sábado, 3 de outubro de 2009

LXXXII - Acerca de considerações epistemológicas sobre a "lúgubre ciência".


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§ 82






Seria necessário colocar como epíteto de todo estudo sobre a racionalidade este princípio bem simples mas frequentemente esquecido. A vida pode ser racionalizada de acordo com perspectivas e direções extremamente diferentes. (Max Weber, citado por Plínio de Arruda Sampaio Júnior. Em: FURTADO, 2005, p. i)



COHN apresenta a controvérsia metodológica no interior da economia como um conflito entre "historicismo" e "naturalismo positivista". O mesmo autor cita, ainda, uma "observação caracteristicamente irônica de Schumpeter" segundo a qual o conflito "extinguiu-se por cansaço dos seus participantes" (p. 67). Se, por um lado, o conflito acabou sem entendimento entre as partes, por outro, um lado saiu vencedor: o lado do "naturalismo positivista", o lado de Schumpeter e companhia.

A retomada da discussão é inviável, pois os vencedores, após o fim do socialismo como opção política, com a extinção da URSS, possuem a supremacia política, logo, por seus opositores não mais representarem uma ameaça, o debate se torna indesejável. Os vencedores converteram-se na ortodoxia, a corrente dominante, cuja expressão atual é o neoliberalismo.

O conflito "historicismo" x "naturalismo positivista" se apresenta sob outras formas: "economia como ciência social" x "economia como ciência exata", ou ainda "valor trabalho" x "valor utilidade", entre outros.

Para a corrente dominante, a economia é uma ciência exata. Como afirma ironicamente COMPARATO, para a ortodoxia

(...) a economia não tem por objeto relações humanas, de interesse e poder. Ela é, antes, uma ciência exata, que trata de ralações naturais entre coisas apreciáveis em dinheiro. Assim, se os poderes públicos se vêem carregados de dívidas, é porque, algebricamente falando, a equação de demanda e oferta de dinheiro em relação ao Tesouro (nada a ver com o povo) tende naturalmente a esse resultado, segundo uma lei semelhante à gravitação universal.

O paradigma da economia como ciência exata já está subjacente ao pensamento "naturalista positivista", ou seja, antes do desenvolvimento do marginalismo, com Walras e companhia. A idéia é intrinceca à teoria do valor utilidade, a qual contém o germem da matematização.

Ao analisar a sistematização epistemológica de Robbins (que sistematizou a visão epistemológica dominante, atualmente, acerca da economia), NAPOLEONI mostra que esse pensador inglês vê a ciência econômica como essencialmente dedutiva (portanto partindo de conhecimentos apriorísticos). Ela faria essas deduções a partir de "proposições simples e óbvias" (p. 38) (ou seja, uma ciência da razão pura), como a de que, na esfera do consumo, os indivíduos ordenam suas preferências por ordem de prioridade e como a de que, na esfera da produção, os incrementos de utilização de um insumo, mantendo os demais constantes, acarretam incrementos cada vez menores de produção (lei dos rendimentos decrescentes). Continua NAPOLEONI (p. 39):

Deste modo, a economia assume caráter análogo ao da mecânica racional: assim como esta deriva suas proposições de algumas propriedades elementares dos corpos, a economia (que Robins chama, na linha de Walras, de "economia pura") não é mais do que o desenvolvimento de todas as deduções que é possível tirar da circunstância inicialmente admitida de que fins multiplos e de importância diversa possam ser obtidos com meios escassos, aplicáveis a usos alternativos.

O problema é que tanto a teoria marginalista quanto o neoliberalismo nela embasado partem, também, de outros princípios os quais, em vez de "óbvios", são questináveis: a racionalidade dos agentes econômicos, a plena liberdade da ação individual (inclusive na definição de suas prioridades), as necessidades ilimitadas, a Lei de Say (toda oferta cria sua própria demanda), a mão invisível (tendência imanente ao "equilíbrio"), a concepção de uma sociedade onde produção e consumo são protagonizados por indivíduos isolados e independentes (e autistas), etc.

