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P.(M.)S.
[Obs.: O presente texto trabalha com várias cores não por motivo estético de gosto duvidoso, mas para facilitar a leitura de suas muitas orações intercaladas. Por isso, pessoas daltônicas poderão ter dificuldades adicionais para lê-lo.]
A quem possa interessar nesse panóptico planetário conhecido por – “Terra”.
Apocalipse, do grego αποκάλυψης: "Revelação".
“Do espaço, [a Terra] parece uma abstração, um truque mágico. E desta distância nem se imagina que possa estar viva. Apareceu primeiro no mar, há quase quatro bilhões de anos, na forma de vida de uma única célula. Em uma explosão de vida ao longo de milhões de anos, os primeiros organismos multicelulares começaram a se multiplicar. E então pararam. 440 milhões de anos atrás, uma grande extinção em massa matou quase todas as espécies no planeta, deixando os vastos oceanos mortos e vazios. Devagar, as plantas começaram a evoluir. Então os insetos. Para desaparecerem na segunda extinção em massa na Terra. O ciclo repetiu-se de novo, e de novo. Répteis emergindo do oceano, apenas para serem extintos. E então os dinossauros lutando pela vida com os primeiros pássaros, com peixes e plantas. Sua dizimação: a quarta e a quinta grandes extinções na Terra. Há apenas 100 mil anos apareceu o Homo sapiens. O homem: das pinturas nas cavernas à Bíblia, de Colombo à Apollo 11, temos sido uma força incansável sobre a Terra e além dela, catalogando o mundo natural que se nos revela. Crescendo para uma população de mais de cinco bilhões de pessoas [isso em 1999], todos descendentes daquela célula única original, aquela primeira centelha de vida. Mas apesar de todo nosso conhecimento, o que ninguém sabe dizer ao certo é o que, ou quem, originou aquela primeira centelha. Há um plano, um propósito, ou uma razão para a nossa existência? Nós cairemos, como os que vieram antes de nós, no esquecimento? Na sexta extinção que os cientistas já avisaram estar em progresso? Ou o mistério será revelado através de um sinal? Um símbolo? Uma revelação?"
(monólogo de Dana Scully, no início do episódio Biogesis, no. 139, T6-E22., de Arquivo X, escrito por Chris Carter e Frank Spotnitz)
"Ninguém encontrará em minha obra vantagem alguma, exceto aquele que procura a verdade."
(Schopenhauer)
"Porquanto não há nada oculto que não venha a ser revelado, e nada escondido que não venha a ser conhecido e trazido à luz."
(Jesus, em Evangelho de Lucas, 8:17)
"De erro em erro, vai-se descobrindo toda a verdade."
(Freud)
"A verdade é singular. Suas 'versões' são inverdades." (Sonmi~451, em Cloud Atlas, de David Mitchell)
"Apenas que... busquem conhecimento."
(E.T. Bilu)
"O Caos é uma ordem por decifrar." (Alguém em O homem duplicado, de Saramago)
"A manifestação da Filosofia não é o bom senso, mas o paradoxo. O paradoxo é o pathos ou a paixão da Filosofia."
(Deleuze, em Diferença e repetição)
Apocalipse, do grego αποκάλυψης: "Revelação".
