sábado, 24 de abril de 2010

CII - Acerca da ideologia de legitimação do autoritarismo presente no subtexto do curta-metragem “Steamboat Willie” (Walt Disney, 1928)

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§ 102





Dando continuidade à crítica às histórias infantis desenvolvida nas postagens anteriores, o presente capítulo é dedicado ao curta-metragem Steamboat Willie (Walt Disney, 1928), o qual é descrito pela Wiquipédia da seguinte maneira:

Steamboat Willie (Vapor Willie) é um curta-metragem da Walt Disney Studios de 1928 estrelado pó rMickey Mouse. É famoso por ser o primeiro desenho de animação com som da História. Conta a história de um ajudante do navio Steamboat Willie que quer tomar o lugar do comandante. Mas logo chega o comandante Bafo-de-onça e o tira do comando. Chegam ao porto e pegam uma vaca. Logo chega Minnie, mas o navio já partiu e, com o auxilio de um gancho, Mickey a puxa para o navio. Minnie deixa cair uns livros de música e a vaca os come. Logo a vaca começa a tocar música, enquanto Minnie roda a cauda dela. Mickey começa tocar os animais como instrumentos. Mas chega o comandante e coloca Mickey para cortar batatas e um periquito fica zombando dele.





Diferentemente do que ocorre n’ O pequeno príncipe (conforme visto no capítulo anterior), Disney não cai na ridícula pretensão de criticar o real e apresentar um ideal emancipador protagonizado pela “pureza infantil”. Ao contrário, o que ocorre nos produtos Disney é que o ideal é apresentado como real, e a catarse do espectador (e do produtor) é realizada simbolicamente pelo consumo do mundo ideal imaginado. Esse mundo ideal localiza-se, historicamente, em algum lugar no qual a realidade do espectador (e do produtor) já foi historicamente superada. Não há transformação social a fazer pelo simples fato de que já se atingiu, no mundo ideal de Disney, o fim da história (o qual, também, já foi ridiculamente anunciado, no mundo real, por Francis Fukuyama), a realização suprema e final da civilização.

Novamente (como já vimos n' O Pequeno príncipe e como ocorre na indústria cultural em geral, mas de forma mais explícita e gritante nos produtos voltados às crianças), vemos a reificação substituir a ordem causal da materialidade concreta (da realidade histórica, social, física, biológica, etc.) por uma ordem causal onírica, que passa por cima dos complexos processos causais da realidade e a reduzem a uma simplificação simbólica, animista e caricata, forjando assim um mundo no qual reina a “imaginação” e no qual o bem está condenado a vencer o mal (sendo ambos definidos de maneira maniqueísta e estereotipada). Disney não inventou a reificação, mas apenas reproduz a reificação secularmente presente na literatura infantil.

O aprofundamento da reificação presente na realidade cotidiana é visto como um caminho emancipador, quando, na verdade, esse aprofundamento só faz o indivíduo afundar ainda mais na prisão na qual ele revira-se frivolamente e da qual não consegue evadir-se, assim se constituindo, em última instância, num mero escapismo cuja função é reproduzir a realidade tal qual ela se encontra.

A utilização do corpo animal como instrumento musical, a redução do outro inferior à condição de coisa, de objeto, se repete insistentemente nesse curta-metragem dos primórdios da indústria da animação.

A forma sádica com que Mickey trata os outros animais (lembrando que ele também é um animal, mas como está antropomorfizado representa a figura humana) seria inaceitável para os padrões atuais do “politicamente correto”. Como podemos ver na fotomontagem que ilustra essa postagem, a mesma reificação se repete no longa-metragem A pequena sereia (1989), mas, nesse caso, num contexto mais “suave” no qual todos os animais se divertem e usufruem livremente, mas com um descontraído respeito, dos corpos alheios – o que, aliás, lembra uma orgia, como muito bem aproveitado pelo vídeo satírico Lugar de dar (que trabalha sobre um fragmento do longa-metragem original), disponível no YouTube.





O fato doa animais “inferiores” de Steamboat Willie não apenas não se rebelarem, mas, pelo contrário, ainda mostrarem satisfação na violação de seus corpos por Mickey - e, como nos lembra Foucault, o corpo é, em última instância, o locus do exercício do poder - e na sua redução à condição de coisas (instrumentos musicais) nos permite ver a reificação presente nesse curta-metragem (e em tantos outros produtos da indústria cultural, pois esse aqui é um mero exemplo qualquer) como uma simbolização de reprodução das ideologias de legitimação do autoritarismo e da exploração (e, portanto, de legitimação do establishment). Aqui cabe lembrar que a reificação não é apenas uma característica da relação de poder capitalista, mas sim de toda forma de poder. Assim, os animais-instrumentos do curta-metragem podem ser interpretados de diversas formas, de acordo com as relações de dominação presentes na sociedade real: podem ser os trabalhadores que, segundo a ideologia burguesa, se satisfazem em ser explorados no processo de produção de mais-valia; podem ser as mulheres que, segundo a ideologia machista, se satisfazem em ser reduzidas a objetos; podem ser, ainda, os animais que, segundo a ideologia pecuarista, se satisfazem em viver uma vida de reclusão e engorda forçada para, enfim, serem abatidos em honra ao apetite humano; etc.

