.
.
.
§ 106
(Contém spoilers - revelações do enredo.)
***
Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.
Após tecermos, nos últimos seis capítulos, várias considerações críticas sobre a indústria cultural, o presente capítulo visa fazer-lhe uma contraposição, analisando o subtexto presente no filme Anticristo de Lars von Trier. A presente análise foi chamada no título do capítulo de “esboços” pois não se trata de um texto contínuo que chega a uma conclusão, mas sim de uma série de considerações meio caóticas, como acontece em tantos outros capítulos desse blog.
Esse “texto” é na verdade uma colagem de pensamentos que giram em torno do filme Anticristo (2009) de Lars von Trier. Nesse “texto” busco captar parte do subtexto que suponho existir no filme. Porém, não consegui (por preguiça de me dedicar ao esforço que isso exigiria) fazer uma análise coerente e consistente. Por isso o “texto” está, como tantos outros desse blog, dividido por asteriscos, que representam uma ruptura no discurso que teria que ser eliminada para que o mesmo constituísse rigorosamente um “texto” e não uma colagem de esboços.
***
Antes de aceitar passivamente a opinião dos "críticos especializados" que escrevem para jornais e revistas de grande circulação não podemos esquecer que eles são selecionados justamente porque são capazes de escrever algo que o público comprador seja capaz de entender. O que eu quero dizer com isso é que existe uma relação de cumplicidade entre o "crítico especializado" e o público que o respeita e faz a sua fama: um está de rabo preso com o outro: o crítico só fica famoso se disser aquilo que o público quer ouvir, e o público quer ouvir aquilo que ele já sabe. O crítico precisa escrever considerando as crenças e matrizes ideológicas do consumidor que paga pelo seu trabalho crítico, e ninguém quer pagar para alguém que lhe chamado, por tabela, de estúpido e de ignorante. O crítico que escreve para o grande público não pode ficar falando em Nietzsche, Schopenhauer, Freud, Lacan, Deleuze, Derrida, etc. Mas como entender um filme como Anticristo sem recorrer a isso? Devido a esse método de seleção que eu mencionei, não é difícil compreender que é mais fácil para um crítico ficar famoso quando ele nem mesmo conhece os autores mencionados, porque assim ele nem precisa se esforçar para escondê-los do leitor, já que ambos compartilham da ignorância nesses assuntos. Daí um crítico desses (que gostou e recomenda Transformers II: a vingança do derrotados) tem a obrigação de analisar Ancristo: isso não vai dar muito certo...
Da mesma forma que há intelectuais que são contrários a Lars von Trier, há outros que são a favor. Qual número é maior? Isso não me faz a menor diferença. Só para você ter uma idéia, o Caderno Mais! da Folha de São Paulo dedicou capas e textos elogiosos a Dançando no escuro (03/12/2000), a Dogville (23/11/2003), e a Manderlay (28/08/2005) (com relação ao Anticristo, eu não sei, pois não estou mais lendo esse jornal). Com relação ao Dançando no escuro, Laymert Garcia dos Santos, no referido jornal, chega a insinuar que esse seria o melhor filme do século XX (e, portanto, de todos os tempos): "sente-se que se trata de um filme-limite numa época-limite. Como se o passado, o presente e o futuro do cimena convergissem numa obra para encerrar a paixão do homem do século 20...e o modo como o cinema pode contribuir para redimi-lo."
***
Falar do terror em Antricristo seria descrever tal terror em inúmeras palavras. Terror em forma do tom brutalmente maligno-religioso, diabólico, escabroso e aterrador que cerca o Éden. Todo o filme se cerca também de um terror em forma de desespero e você pode sentir a presença de algo de fato "maligno" naquele lugar.
É possível dizer que Anticristo é uma interpretação artística altamente baseada em volta dos pensamentos e textos de Nietzsche, e, indiretamente, de Schopenahuer (na medida em que ele influenciou Nietzsche).