“Do espaço, [a Terra] parece uma abstração, um truque mágico. E desta distância nem se imagina que possa estar viva. Apareceu primeiro no mar, há quase quatro bilhões de anos, na forma de vida de uma única célula. Em uma explosão de vida ao longo de milhões de anos, os primeiros organismos multicelulares começaram a se multiplicar. E então pararam. 440 milhões de anos atrás, uma grande extinção em massa matou quase todas as espécies no planeta, deixando os vastos oceanos mortos e vazios. Devagar, as plantas começaram a evoluir. Então os insetos. Para desaparecerem na segunda extinção em massa na Terra. O ciclo repetiu-se de novo, e de novo. Répteis emergindo do oceano, apenas para serem extintos. E então os dinossauros lutando pela vida com os primeiros pássaros, com peixes e plantas. Sua dizimação: a quarta e a quinta grandes extinções na Terra. Há apenas 100 mil anos apareceu o Homo sapiens. O homem: das pinturas nas cavernas à Bíblia, de Colombo à Apollo 11, temos sido uma força incansável sobre a Terra e além dela, catalogando o mundo natural que se nos revela. Crescendo para uma população de mais de cinco bilhões de pessoas [isso em 1999], todos descendentes daquela célula única original, aquela primeira centelha de vida. Mas apesar de todo nosso conhecimento, o que ninguém sabe dizer ao certo é o que, ou quem, originou aquela primeira centelha. Há um plano, um propósito, ou uma razão para a nossa existência? Nós cairemos, como os que vieram antes de nós, no esquecimento? Na sexta extinção que os cientistas já avisaram estar em progresso? Ou o mistério será revelado através de um sinal? Um símbolo? Uma revelação?"
(monólogo de Dana Scully, no início do episódio Biogesis, no. 139, T6-E22., de Arquivo X, escrito por Chris Carter e Frank Spotnitz)
"Ninguém encontrará em minha obra vantagem alguma, exceto aquele que procura a verdade."
(Schopenhauer)
"Porquanto não há nada oculto que não venha a ser revelado, e nada escondido que não venha a ser conhecido e trazido à luz."
(Jesus, em Evangelho de Lucas, 8:17)
"De erro em erro, vai-se descobrindo toda a verdade."
(Freud)
"A verdade é singular. Suas 'versões' são inverdades." (Sonmi~451, em Cloud Atlas, de David Mitchell)
"Apenas que... busquem conhecimento."
(E.T. Bilu)
"O Caos é uma ordem por decifrar." (Alguém em O homem duplicado, de Saramago)
"A manifestação da Filosofia não é o bom senso, mas o paradoxo. O paradoxo é o pathos ou a paixão da Filosofia."
(Deleuze, em Diferença e repetição)
"Não temos escolha a não ser entre verdades irrespiráveis e um logro salutar. Somente as verdades que não nos permitem viver merecem o nome de verdades. Superiores às exigências do vivente, não condescendem a ser nossas cúmplices. São verdades 'inumanas', verdades vertiginosas e que se rejeitam porque ninguém pode viver sem sustentáculos camuflados de slogan ou de deuses."
(Cioran, em Esquartejamento)
"Não há despertar de consciências sem dor. As pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo, para evitar enfrentar a sua própria alma. Ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de luz, mas sim por tornar consciente a escuridão."
(Jung)
"Acabemos com esse palavrório transcendental quando a coisa toda está clara como um soco no queixo."
(Wittgentein)
"Não há despertar de consciências sem dor. As pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo, para evitar enfrentar a sua própria alma. Ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de luz, mas sim por tornar consciente a escuridão."
(Jung)
"Acabemos com esse palavrório transcendental quando a coisa toda está clara como um soco no queixo."
(Wittgentein)
I - Acerca do prolegômeno:
o papel fundamental do ceticismo para o esclarecimento
o papel fundamental do ceticismo para o esclarecimento
"A crença é a morte da inteligência."
(Robert Anton Wilson)
"A objetividade é a ilusão de que as observações poderiam ser efetuadas sem um observador."
(Heins von Foerster)
"A civilização começa pelo mito e termina pela dúvida."
(Cioran)
"A objetividade é a ilusão de que as observações poderiam ser efetuadas sem um observador."
(Heins von Foerster)
"A civilização começa pelo mito e termina pela dúvida."
