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Enquanto a natureza pôs entre os homens as mais amplas diferenças morais e intelectuais, a sociedade não toma conhecimento delas, tendo a todos por iguais; melhor: em seu lugar coloca as diferenças e degraus de classes, de posições, as quais, muitas vezes, são diametralmente opostas á hierarquia natural. Em tal escalonamento, ficam bem os que a natureza colocou embaixo; mas os poucos que havia situado alto saem perdendo; eis por que costumam afastar-se dela, na qual, logo que se torna numerosa, há de predominar a vulgaridade. O que faz com que os grandes espíritos aborreçam a sociedade é a igualdade de direitos, e, portanto, de pretensões, ao lado da desigualdade de capacidades, e, portanto, das realizações (sociais) dos outros. A chamada boa sociedade permite a existência de excelências de toda natureza, menos a das espirituais, que são mesmo tidas como contrabando. Ela nos obriga a ter paciência ilimitada com qualquer tolice, erronia ou boçalidade; os méritos pessoais, porém, têm de pedir desculpa ou ocultar-se, pois a superioridade intelectual ofende por sua simples existência, sem nenhum adminículo da vontade. Por isso, a sociedade a que chamamos boa tem não só a desvantagem de nos apresentar indivíduos que não podemos louvar nem amar, mas também a de nos não permitir que sejamos nós mesmos, do modo que melhor se adapte à nossa natureza; ao contrário, para nos por em harmonia com os demais, ela nos força a nos fazer pequenos e até a nos desfigurar. Discursos e observações cheias de espírito, só perante uma reunião de gente igual; na sociedade comum provocam ódio: para agradá-la é necessário ser trivial e medíocre. Em tal agrupamento temos que renunciar, com dolorosa auto-negação, a três quartos de nós mesmos, a fim de nos parecermos aos demais. Todavia, dirão, teremos “aos outros”; mas quanto mais a pessoa tem em si, tanto mais achará que o lucro não cobre o prejuízo, sendo o negócio a seu desfavor; é que, em regra, esta gente é insolvente, isto é, nada tem a oferecer em compensação do tédio, dos pesares e incômodos e da renúncia imposta pelo seu convívio: a sociedade, em geral, é formada de tal arte, que quem a troca pelo isolamento faz uma boa transação. Acresce que, para substituir a autêntica superioridade, que é a do espírito, que ela não suporta e também é raramente encontrada, adotou a sociedade, discricionariamente, uma superioridade falsificada, convencional, calcada em estatutos arbitrários, propagando-se por tradição entre as classes elevadas e mudando como muda uma palavra de ordem: é o que se chama de “bom-tom”, fashionableness. E quando,não obstante, essa superioridade entra em colisão com a superioridade legítima, mostra a sua fraqueza – Quand le bom ton arrive, le bons sens se retire.
Em princípio, uma pessoa só pode estar em harmonia absoluta consigo mesma e não com o amigo, ou com a amada: pois as diferenças de individualidades e de disposição sempre produzem dissonâncias, mesmo que de leve. Assim, a verdadeira, a profunda paz de coração e a calma completa de espírito – esse bem que é o maior do mundo, depois da saúde – só se encontram na solidão, e, como estado duradouro, só no retiro integral. Aí, se o próprio “eu” for grande e bem dotado, goza-se da maior felicidade que pode haver nesta pobre terra. Seja mesmo dito: posto que os homens estejam ligados entre si pela amizade, pelo amor, pelo casamento, no fundo a criatura é inteiramente sincera apenas consigo mesma, ou,quando muito, para com o filho. – Quanto menos alguém tiver que se por em contato com os homens, em virtude de condições objetivas ou subjetivas, melhor será. Se a solidão e a vacuidade não nos deixam sentir, a um tempo, todos os seus males, permite-nos ao menos abarcá-los com um só olhar; a sociedade, todavia, é insidiosa: por detrás da aparência dos passatempos, da sociabilidade, dos prazeres etc., oculta males enormes e, por vezes, incuráveis. (...) Diga-se mais que aquilo que tem valor real não é respeitado pelo mundo, e o que é respeitado não tem valor real. A prova e a conseqüência disso está no retraimento de todo homem digno e excelente. Assim, para o que tem algo de bom em si, será um ato de legítima sabedoria se, quando for o caso, restringir as suas próprias necessidades, a fim de conservar ou aumentar a própria liberdade e de contentar-se com o menos possível para a sua pessoa, nas inevitáveis relações que tem que manter com o gênero humano.
(Arthur Schopenhauer, Aforismos para a sabedoria na vida, cap. V.B)
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