O filme começa com uma cenas de sexo entre o casal (Ele e Ela). A criança morre enquanto o casal faz sexo. Pelo o que se confirma, no final do filme, a mãe na hora do orgasmo simplesmente ignora o filho solto perambulando frente à janela, e assim o sexo fica associado à morte. O prazer fica ligado à presença de sofrimento. Ela sente-se culpada por estar gozando na hora seu filho morreu, por ter cedido à tensão e ao prazer do gozo ao invés de escolher ou prestar atenção em seu filho. Ela fica em luto, totalmente abalada. Ele já aceita com mais facilidade e racionalidade os fatos. Por quê? A condição sexual da mulher, erigida, principalmente, por anos de escravização sexista e religiosa, impede que ela aceite o prazer ou o fluxo natural da natureza. Anticristo não é somente um conto sobre a misoginia ou a condição do sexos, mas também um conto realista sobre o movimento da natureza e da vida, que recheada de caos que nos impele, nos confunde a consciência e nos faz guiar por forças que não conseguimos focar origem, que classificamos com palavras como instintos, sensações, volições, pulsões, etc.
É fácil para o homem assumir sua sexualidade quando não enfrenta nenhum impedimento social extremamente particularizante. As bruxas eram queimadas também pela sua afirmação sexual uníssona com ambos pólos (masculino e feminino). Em certos contextos do movimento pagão, elas buscavam o prazer (eis a grande profanação) e incorporavam em sua psique a natureza masculina (inclusive representada pelo símbolo fálico da vassoura). Isso fazia delas o símbolo da verdadeira fêmea, do animal feminino perfeito. Não mais presa na dualidade, mas individualizada e completa.
A mulher, mesmo, atualmente, com a possibilidade de sair para uma festa para beijar alguém logo após o término de um namoro sem correr grandes riscos de ser chamada de vadia ou ser completamente defenestrada da maior parte dos círculos sociais, ainda, no geral, não se individualizou, não se realizou como mulher, sua feminilidade permanece uma construção interrompida. Isso não é misogênia ou machismo, é apenas o reconhecimento de uma estrutura social que molda as potencialidades e a liberdade da mulher. Potencialidade de buscar e aceitar o prazer sem culpa, característica por vezes facilmente desenvolvida no homem. As mulheres nesse caso precisam entender seu papel no mundo que está orientado para o masculino, pois o homem forjou certas estruturas da sociedade (conforme descrito, entre outros, por Engels em A origem da família, da propriedade privada e do Estado). Trata-se de uma crítica construtiva para que o animal feminino apareça sem coerções da sociedade patriarcal e falocrática. Ela não se individualizou porque a sociedade, no geral, ainda impele a mulher para assumir uma individualidade, mas orienta para que ela copie o homem ou se baseie nele, o que é uma total corrupção e deformação do verdadeiro desenvolvimento sexual feminino.
Até onde a mulher está se emancipando apenas copiando a masculinidade, em vez de desenvolver uma identidade própria? Isso reflete no próprio corpo feminino. Eu tenho um livro de "educação sexual" escrito na Alemanha na primeira metade do século XX (A nossa vida sexual, do Dr. Fritz Kahn, sexta edição, de 1948); no capítulo destinado às características sexuais secundárias somos informados que a mulher possui os quadril mais largo que os ombros, e que com o homem ocorre o contrário.
Ora, desde a revolução sexual (1960), que a mulher vem adotando uma figura mais masculinizada, e hoje é até difícil encontrar uma que tenha as proporções "naturais" de quadril e ombros: e pode ter certeza que se você encontrar essa mulher "natural" ela vai se achar gorda. Por fim, se observarmos o "mundo da moda" também notaremos algo curioso. Esse mundo é dominado por mulheres e por homens homossexuais. E qual é o corpo feminino ideal por eles construído? Nós sabemos, são aqueles esqueletos ambulantes, que NUNCA têm o quadril mais largo que os ombros. O homem heterossexual gosta é de carne, de abundância, não daquelas magrelas. E a desculpa de que elas são magras para dar melhor destaque às roupas é completamente destruída se olharmos para os modelos masculinos (também idealizados por esse mundo de mulheres e homossexuais masculinos), que quase sempre são caras musculosos (longe de serem anoréxicos).