(Cioran)
§1
1.1 Um homem muito sábio morreu, no ápice de suas faculdades intelectuais. Chegando ao Portal da Eternidade, um anjo interpelou-o: “Alto lá, ó mortal, é preciso fazer-se merecedor para adentrar ao Paraíso”. O homem, do topo de sua sobriedade, altivamente inquiriu: “E por acaso você pode me provar que esse local aqui é realmente a antecâmara do paraíso e não apenas uma ilusão pós-morte ou mesmo um delírio de uma mente moribunda?” O anjo pareceu confuso, mas, antes que ele dissesse algo, uma voz por trás do Portal bradou: “Deixe-o entrar! Ele é um dos nossos!”
1.2 Essa é uma parábola sufista que certa vez eu escutei de um membro de um grupo Gurdjieff à época, curta, em que tentei praticar os trabalhos desse grande ocultista para “despertar”. Acabei sendo expulso (ou melhor, convidado a sair) do grupo – por suposto desrespeito à autoridade daqueles que pelo jeito já se achavam despertos. Eu nunca imaginei, porém, que o ceticismo radical (ligado não a esse cientificismo "neo-ateu", esse outro fanatismo que atualmente chamam de ceticismo, mas sim a um agnosticismo modelo, o qual, apesar de ser uma consequência da interpretação de Copenhague, já está presente nos ceticismos da antiguidade (o acadêmico e o pirrônico)) subsumido nessa parábola – ceticismo esse tão entranhado na minha idiossincrasia, e que eu nem precisei aprender em trabalho ocultista algum, mas apenas sofrendo e buscando respostas nesse vale de lágrimas que é Sansara – iria me despertar, e para uma realidade aparentemente não prevista pelos sufistas ou por Gurdjieff (ou prevista por eles sim, sei lá, pois não li os livros dessa turma aí). (1.2.1 A prática da outsiderness (enquanto recusa a inserir-se em qualquer subcultura) é consequência do ceticismo (pessimismo epistemológico) aplicado não apenas à questão epistemo-ontológica "o que é a realidade?", mas também à questão ética-existencialista-deontológica "o que fazer da vida?", ou ainda à questão prática-psicológica "focar-se na busca de quais objetos de desejo?")
1.3 O tempo que tenho é curto, então terei que ser breve e objetivo em meu relato. Desculpem-me, mas isso é o melhor que foi possível fazer, dadas as condições amplamente adversas envolvidas nesta operação.
***
II - A fuga:
acerca do meu suicídio
acerca do meu suicídio
"Toda vida é sofrimento."
(Primeira Nobre Verdade do Budismo)
"Não é Deus, mas a Dor que desfruta das vantagens da ubiquidade."
(Cioran, Silogismos da Amargura)
"Quando se é devorado por um apetite de sofrer tal que, para acabar com ele, necessitamos de milhares de existências, imaginamos bem de que inferno deve ter surgido a ideia de transmigração."
(Idem)
"O ceticismo que não contribui para a ruína da nossa saúde é apenas um exercício intelectual."
(Idem)
"Não é Deus, mas a Dor que desfruta das vantagens da ubiquidade."
(Cioran, Silogismos da Amargura)
"Quando se é devorado por um apetite de sofrer tal que, para acabar com ele, necessitamos de milhares de existências, imaginamos bem de que inferno deve ter surgido a ideia de transmigração."
(Idem)
"O ceticismo que não contribui para a ruína da nossa saúde é apenas um exercício intelectual."
(Idem)
"Após tanto saber, que perdão?"
(T. S. Eliot, Generation)
"Pouco a pouco estabelece-se a certeza da limitação do mundo."
(o protagonista anônimo de Extensão do domínio da luta (meu romance favorito), de Michel Houellebecq)
"... pois tudo quanto nasceu merece ser aniquilado;
Portanto, era melhor não ter nascido."
(Mefistófeles, em Fausto de Goethe)
"Como pode uma mulher grávida ler um jornal sem abortar imediatamente?"
(Guido Ceronetti)
"Nada do que é simplesmente dado ou do que se encontra à mão no interior do mundo serve para a angústia."