É sabido, e salta aos olhos, que as pessoas muitas vezes se comportam de forma irracional, muitas vezes oposta aos seus próprios interesses (lembrar que, para a ortodoxia, o pensamento racional é naturalmente um pensamento individualista, como se fosse necessariamente racional ser egoísta). Como afirmar que os consumidores são livres se a indústria da publicidade move bilhões de dólares anualmente? Também é sabido que essa indústria se utiliza de técnicas que exploram a irracionalidade, os "impulsos volitivos", dos consumidores: seu objetivo não é apenas tornar a informações públicas, mas sim criar necessidades que outrora inexistiam. A ortodoxia nada tem a dizer sobre isso.

Quanto à Lei de Say, já mostrou-se, na prática, falsa, com a crise de 1929. Porém, continua a guiar o pensamento da ortodoxia a idéia de que "basta fazer a lição de casa (austeridade fiscal e Estado mínimo) e o crescimento econômico desabrochará, guiado pela natural onisciência dos mercardos, por toda parte". A crença na mão invisível, no deus mercado, continua a guiar a proposta do Estado mínimo.

Em sua concepção de economia como ciência exata, Menger (citado por COHN) afirma obstinadamente que "as dificuldades analíticas nas ciências sociais são menores e não maiores do que nas ciências naturais" (p. 70).

Imbuída dessa prerrogativa de exatidão seria de se esperar que os resultados dessa economia fossem igualmente exatos. Como se sabe, não é o caso, conforme confirma NETTO:

Boa parte dessa economia neoclássica, mais conhecida como "economia autista", transformou-se num "jogo de salão" e esta hoje sob fogo cerrado: vai desabando lentamente sobre si mesma pela pobreza dos seus resultados práticos. (...) todos sabem que raramente dois econometristas chegam a uma mesma conclusão sobre um mesmo problema.

A elegante consistência matemática dos modelos ortodoxos não serve para persuadir-nos do seu caráter científico, uma vez que as premissas irreais da concorrência perfeita e outras são adotadas justamente para viabilizar essa consistência. Como afirma NAPOLEONI (p. 65):

Como recentemente foi demonstrado, o abandono da hipótese de que a concorrência seja perfeita torna impossível a própria definição de uma configuração do equilíbrio geral.

Categorias como "imperfeição de mercado" ou "informações assimétricas" demonstram quão falsa é a pretensão do mainstream de se constituir num saber científico avalorativo. Nada no mundo é perfeito; por que o mercado ou a distribuição informacional seriam diferentes? Temos aqui um pensamento normativo implícito nessas noções de assimetria e imperfeição: o mercado do mundo real não se comporta como os modelos do mainstream querem que ele se comporte, por isso ele é chamado de "imperfeito": porque teima em não se encaixar no modelo matemático que ele deveria seguir. Em vez de se adequar o modelo às particularidades do objeto estudado, força-se o objeto a se conformar a um modelo axiomático e matematizado idealizado como avalorativo e por isso mesmo tido como verdadeiro.

A maioria dos axiomas do mainstream simplesmente não podem ser testados, devido à premissa do "tudo o mais constante": quando o resultado não sai como o esperado, sempre é possível argumentar que essa premissa foi quebrada sem que o observador percebesse. Como é sabido, uma hipótese que não pode ser testada não é uma hipótese científica.

O fato é que concorrência perfeita não existe. Trata-se do "tipo exato" de Menger. A ortodoxia, porém, age como se esse fosse o "tipo real"; o mito é proclamado verdade terrena. E mesmo no domínio da teoria, a concorrência perfeita mostra-se uma categoria vazia na sua auto-contradição:

(...) se adotarmos a idéia de que a concorrência é um processo de disputa entre diferentes produtores/vendedores, nele necessariamente o poder monopólico se faz presente, mesmo que de modo parcial e temporário. Não pode haver disputa ente iguais, entre clones. Se a homogeneidade é absoluta, qualquer escolha de um produto ou seu ofertante só pode ser aleatória. (POSSAS, p.15)