Ela (a protagonista do filme) realmente entrega-se ao prazer, mas depois sente-se culpada. Essa é a prova de que o processo pela busca do prazer ainda é desconexo, infantil e mal desenvolvido.
Ele, como psicoterapeuta, faz com que Ela suspeite que os remédio que toma, que serve para reestabelecer um certo equilíbrio bioquímico de prazer e recompensa, está dificultando a recuperação do luto. Ela decide então, incentivada por Ele, largar os remédios. Ele começa um tratamento psicoterapeutico nela, a mulher que ama. Um outro médico afirma o consenso mais aceito dentro dos estudos da mente, de que é arriscado realizar tratamento em alguém com quem você cultiva um relacionamento amoroso. Ele mesmo assim prossegue dizendo que ele a conhece mais do que qualquer outro terapeuta. Ela afirma que o lugar que ela mais sente medo é a floresta, o Éden. Ambos vão para lá porque acham que a resposta para a dissolução do luto e do trauma se encontra lá. O Éden é o habitação primeva do homem para maioria das religiões monoístas. O Éden é o paraíso. Mais do que isso, o Éden é a natureza da qual o homem emerge. O interessante é que o Éden de Anticristo não possui a concepção de paraíso utópico onde se vive harmonicamente e sem conflitos, tal como o inconsciente coletivo se apega, mas como o local de origem do Homem como ele é, com pecados, com o caos inato e intrínseco à natureza. Pois o que será a serpente e a maça senão o caos imprimindo o desejo e, por conseguinte, a confusão no homem? Anticristo retrata no paraíso distópico a realidade humana como ela é: um caos no qual imiscuem-se volições, sensações, imaginários, pensamentos, símbolos, linguagens, afetos, etc.
Esse retorno ao Éden é um retorno por meio do qual Ela busca enfrentar o medo da natureza. O medo da sua própria natureza, pois Ela, como estudiosa dos feminicídios e perseguições às bruxas, reconhece que não é capaz de entender a própria sexualidade feminina e acaba por aceitar a visão misogênica de que de fato as mulheres estão a par com o caos, com a natureza irredutível ao princípio do terceiro excluído que alimenta o racionalismo ocidental.
Ela não entende sua sexualidade, que está fortemente ligada à natureza de maneira brutal, como representada pelo Cervo com um feto sendo abortado. (Outra interpretação para o Cervo que abortou é a mãe que não consegue se desprender do filho. O caos da natureza pode ser o filhote de passáro caindo da árvore e sendo devorado por formigas e depois por uma ave de rapina – cena, aliás, tão semelhante à história de Sidarta Gautama no seu processo de iluminação (negação do querer-viver).) Ela mesmo afirma que sente-se fortemente sensibilizada pelo fato de que as sementes de carvalho que não param de cair do teto são como "crias" que nunca irão brotar ou crescer. A queda das sementes remete à angústia diante da finitude temporal de qualquer objeto (principalmente pessoas) que sejam adotados como destinos pulsionais da libido Ela assume que a natureza então é maligna porque o caos que faz brotar a sexualidade feminina, que a faz ficar grávida e experimentar a maternidade como um fenômeno extremamente forte na psique feminina, é o mesmo caos que por ventura a faz abstrair-se na volúpia do prazer sexual, esquecendo-se do filho, é o mesmo caos que, aleatoriamente, faz seu filho sofrer, se perder, e que assim ameaça continuamente a homeostase psíquica dela. A pulsão (vemos aqui a vontade schopenhauriana) que a impeliu à procriação e ao amor pelo filho é a mesma que a impeliu a descuidar do garoto enquanto entregava-se ao orgasmo (vemos aqui uma espécie de “autofagia” da vontade schopenhauriana, a qual quando ascende à consciência gera forte abalo psíquico e angústia).