(Heidegger, em Ser e Tempo)
"Não há nas farmácias nada específico contra a existência; só pequenos remédios para os fanfarrões. Mas onde está o antídoto do desespero claro, infinitamente articulado, orgulhoso e seguro? Todos os seres são desgraçados, mas quantos o sabem? A consciência da infelicidade é uma doença grave demais para figurar em uma aritmética das agonias ou nos registros do Incurável."
(Cioran, Breviário da decomposição)
"Pensar muito sobre a morte ou sobre outros problemas perigosos é certamente dar um golpe mais ou menos mortal sobre a vida, mas não é menos verdadeiro o fato de que a mesma vida, o mesmo corpo em que tais problemas fervilham tem de ter sido previamente afetado para permitir pensamentos dessa natureza. Ninguém se suicida por causa de acontecimentos exteriores, mas devido ao seu próprio desequilíbrio interior e orgânico."
(Cioran, em Nos cumes do desespero)
"Pouco a pouco estabelece-se a certeza da limitação do mundo."
(o protagonista anônimo de Extensão do domínio da luta (meu romance favorito), de Michel Houellebecq)
"... pois tudo quanto nasceu merece ser aniquilado;
Portanto, era melhor não ter nascido."
(Mefistófeles, em Fausto de Goethe)
"Como pode uma mulher grávida ler um jornal sem abortar imediatamente?"
(Guido Ceronetti)
"Nada do que é simplesmente dado ou do que se encontra à mão no interior do mundo serve para a angústia."
(Heidegger, em Ser e Tempo)
"Não há nas farmácias nada específico contra a existência; só pequenos remédios para os fanfarrões. Mas onde está o antídoto do desespero claro, infinitamente articulado, orgulhoso e seguro? Todos os seres são desgraçados, mas quantos o sabem? A consciência da infelicidade é uma doença grave demais para figurar em uma aritmética das agonias ou nos registros do Incurável."
(Cioran, Breviário da decomposição)
"Pensar muito sobre a morte ou sobre outros problemas perigosos é certamente dar um golpe mais ou menos mortal sobre a vida, mas não é menos verdadeiro o fato de que a mesma vida, o mesmo corpo em que tais problemas fervilham tem de ter sido previamente afetado para permitir pensamentos dessa natureza. Ninguém se suicida por causa de acontecimentos exteriores, mas devido ao seu próprio desequilíbrio interior e orgânico."
(Cioran, em Nos cumes do desespero)
§2
2.1 Eu, após uma depressão que durara 18 anos (mais da metade da duração dessa minha última encarnação na Terra), e após minha decepção com as fantasias transhumanistas, finalmente, no clímax da desilusão e nos cumes do desespero, consumei o suicídio (note-se que eu não consegui cumprir as minhas intenções anti-suicidas anunciadas no capítulo final (§ 118) do meu blog – Outsider à Beira do Abismo) no dia 18/12/2015. Prostrado ao chão do meu quarto, eu apaguei enquanto assistia à movimentação dos maconheiros dos meus colegas de república no aguardo da ambulância para tentarem me salvar (grato pela consideração, meninos!).
2.2 Nunca estive tão calmo – ateu materialista, o que me esperava era o Nada. (2.2.1 "Somente a aspiração ao vazio nos preserva desse exercício aviltante que é o ato de crer", Cioran.)
2.3 Ou não.
2.4 Meu cérebro, que outrora houvera virado pudim, regenerou-se anos antes do meu suicídio; após essa regeneração, meu conectoma complexificou-se e eu, tal qual o protagonista da parábola mencionada há pouco, morri no ápice das minhas faculdades mentais (a vida não sobrevive à lucidez... por isso o Ser, para sobreviver, necessita da inconsciência e do esquecimento, como veremos melhor ao longo dessa carta). O estado de nossa consciência no momento em que morremos – construído cumulativamente ao longo de todo o processo (cármico, de escolhas) de nossa respectiva encarnação – é a variável-chave que determina as decisões que tomamos no além, e, portanto, determina os destinos de nossos espíritos.