Do ponto de vista da dialética marxista, a matematização e o quantitativismo dominantes no mainstream econômico não são capazes de transpassar o mundo aparente e reificado da factualidade cotidiana a-histórica: trata-se de uma falsa objetividade, que se restringe aos aspectos meramente aparentes e quantificáveis da realidade, aos dados mais flagrantes e numéricos, supondo, com isso, que assim vê objetivamente a realidade. O método dialético, ao contrário, propõem-se a liberar os fatos

(...) de sua aparência fetichista, de sua pseudoconcreticidade, compreende-os em sua condição de fatos mediatizados pela estrutura social, penetra no núcleo oculto neles e cria conceitos que correspondem precisamente a esse núcleo [da minha parte eu não acredito que qualquer conceito seja capaz de "corresponder precisamente" ao seu referente]. (...) Os fatos da vida social (...) tornam-se a fonte de um conhecimento mais profundo, contanto que sejam inseridos na totalidade social concreta. Somente nesta inserção é que eles perdem toda pseudoconcreticidade alienada e reificada, e assumem sua justa significação. Portanto, não se trata de descrever fatos e de inseri-los em relações meramente exteriores, mas sim de verificar sua função na totalidade social, que pode ser muito diferente. (...) A totalidade concreta não é conhecida imediatamente, mas de modo mediatizado, através da destruição das formas fenomênicas reificadas e das representações fetichistas em tais formas, bem como através da sua reconstrução intelectual em determinações conceituais. O empirismo que se liga à factualidade dos fatos deixa os próprios fatos em seu isolamento e em sua abstração, e busca quando muito estabelecer entre eles conexões meramente derivadas (abstratas relações supra-históricas), embora continuem a alimentar a ilusão de representar o máximo de concreticidade. Ao contrário, ele está mais do que nunca distante da totalidade concreta, já que estabelece apenas relações exteriores e causais entre fenômenos que, na totalidade concreta, estão unidos de modo funcional e orgânico. (SOCHOR; WILET; et al, 1987, p. 25-27)

As teorias ideológicas do mainstream econômico se dizem científicas e ignoram a dimensão política da sociedade achando assim que com isso estão apreendendo de forma mais completa e exata a realidade - amputam ontologicamente o indivíduo e a sociedade e acreditam que com isso são imparciais e avalorativas, quando esta suposta virtude científica está justamente a serviço dos interesses políticos e econômicos da burguesia e, portanto, do capital.

Qualquer discussão ocasional entre representantes da ortodoxia e da heterodoxia termina em conflitos insolúveis. A acusação de misturar ciência e ideologia é recíproca (embora cada lado tenha um conceito de ideologia diferente - como, em geral, de todos os outros referentes).

Poder-se-ia afirmar que essas contradições insolúveis não atrapalham o caráter científico da economia, pois até a física se encontra dividida em duas grandes teorias incompatíveis (mecânica quântica e cosmologia). O argumento é falso, pois no caso da física cada teoria analisa partes distintas da realidade: a primeira o micro e a segunda o macrocosmo. Se o fato dessa duas "metades" não se encaixarem já é escandaloso, muito pior o é com a economia, ou melhor com "as economias", pois elas têm o mesmo objeto de estudo, e as teorias são fundamentalmente incompatíveis.

A indisposição ao diálogo ocorre pois, por trás do confronto teórico, há um conflito de interesses - interesses sociais, de classe, de grupos, não de indivíduos isolados.

A recusa em admitir esse interesses - principalmente por parte da corrente dominante - fragiliza o caráter científico da economia; porquanto, ocultos, esses interesses não apenas atrapalham o debate como, também, distorcem as teorias para atendê-los.

Para diminuir a ação deletéria dos interesses pessoais e de classe, e assim aprimorar o caráter científico da economia, os economistas deveriam explicitar os seus interesses, e não escondê-los hipocritamente atrás de um pseudopositivismo.

Esse pensamento, em confronto com a realidade, soa muito ingênuo, uma vez que a observação da realidade demonstra que o objetivo principal das teorias é justamento atender a esses interesses, e não descrever imparcialmente a realidade, suposta tarefa de uma ciência.