Mais do que uma identificação do caos na sexualidade feminina, o filme retrata o medo que o ser humano em geral tem da natureza. Uma das premissas é que as construções da presunção individual nada são perante o caos da natureza, que propícia situações que nos coloca diante da nossa total falta de controle sobre as coisas que influenciam diretamente nossas vidas. A tentativa de obter um controle sobre o próprio destino é destroçada por fatalidades totalmente inesperadas, que rompem abruptamente, e gratuitamente, uma estrutura libidinal construída e fortalecida ao longo de anos, senão ao longo de toda a vida do indivíduo. Esse rompimento trágico impõe o caos, outrora oculto pelos destinos pulsionais construídos pelo psiquismo e agora rompidos, lançando assim o indivíduo no Real (Lacan), do qual ele buscou evadir-se ao longo de toda sua vida.
Esse retorno ao Éden é como um retorno que tem um único destino marcado: o caos, o qual faz todo ser humano, diante do desespero, mostrar quem realmente é, mostrar suas neuroses, suas fugas, suas ilusões, seus impulsos reprimidos e ocultos sobre um verniz de civilidade.
Não somente Ela retorna ao Éden para enfrentar seus medos, mas Ele também tem um papel importante que pode ser interpretado de diversas formas no final. O anúncio parcial do objetivo Dele encontra-se representado pela astuta raposa (que representa a lógica, a razão), que anuncia: o caos reina. A raposa também simboliza que o destino Dele que é comer suas próprias entranhas (de novo vemos, aqui a autofagia da vontade) ao arriscar-se numa psicoterapia da pessoa amada, e que se encontra num profundo estado de luto.
A partir do momento em que Ela é confrontada com a afirmação de que o marido sabe da falha Dela como mãe ou, talvez, da loucura que ela teve em machucar ou deformar o pé do próprio filho, o caos reina de vez, porque o ego dela acabou se confrontando com a realidade de que ela é, “de fato”, com ela suspeitava, maligna. O reconhecimento do outro, Dele, mediante enunciação verbal, destrói a que restava do equilíbrio psíquico Dela. Nesse momento não existe mais uma busca controlada pelo entendimento da sua natureza e da natureza das coisas, mas sim um desespero que diz: “já que eu sou maligna, o que me resta ser? Maligna, psicopata, pois esse é o meu modo de operar.” E assim como ela prendera o filho, ela prende o marido atravessando sua perna com um peso de metal. A fixação pelo sexo se orienta também no sentido de possuir o parceiro, tomar conta do seu falo, pois tal realização sustenta ainda a manutenção da relação e da posição dela como mulher (que no caso estava prestes a ser abandonada).
Não mais como refúgio, mas também como arma para sustentar que pode dominar o homem ou demostrar sua natureza sexual indomável e insaciável (tal como ela, como bruxa, se visualiza, demoníaca). Dominação na tentativa de ficar sob proteção e aceitação masculina, pois sua reclamação foi: “Você vai me abandonar agora, não?” Eis a mulher que se vê desfigurada, vê-se demoníaca e caótica, mas ainda se vê dentro do cárcere patriarcal do qual não consegue evadir-se.
Na esperança de eliminar a fonte de sua angústia (o prazer sexual, o caos), ela corta sua maior fonte de prazer, como forma de castração e punição por toda confusão que causou. A castração representa uma tentativa desesperada de eliminar sua essência volitiva mediante um ato de violência, livrando-se assim da suposta fonte do seu desejo, do seu prazer, e da sua culpa. Mas esse ato simbólico não é suficiente para eliminar sua libido, motivo pelo qual a sua tentativa de emancipação é fracassada.