O autoritarismo n’ A pequena sereia (no fragmento usado pelo vídeo satírico Lugar de dar) é suavizado pelo fato de que os “instrumentos musicais” (os animais reificados pertencentes à “sociedade submarina” ) interagirem entre si numa espécie de “orgia”, enquanto os animais de Steamboat Willie ficam na maior parte do tempo parados, à disposição de serem usados por Mickey. Todavia, o autoritarismo se faz novamente presente quando observamos que o personagem Sebastian (o siri) não participa da “orgia”, mas apenas é o seu regente, bem como quando percebemos que a função do espetáculo é servir de entretenimento para a desanimada Ariel (a protagonista), nota-se ainda que o personagem Linguado, amigo de Ariel e Sebastian, também não participa do espetáculo. Sem querer exagerar (e olha que eu não tenho o costume de exagerar...), podemos interpretar esse “espetáculo” como uma reificação do mundo do trabalho (que aqui se transforma numa festa), os “instrumentos musicais” como reificação dos trabalhadores (note-se que a fauna e flora marinha, reificada em instrumentos musicais, têm um papel subalterno na sociedade subaquática governada monarquicamente pelo pai de Ariel), os protagonistas como representantes da burguesia (do establishment político e econômico), e o “produto” (o espetáculo) como objeto de consumo conspícuo (capital simbólico) da classe dominante.

O ideal por meio do qual o consumidor (e o produtor) busca escapar à realidade revela-se, ao fim, uma simbolização que acaba recrudescendo as ideologias de legitimação e justificação justamente das relações autoritárias de dominação das quais o consumidor (e o produtor) tenta em vão evadir-se mediante um puro escapismo estúpido. Aqui cabe lembrar que a criança também está sujeita a relações autoritárias, de assimetria de poder, como aliás disseram os autores de Para ler o Pato Donald.

Por fim, a rebelião (algazarra) incitada por Mickey (que, apesar de antropomorfizado, é subalterno na estrutura hierárquica do navio – o que prenuncia uma luta de classes) é castigada pela autoridade estabelecida por meio do trabalho forçado, mas por um trabalho dessignificado. Como castigo, ele é colocado para descascar batatas. Mas para que as batatas são descascadas? Pois o navio parece não ter tripulação além de Mickey, Minnie (que, ao que tudo indica, embarcou de contrabando), o capitão, o papagaio e os animais de segunda classe (além do próprio navio e do gancho, ambos dotados de vida). O próprio ato de descascar as batatas aparece mais como uma destruição do que do que um descascar, o que reforça o seu o seu caráter inútil como componente de uma suposta divisão do trabalho (que, afinal, é inexistente porque redundante num mundo reificado e animista), reforçando assim a sua condição de mero castigo.

A palavra final é dada pelo capitão (a autoridade estabelecida, provavelmente o proprietário do navio), confirmando assim a onipotência e a legitimação do autoritarismo, contra o qual Mickey é impotente e ao qual ele, tal qual os animais-instrumentos, resigna-se e aceita como natural e historicamente inevitável.

Veremos, nos próximos três capítulos, novamente esse papel político conservador da indústria cultural.




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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

5 comentários:

Anônimo disse...

Excelente análise, tal como a anterior.

Tenho acompanhado as postagens do seu blog nas últimas semanas e posso dizer que você tem um nível intelectual acima da média.

Parabéns.

Duan Conrado Castro disse...

Fernando,
agradecido pelo elogio. É bom receber um "feedback" positivo de vez em quando, para eu ter certeza que, se eu estou enlouquecendo, pelo menos não estou nessa sozinho! :P

Duan Conrado Castro disse...

Vejamos uma interpretação teórico conspiratória sobre um filme da Disney:

http://www.youtube.com/watch?v=jJNwfFLKwv8&feature=related

Eis uma outra interpretação: as intenções educativas para a manuteção do establishment são bastante explícitas - a história impinge às crianças o medo de se questionar o status quo.

Anônimo disse...

Mickey Mouse
por Walter Benjamin

(Fragmento escrito em 1931; não publicado durante a vida de Benjamin. Tradução de Pádua Fernandes)
De uma conversa com [Gustav] Glück e [Kurt] Weill. - Relações de propriedade nos filmes de Mickey Mouse: aqui aparece pela primeira vez que alguém pode ser roubado de seu próprio braço, sim, de seu próprio corpo

O percurso de um documento em uma repartição tem mais semelhança com um dos que Mickey Mouse percorre do que com o dos maratonistas.

Nestes filmes a humanidade prepara-se para sobreviver à civilização.

Mickey Mouse demonstra que a criatura ainda pode subsistir mesmo quando toda semelhança com o homem lhe foi retirada. Ele rompe com a hierarquia das criaturas concebida com fundamento no humano.

Estes filmes desautorizam, da maneira mais radical, a experiência. Não é compensador em um tal mundo ter experiências.

Semelhança com os contos de fada. Nunca desde esses contos os fenômenos mais vitais e importantes foram vividos de forma tão não simbólica e sem atmosfera. O incomensurável contraste com Maeterlink e com Mary Wigman. Todos os filmes de Mickey Mouse têm como motivo sair para aprender o medo.

Portanto, não a “mecanização”, não a “fórmula”, não um “mal-entendido” são a base do tremendo sucesso destes filmes, e sim o fato de que o público neles reconhece sua própria vida.

http://culturaebarbarie.org/sopro/verbetes/mickeymouse.html

Duan Conrado Castro disse...

"Nestes filmes a humanidade prepara-se para sobreviver à civilização."

Adorei essa parte.

O Benjamin, e o seu seguidor Massimo Canevacci, estão na minha lista de leituras...infelizmente acho que nunca conseguirei ler tudo aquilo que está na fila antes deles. É a vida...