Os pensadores heterodoxos, em geral, até admitem seus interesses com relativa facilidade, principalmente os marxistas (e isso já em Marx). A maior dificuldade está nos representantes da ortodoxia, os quais têm seus interesses plenamente atendidos por essa teoria "avalorativa" e não ganham nada em admiti-lo. Quando se entra em contato com as idéias desses últimos, nunca se sabe até qual ponto eles realmente acreditam no que afirmam e a partir de qual passam a mentir conscientemente.


Referências:


COMPARATO, F.K. Crônica Machadiana, em: Jornal Folha de São Paulo, 13/02/05, página A3.

COHN, G. Crítica e resignação: fundamentos da sociologia de Max Weber. São Paulo: T.A. Queiroz, 1979.

FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. 32 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005.

NAPOLEONI, C. O pensamento econômico do século XX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

NETTO. A.D. Urnas civilizatórias, em: Revista Carta Capital, número 327, página 16.

POSSAS, S. Concorrência e inovação, em: PELAEZ, V.; SZMRECSANYI, T. Economia da inovação tecnológica. São Paulo: Hucitec, 2006.

SOCHOR, L; WILET, J.; STRADA, V. et al. História do marxismo: o marxismo na época da terceira internacional: problemas da cultura e da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.





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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.

2 comentários:

Silas disse...

Acho que essa questão pode ser vista de outra perspectiva.

Além do texto acerca do leito de procusto, escrevi outro que tem certa relação com o assunto (não é necessário ler esse texto para entender o comentário).

http://insilasbrain.blogspot.com/2009/08/sobre-psicologia-como-ciencia-moderna.html

Logo no final, você descreve uma visão claramente extrovertida: quer dizer que há interesses externos na formulação dessas premissas.

Só que o mesmo acontece em psicologia e não vejo como isso poderia ser lucrativo.

Na verdade, penso que esse raciocínio que você cita tem origem num tipo psicológico específico. O tipo que sempre insiste em dar um caráter exato e "matemático" a todas as coisas.

Segundo a tipologia Junguiana, esse seria o tipo de pensamento com sensasão introvertida.

Noutras palavras, enquanto introvertido é natural que ele esteja voltado pra dentro de si e que, assim, esteja propenso a projetar essa imagem interna para o mundo.

Como é do tipo pensamento, essas imagens são projetadas através da racionalização.

E já que é do tipo sensação, tudo deve ser sempre simplificado, e essa atitude é claramente um paralelo com o "pressuposto da simplicidade". De um modo geral, o tipo sensação é mais hábil com questões práticas. Como a exatidão é uma forma prática de se pensar e ele é introvertido racional, então ele projeta isso na realidade sem nenhuma preocupação.
E provavelmente estará sempre procurando racionalizações que possam legitimar suas premissas.

Poderíamos colocar, para além disso, o interesse: eles formulam tais teorias e são alimentados pelo poder dominante. Se assim não fosse, provavelmente não teriam lugar no saber social (e, no entanto, os comportamentalistas se mantêm firmes e convictos até hoje).

Nesse sentido, a distorção teria origem psicológica natural e esse fenômeno estaria sendo efetivamente utilizado, pois é conveniente.

Duan Conrado Castro disse...

Ah, sim...Vemos que há uma sobreposição de fatores determinantes...Primeiramente o indivíduo defende o próprio ego, depois ele pode defender uma causa política (que em última instância seria a favor ou contra o poder vigente). Também pode ocorrer de ele já estar tão "escravo" de um poder político que é forçado, pela necessidade do trabalhador assalariado que é, a depor contra si mesmo. Aqui o duplipensar é sempre bem-vindo.

Gente como Schopenhauer e Nietzsche se vangloria de suas filosofias não se prestarem aos interesses políticos de qualquer grupo que seja, enquanto o legado de Marx é permanentemente retrabalhado principalmente devido às suas implicações políticas.

Seja como for, suas considerações sobre Jung despertaram o meu interesse de um dia, se eu viver o suficiente, eu estudar a obra dele e seus desdobramentos. Vou colocá-lo na "pilha de leitura".