O cervo simboliza Ela; a raposa, Ele. O corvo aparece tanto como um artefato deus ex machina quanto como um componente simbólico revelador. Quando o corvo aparece no buraco da raposa, isso significa algo, apesar de revelar a posição e assim (eis a dica) forçar com que Ele realiza seu destino final (que é comer das próprias entranhas, matá-la). O corvo também revela o ponto onde a ferramenta está escondida (de baixo do assoalho), permitindo mais uma vez que Ele realize o que “precisa” fazer. E eis o que ele necessita fazer: matá-la. Não porque isso é correto, mas ele apenas reproduz o que as bruxas com seus comportamentos trouxeram para si: serem queimadas por serem animais femininos completos ou por serem tão loucas quanto a protagonista. Um dos simbologismos que reforça essa idéia de que o homem precisa realizara algo é justamente a presença do corvo. O corvo, em mitologias européias, simboliza aquele que antecede à morte. Nas mitologias orientais, budismo especialmente, é aquele que cuida do destino daquele que é Escolhido. No filme, o corvo é nomeado como 'desespero'. E o corvo salva o personagem no buraco de morrer porque ele precisava concluir assuntos (realizar seu destino matar a mulher). O corvo aponta para ele o local da chave embaixo da casa. O corvo é um dispositivo deus ex machina dentro da história, que serve para dar sentido e direção ao roteiro, mas também serve como simbologia.
Alguns já me disseram que a decisão brusca de matá-la é a realização lógica (da raposa, que agora dentro da cabana deita-se tranquilamente ao lado do cervo) de que não há jeito para essa mulher, senão matá-la, pois ela chegou a um estado de loucura do qual não há mais volta. Quando ele coloca ela para queimar e foge, corpos de outras mulheres aparecem em volta de árvores ou carvalho, que simbolizam tantas outras mulheres que na história da humanidade tiveram o mesmo fim Dela.
Ele foge para a floresta, encontra comida nas amoras, nas frutas. Isso simboliza o ciclo da natureza retomando seu ciclo de criação e reflorescimento. Essa intencionalidade parece ser reforçada pela idéia de que logo após isso, a música da cena inicial toca novamente no meio de outra cena magnífica de outras centenas de mulheres com o rosto borrado subindo o morro para o Éden. O que isso significa? Que ainda, milhares de mulheres serão queimadas, vítimas da sua confusão com sua sexualidade, vítimas da sua irrealização feminina.
No final do filme, quando acontece uma lembrança do momento em que o filho se jogou da janela, o cervo aparece dentro do apartamento enquanto a criança desliza e cai: um claro sinal do sentimento de culpa da mãe, pois ela é representada pelo cervo.
***
O que seriam os “três mendigos”? Lembrei agora dos três reis magos, que trouxeram presentes ao menino Jesus quando este nasceu. Ela diz no filme que quando os três mendigos aparecem, alguém tem que morrer. É uma subversão da mitologia cristã... uma mitologia “anticristã”. Cabe aqui lembrar a posição nietzscheana com relação ao cristianismo: o que temos chamado de “cristianismo” durante séculos não é realmente uma religião da vida, do rejúbilo pelo nascimento, mas sim na verdade uma religião de morte e decadência, contrária a Eros, e, portanto, favorável à negação do querer-viver.
São três mendigos, não magos. Mendigos porque eles não tem nada a oferecer, representando assim uma subversão clara à mitologia cristã que tenta estabelecer uma comunhão com eros, esquecendo-se da pulsão caótica e mortal da vida total (assim como tenta conciliar egoísmo com virtude em sua utopia do paraíso). Eis que eles, os três mendigos (O cervo, a raposa e o corvo: luto, dor e desespero) são apresentados com tal nome porque trazem aquilo que o homem, através da postura cristã, sempre procurou afastar. Nenhum presente, somente a miséria.
Só me pergunto se aquilo que os três mendigos trazem é o que o cristianismo sempre quis afastar ou, pelo contrário, o que o cristianismo (na visão de Nietzsche) instituiu: a dor, o luto, o desespero. Nas religiões pagãs há a aceitação da morte e da dor como algo natural, como parte do "milagre" da vida, do ciclo natural das coisas. Assim, não há desespero. O desespero (de novo segundo Nietzsche) vem com a religião cristã, com o deus que morre pregado na cruz, em sofrimento, como oferta a si próprio. Com a glorificação, repetição e imitação desse sofrimento como forma de redenção e de negação da morte como parte da vida (realidade admitida por outras religiões, por exemplo o hinduísmo).