2.5 Em virtude desse detalhe cármico, foi, enfim, recompensada a minha obsessão pela verdade e pelos limites da realidade, obsessão que transformou a minha (última) vida (e a minha consciência) em uma permanente corrida contra o tempo em busca da metanarrativa final (o que, por sua vez, atrapalhou enormemente a minha inserção "produtiva" na sociedade, pois eregir em absoluto o conhecimento é abdicar da própria aptidão de cultuar a insignificância, e assim é condenar-se à evidência da irrealidade, do nonsense, do abismo, do exuberante vazio, do absurdo, do caos (o qual quando nos favorece chamamos de "sorte" e quando nos desfavorece chamamos de "azar" – e isso quando alguns, em flagrante delírio, não ousam entrever a ação do além, do divino hipostasiado, nessas lacunas), dos riscos, da incerteza, do desconhecido, do mal-estar e do nada que a tudo permeiam: não se chega ao topo do mundo impunemente). O que se segue é uma descrição do que eu descobri-e-decidi-e-descobri-por-ter-decidido no devir do post mortem, bem como da ligação oculta entre o outro lado e a vida aí na Terra. (2.5.1 Desencarnado, eu não teria tomado as decisões necessárias à minha emancipação do látego terrestre se meu caráter não tivesse sido talhado nas desgraças dessa minha última vida (e nas de vidas anteriores, sem as quais eu não teria o temperamento que tive nessa derradeira encarnação), as quais, ao final, revelaram-se uma bem-aventurança: poucos multivíduos da minha geração foram tão privilegiados como eu fui.)
2.4 Meu cérebro, que outrora houvera virado pudim, regenerou-se anos antes do meu suicídio; após essa regeneração, meu conectoma complexificou-se e eu, tal qual o protagonista da parábola mencionada há pouco, morri no ápice das minhas faculdades mentais (a vida não sobrevive à lucidez... por isso o Ser, para sobreviver, necessita da inconsciência e do esquecimento, como veremos melhor ao longo dessa carta). O estado de nossa consciência no momento em que morremos – construído cumulativamente ao longo de todo o processo (cármico, de escolhas) de nossa respectiva encarnação – é a variável-chave que determina as decisões que tomamos no além, e, portanto, determina os destinos de nossos espíritos.
2.5 Em virtude desse detalhe cármico, foi, enfim, recompensada a minha obsessão pela verdade e pelos limites da realidade, obsessão que transformou a minha (última) vida (e a minha consciência) em uma permanente corrida contra o tempo em busca da metanarrativa final (o que, por sua vez, atrapalhou enormemente a minha inserção "produtiva" na sociedade, pois eregir em absoluto o conhecimento é abdicar da própria aptidão de cultuar a insignificância, e assim é condenar-se à evidência da irrealidade, do nonsense, do abismo, do exuberante vazio, do absurdo, do caos (o qual quando nos favorece chamamos de "sorte" e quando nos desfavorece chamamos de "azar" – e isso quando alguns, em flagrante delírio, não ousam entrever a ação do além, do divino hipostasiado, nessas lacunas), dos riscos, da incerteza, do desconhecido, do mal-estar e do nada que a tudo permeiam: não se chega ao topo do mundo impunemente). O que se segue é uma descrição do que eu descobri-e-decidi-e-descobri-por-ter-decidido no devir do post mortem, bem como da ligação oculta entre o outro lado e a vida aí na Terra. (2.5.1 Desencarnado, eu não teria tomado as decisões necessárias à minha emancipação do látego terrestre se meu caráter não tivesse sido talhado nas desgraças dessa minha última vida (e nas de vidas anteriores, sem as quais eu não teria o temperamento que tive nessa derradeira encarnação), as quais, ao final, revelaram-se uma bem-aventurança: poucos multivíduos da minha geração foram tão privilegiados como eu fui.)
