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§ 89
3.5. Possessões demoníacas
A igreja pentecostal, por definição, é aquela na qual o Espírito Santo é tão ou mais adorado do que as outras duas pessoas da trindade. É praxe nessas seitas o chamado “batismo com o Espírito Santo”. Esse batismo ocorre, afirmam os pentecostais (baseados no livro bíblico de Atos), quando o Espírito Santo se introduz no “coração” (seja lá o que isso for...) da pessoa. Esse batismo é concebido como um passo essencial e, na prática, obrigatório como requisito para a salvação do crente (é até compreensível que Jesus salve alguém que o aceitou como seu salvador no leito de morte; mas se o fiel, depois de meses, e mesmo anos, freqüentando a igreja ainda não foi batizado pelo Espírito Santo, isso é um sinal de que ele ainda não está salvo, de que ele não reconheceu “de verdade” que é um pecador e que somente Jesus pode lhe salvar de si mesmo). Desta maneira, há dois batismos no pentecostalismo: nas águas e com o Espírito Santo; nenhum deles é requisito para a salvação, embora, na prática sejam obrigatórios para o fiel que quer simbolizar seu pacto definitivo com Jesus.
Outro fenômeno de praxe é o chamado “endemoniamento”. Como já dito, nessas igrejas há a crença de que demônios penetram nos corpos dos pecadores e que por meio dessa operação podem exercer fortes controles sobre o pecador (que no fim se torna uma marionete). O “endemoniamento” propriamente dito se dá quando o demônio invasor supostamente se expressa mediante o corpo do possuído (não raro fazendo uso do aparelho vocal da vítima para “dialogar” com a autoridade religiosa que tenta expulsa-lo); essa cena pode ser assistida tipicamente durante as seções de “libertação” (cujo objeto é justamente o exorcismo desses demônios), especificamente quando o suposto demônio se recusa a sair, não obstante as ordens proferidas pela autoridade religiosa (a dificuldade para se exorcizar um demônio é diretamente proporcional à força dele, bem como de quanto a vítima é uma pecadora: quanto mais pura a pessoa, menos “portas espirituais” são abertas aos demônios).
Mediante observações in loco dos dois fenômenos, é fácil perceber que ambos possuem gênese psicológica. Após estudar esses fenômenos, encontrei um conjunto de fatores responsáveis pelo seu desencadeamento. Denominei boçalmente esses fatores de “Cenário Desencadeador das Instabilidades Psicológicas Latentes” (CDIPL). Os principais fatores constitutivos do CDIPL são: “pessoas frágeis” + “ignorância” + “apelo emocional” + “exemplo dado” + “concepção materna de deus” + “músicas”. Vamos ver cada um deles mais de perto.
Pessoas frágeis. O conhecimento nulo de psicologia que estas pessoas possuem e as suas dificuldades em aprender com os seus erros e com os erros alheios, além da propensão para criar conflitos por pouca coisa (talvez inspirados pelas novelas às quais assistem todo maldito dia), fragilizam sua capacidade de se relacionar com o mundo, com seus familiares e consigo mesmas. Também há outros problemas, mais comuns nas classes menos favorecidas, como o alcoolismo e o desemprego. O nível de mediocridade e mesquinhez chega ao tragicômico. Tudo isso recrudesce uma configuração mental incapaz de solucionar conflitos – muitos patéticos e criados irracionalmente –, os quais vão se amontoando e desencadeando fortes mágoas da família e da sociedade. Até o ponto de saturação.
Ignorância. Esse fator já foi desenvolvido nos capítulos anteriores.
Apelo emocional. Essa ferramenta é usada juntamente com a música. Trata-se do fio condutor emocional da “seção de libertação”. O pastor vai tocando habilmente nos centros de fragilidades das pessoas (todos estereotipados até a caricaturização burlesca), vai fazendo um discurso crescentemente dramático e choroso (e é acompanhado pela música nesse seu progresso até o clímax); ao fim, termina chorando ou “falando em línguas” (glossolalia), ou ambos atos. Tudo isso incita o conflito e o sofrimento psicológicos no fiel, os quais podem se manifestar na triste forma de surto psicológico e de ações defensivas desesperadas – visto que a pessoa reconhece,nem que subconscientemente, a autoridade religiosa como agressora e causadora do presente sofrimento (não como real responsável, mas sim como o agente que trouxe ao lume aquelas amarguras outrora convenientemente esquecidas).
Música. A música é a linguagem da emoção, e, não surpreendentemente, as músicas da “seção de libertação” são todas chorosas e transmitem um forte apelo emocional de comoção e contrição; elas irradiam emoções dramáticas (mas nunca chegam ao trágico) e algumas, inclusive, assemelha-se às músicas new age, tão vilipendiadas pelos próprios pentecostais.
Exemplo dado. Aqueles que vão aos cultos sabem o que lá ocorrerá (embora o efeito surpresa muitas vezes se mostre útil para fisgar novo fiéis), e seu subconsciente já está pronto para o que ali se dará. Eles sabem que vão se emocionar, que terão que lutar com a culpa, e que todos os tristes fenômenos de praxe se repetirão. Além disso, podem ser seguidos os exemplos do próprio pastor e dos fiéis mais antigos. Some-se a isso a forte tendência que pessoas passivas têm, principalmente em um contexto grupal (como o da igreja), de imitar os membros mais proeminentes do grupo para tentar assim serem melhor aceitas por ele.
Concepção materna de deus. O divino é concebido maternamente: é carinhoso, amável, entende os problemas do fiel e é capaz de corrigi-los miraculosamente (aliás, insiste-se que apenas deus – e mais ninguém – é capaz de solucionar os problemas da vida da pessoa). Não obstante isso, que se configura como um sintoma de regressão, o mesmo deus também é encarregado que trazer o castigo, e, com ele, a culpa. Os fiéis se relacionam esquizofrenicamente com essa figura, fonte de consolo, salvação, culpa, danação, libertação da culpa, “bênçãos”, etc.
O CDIPL ajuda a perceber que tanto o “batismo com o Espírito Santo” quanto o “endemoniamento” não passam de surtos psicológicos. Uma cuidadosa observação in loco permite constatar o óbvio: não há nada de fantástico nesses dois fenômenos; após a ação do CDIPL, esses fenômenos manifestam-se como sintomas reativos. Eu já tive a “oportunidade” de presenciar centenas de pessoas nesse estado simultaneamente (aliás, todas as pessoas, menos eu, estavam nesse estado, inclusive todas as “autoridades”).
Normalmente, nos casos de “endemoniamento” nos quais o suposto espírito toma conta do aparelho vocal do pecador, este se restringe, em geral, a gemer ou gritar (respondendo ás ordens do exorcista) “não saio”. Mas será que realmente é um demônio respondendo? Ou será a própria pessoa tentando se defender de todas as agressões psicológicas que está sofrendo e que a levaram ao estado de surto?
Agora, se essas pessoas se recusam a admitir a validade das ciências naturais, certamente não terão maiores considerações pelos argumentos engendrados pela psicologia.
Atenção: Como eu já disse no § 46, esse texto foi escrito em 2002, quando eu tinha 15 anos. Muito do que está escrito aqui já não representa com exatidão a minha atual forma de pensar. Porém creio que o texto ainda pode ser útil para aqueles que atualmente vivem situações (de apostasia) semelhantes às que eu vivi à época em que escrevi isso.
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Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.
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