felizes. Se a ansiedade é mais do que um mal-estar geral, se é uma condição, um estado existencial, então esta chamada "idade de angústia" distingue-se pelo grau em que a ansiedade desapareceu de qualquer forma de expressão. (Herbert Marcuse. Eros e civilização, capítulo 4. Negrito adicionado)

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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

7 comentários:

Anônimo disse...

Sei não guri..., isso parece uma forma sofisticada de jogar a culpa nos outros...

Duan Conrado Castro disse...

Lucius, mas a culpa é dos outros! Todos são culpados, e todos são inocentes, simultaneamente.

Anônimo disse...

Hum...união dos opostos, é? Isto está me cheirando a Hegel.

Marcos disse...

Que escândalo! Isso é "incomentável", meu Deus!

g. disse...

“Sabe por que não encontramos ninguém como nós?”

"Porque Big Brother Brasil e Stephenie Meyer são aparentemente bem mais interessantes que a nossa realidade social, econômica e política."

Duan Conrado Castro disse...

Pois é...Tive que procurar no Google para saber que é Stephenie Meyer...

g. disse...

Hahahaha Muita sorte sua, sério...
Tenho inveja de quem desconhece essas podridões.