Os três (Ele, Ela, e Nick) formam a família primordial: Pai, Mãe e Filho (Deus/Jeová, Maria e Jesus). Jung diz que o cristianismo, ao criar a Santíssima Trindade, a estabeleceu como Pai, Filho e Espírito Santo, eliminando assim a parte feminina da divindade (depois “recuperada” - copiado das religiões babilônicas - pelo catolicismo na figura de Maria). É essa mulher estirpada que retorna, demonizada, identificada à Natureza, trazendo o caos, a dor, a morte e o desespero. E mais uma vez, como todas as outras mulheres que tentaram entrar em contato com esse divino feminino decaído, ela é queimada como bruxa. Temos aí uma história que se repete, talvez o mito do eterno retorno, sem que haja uma possibilidade de redenção, enquanto se mantiverem os dogmas introduzidos pelo cristianismo, bem como o racionalismo guiado pelo princípio do terceiro excluído.
***
A mitologia judaico-cristã está fundamentada no mito da Queda do Paraíso. Adão e Eva, ao comerem do fruto proibido, tornam-se conscientes do Bem e do Mal, precipitando sua Queda. Antes da Queda, o homem era como qualquer outro animal, integrado à natureza, ao ciclo natural da vida e da morte. Após comer do fruto proibido, o fruto do conhecimento, o ser humano está inserido no mundo da dualidade (princípio do terceiro excluído): bom e mau, certo e errado, feio e belo, corpo e espírito, Deus e Satã. Nesse mundo não há esperança de integração com a Natureza, pois a natureza é má, corrompida, já que Deus está distante de sua criação.
Acredito que o filme nos remete diretamente ao mito da Queda do homem, da expulsão do Paraíso. Não é à toa que tantas vezes a imagem da queda é repetida: a queda do bebê, a queda do pássaro, a queda das castanhas. O local onde se passa a história é o Éden, o paraíso perdido. Mas esse paraíso não é o lugar idílico e perfeito da mitologia, e sim um paraíso degradado, corrompido, onde o caos reina.
Não é que a natureza seja má, mas o homem, ser de linguagem, imerso no mundo da dualidade e do símbolo, não é mais capaz de vê-la com os olhos do animal: sem julgamento, sem moralidade, sem certo e errado, “além do bem e do mal”. A natureza, vista pelos olhos do homem, é satânica (“A natureza é a igreja de Satanás”, como Ela diz numa passagem do filme). O mal esconde-se na natureza e na mata (na qual “o caos reina”). Ela, ao ouvir as castanhas caindo, ouve o choro da Natureza e sua dor. Ele diz “são apenas castanhas”. Mais uma vez se repete o mito do Paraíso: a mulher tenta o homem com o conhecimento, com o fruto do Bem e do Mal. O homem resiste até onde pode, mas ao final sucumbe à tentação e à loucura inerente à existência humana.
Quando Ela vai atrás da criança chorando e descobre que não é seu filho quem está chorando, mas sim a própria natureza, a própria vida que agoniza na sua perpétua autofagia, essa cena remete ao conhecimento do todo da vida, do seu caráter auto-conflitivo, da sua discórdia essencial. Esse conhecimento, que para Schopenhauer, é a via de acesso à negação do querer-viver, não forneceu a Ela uma emancipação do querer. E assim, Ela viu-se diante de uma vida que não consegue negar nem tão pouco aceitar. Tão como o louco em Schopenhauer, ela sucumbiu à loucura como um último ato de soberania da vontade, que destrói a consciência como forma de garantir a manutenção da vida do corpo. Ela ficou louca (de um ponto de vista schopenhauriano) como forma de não chegar à negação do querer-viver, o que é testemunha da sua incapacidade de tomar uma posição definitiva diante da vida cuja essência Ela agora decifrou, sendo, assim, incapaz de fundar uma vida completamente nova (ver § 56 do Tomo I do O mundo como vontade e como representação).
Essa é, no filme, a maldição humana: não conseguir mais relacionar-se com a natureza diretamente, mas somente através dos símbolos, da linguagem. A psicanálise lacaniana diz que além da linguagem existe um Real, algo que não cessa de não se inscrever, que “não tem nome nem nunca terá”. E esse Real sempre irrompe, principalmente por meio do corpo. Isso fica bem claro nEla, em seus sintomas de ansiedade, desejo sexual compulsivo, violência e no seu ato final de automutilação genital.
A mulher, na religião judaico-cristã, sempre foi demonizada, culpada pela queda do homem. Sempre foi considerada a tentadora, a porta para o Mal e para o demônio. E o filme nos faz pensar se existe, na sociedade ocidental atual, outro caminho para a mulher se manifestar que não seja desse modo degradado e pervertido. Talvez o cristianismo tenha se enraizado tanto no nosso inconsciente que não há espaço para uma manifestação sadia da sexualidade feminina. Sexualidade essa que, aliás, tem sido um grande mistério a ser desvendado por psicólogos e psicanalistas. Freud perguntou-se “O que quer a mulher?”. Lacan, polêmico, diz “A Mulher não existe”, querendo com isso dizer que os seres humanos do sexo feminino também estão submetidos à ordem simbólica fálica, masculina, esse falo que Ela busca ao longo do filme com sofreguidão e angústia.
O que os personagens do filme não conseguem suportar, e todos os seres humanos também não, é a ligação entre sexo e morte, entre Eros e Tânatos, presente na existência. Os animais não precisam se confrontar com a morte. Embora ela esteja presente o tempo todo na vida deles, eles não estão conscientes da própria morte. Já o homem (ocidental?) sabe que vai morrer e foge disso durante toda a sua vida. O insuportável, para a mulher, foi ter vislumbrado isso, no momento em que seu filho se jogava da janela e ela sucumbia ao prazer do orgasmo.
O paganismo, as bruxas, parecia lidar melhor com essa melhor essa ligação. Celebravam a vida e a morte, o ciclo natural das colheitas, os solstícios, as fases da lua, o nascimento e a morte do deus sol (em vez de um deus imortal). Talvez naquela época fosse possível, ou houvesse pelo menos a tentativa, de estabelecer um vínculo e uma harmonia com a natureza e seus poderes. Entretanto essas pessoas foram queimadas na fogueira, punidas, acusadas de fazer pacto com Satanás. Ao homem imerso no racionalismo (escravo da “Besta do Logocentrismo Ocidental”, como diria Derrida) e no cristianismo só resta olhar para a natureza e ver sua própria maldade interior, sem possibilidade alguma de redenção, de reconciliação.
Tudo isso fica evidente na cena de sexo sob a árvore (que ilustra um dos cartazes promocionais do filme). Para mim, essa cena é uma simbolização do pecado original (Gênesis cap. 3): "comer o fruto da árvore da sabedoria" foi tomar conhecimento do papel que cada um tem na procriação, foi a descoberta da responsabilidade que cada um tem no ato sexual (enquanto procriação): ao afirmar-se a vida, afirma-se também o sofrimento e a morte (O mundo como vontade e como representação, Tomo I, § 60) . A descoberta do nexo causal entre sexo e procriação, conhecimento não acessível ao animal, soma-se ao conhecimento da inevitabilidade da dor e da morte: assim revela-se "o conhecimento do bem e do mal", revela-se a conexão íntima entre o prazer e a dor, entre a vida e a morte. É também conveniente lembrar que a árvore do conhecimento não é a mesma árvore que a da vida (e que Jeová expulsou o homem do Éden "para que não estenda a sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente"). Comer o fruto proibido - o fruto do conhecimento - que representou o pecado original, foi o ato responsável pela expulsão do homem da comunhão com Deus, da conciliação primeva com a natureza. Talvez a "árvore da vida" seja uma simbolização do desconhecimento que o animal e o “homem natural” têm da morte: assim eles se sentem imortais, na medida que não projetam no futuro a angústia de se saberem condenados à morte.
***
Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.
7 comentários:
Estes princípios ( terceiro excluído e identidade )formam uma parte importante da lógica clássica aristotélica, que é por sua vez considerada a base para toda a ciência ocidental( Não deve se espantar com o fato de que os sábios chineses não conseguiram desenvolvê-la, mas sim de que ALGUÉM conseguiu desenvolvê-la - A. Einstein ). O escolasticismo medieval ( que organizou os primeiros edifícios que se proclamaram "Universidades" entre os europeus - Trivium e Quatrivium - você deve saber ) absorveu Aristóteles com toda a voracidade, mesmo porque a produção filosófica durante o período Romano foi tosca ( intelligentsia romana era algo totalmente voltado à questões práticas, como a Engenharia - vide O. Spengler ) e os europeus eram ainda "bestas louras" semi-civilizadas - vide Norbert Elias, O Processo Civilizador.
Como alguém que cursou "algumas semanas" de Faculdade de Filosofia, consegui perceber que Aristóteles se trata de uma religião como as seitas evangélicas. Questione algo, e prepare-se para o bombardeio de criticismo feroz e sarcástico dos "eruditos", que escondem-se atrás de seu palavrório correto e alinhado.
Acho que seria preciso expurgar muito de Aristóteles de nossa cultura, mas considero isso impossível na nossa época. ( É como um câncer que se espalhou por todo o corpo ). Mesmo assim, belo texto.
Belo comentário. Você parece ter uma boa bagagem de leituras, e de livros pelos quais eu me interesso. Com relação à "Besta do Logocentrismo Ocidental" (Derrida)eu até criei uma comunidade no Orkut a esse respeito:
http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=100734166
Concordo com tudo. Mas tenho algo a acrescentar.
Em primeiro lugar, excelente post. Muito coerente e profundo.
Então, sobre as mulheres estarem presas na cultura, lembra daquela mulher que me introduziu na filosofia? Pois então: ela é pagã e reverencia a terra. Inclusive ela se denomina bruxa e possui um nome de bruxa: Samara Morgan.
Pra mim ela é um exemplo desse ideal que você considera impossível no texto.
É realmente uma mulher incrível.
E a nossa cultura ja não é tão unilateral assim. Conforme o tempo passa e as pessoas ganham acesso à internet, as coisas mudam de figura. Afinal, foi pela internet que conheci ela!
O que eu estou vendo é a cultura se descentralizar com a globalização. É agora que vamos ver se as pessoas são estúpidas naturalmente ou se é o meio que a oprime! :P
Calma aí. Eu não disse que a superação é impossível, o que eu disse é que é necessário abandonar o dogmatismo cristão-aristotélico para poder viabilizar uma emancipação. E a sociedade atual, principalmente desde o pós-modernismo, está caminhando para o abandono desses dogmatismos. Concordo que as coisas estão mudando e que a internet tem um papel chave nisso tudo.
Hm...
É que pra mim sempre parece que você dá uma força ao meio que não aceito...
Essa mulher, por exemplo, tem 34 anos e foi criada na igreja católica. Mas nunca se encaixou lá. Se encontrou reverenciando a mãe terra como Samara Morgan!
Creio que nossa cultura seja psicologicamente incompleta e que é esse o motivo de alguns serem tão desajustados...
Enfim, o texto foi excelente. Fiquei estupefato que você citou JUNG!!!
Quase chorei!
KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK
XD. Pois é, eu cito de tudo. Citei Jung uma vez, mas citei Lacan 4, Nietzsche 6, Freud 2, Schopenahuer 8,e Derrida 3,...
"Creio que nossa cultura seja psicologicamente incompleta e que é esse o motivo de alguns serem tão desajustados..."
Hum, gostei disso. Tenha isso em mente quando ler o capítulo CXII, a ser postado.
Postar um comentário