2.6 Preparai-vos, gentes!
***
III - Crônicas do umbral (I):
acerca da minha passagem pelo "vale dos suicidas"
acerca da minha passagem pelo "vale dos suicidas"
"Há de provar o adágio de que,
Montado o mendigo, fará o cavalo galopar até morrer."
(Em Henrique VI, de Shakespeare)
"Deixai toda esperança, ó vós que entrais!"
"Deixai toda esperança, ó vós que entrais!"
(Inscrição do portal do Inferno segundo Dante Alighieri)
"Se é e se permanece escravo enquanto não se dá a cura da mania de ter esperança."
(Cioran)
"Se é e se permanece escravo enquanto não se dá a cura da mania de ter esperança."
(Cioran)
§3
3.1 Eu despertei e percebi-me eu um local sombrio, fúnebre, o qual parecia um pântano. Demorei para ganhar um mínimo de consciência; quando eu o consegui, percebi que estava numa espécie de local que os espíritas chamam usualmente de “vale dos suicidas”. Embora eu até tenha ficado curioso por “haver um além”, percebi que aquele ambiente não trazia “boas energias”. Fazia bastante sentido, de um ponto de vista moralista (com ou sem a ajuda de pseudofísica quântica), que eu fosse parar num lugar desses. Não que eu fosse moralista – porém eu era capaz de entender a lógica interna do discurso moralista, com o qual não concordava (pois, afinal, ter uma lógica interna é necessário, entretanto não é o suficiente epistemologicamente, né?).
3.2 Eu era, como já mencionado, "ateu materialista". Contudo também tinha um pé no (pós-)estruturalismo. E outro no ceticismo. E outro no niilismo (em particular na versão deste elaborada por Cioran, com a qual eu cogitava fugir da Filosofia pela porta dos fundos: isto é, incendiando-a). E outro no cinismo. E mais outro pé, até, no positivismo lógico. Além, é claro, da minha afiliação ao materialismo histórico dialético (ver item 8.4.5.2) em particular e ao esquerdismo em geral. No fundo eu, que estava ontologicamente mais para um perspectivismo probabilístico*, era uma espécie de polvo discordianista – entretanto não era praticante dessa religião (o Discordianismo, esta corruptela do Zen, era minha religião favorita, todavia eu era cético demais para conferir a essa metanarrativa o protagonismo no meu mapeamento cognitivo). Depressivo, embora com um bom-humor que me dava uma disposição do tipo “(pseudo-)agente do caos tocando o foda-se”, eu acabei me matando porque – em depressão profunda – os custos da vida não cobriam seus benefícios. Foi uma decisão racional e pragmática – estoica, inclusive. Diria até – ou melhor, digo – que foi um ato de amor próprio, de cuidado de si. (*3.2.1 O perspectivismo probabilístico não descarta os modelos, mas busca, para fugir simultaneamente do dogmatismo e do relativismo, hierarquizá-los em termos da estimativa de suas respectivas probabilidades – estimativa essa que, embora guiada pela Navalha de Occam, invariavelmente tem um componente subjetivo/idiossincrásico: no meu caso em particular esse é representado principalmente pelo fascínio pelo abismo (e pela bela vista que se tem à sua beira), embora mal soubesse eu que é decretada a condenação à lucidez** justamente para aqueles que não recusam o pior. **3.2.1.1 "Consciência não é lucidez. A lucidez, monopólio do homem [não exatamente, rs], representa o final do processo de ruptura entre o espírito e o mundo; é necessariamente consciência da consciência e se nos distinguimos dos animais é somente graças a ela, ou por sua culpa" (Cioran). A lucidez é a doença do multivíduo acordado das ilusões, chafurdado na hipertrofia da consciência.)
3.3 Continuei a perceber melhor o local aonde eu estava. A "energia ruim" emanava de muitos "seres" que me rodeavam – “espíritos desencarnados” como eu, provavelmente. Eles estavam desesperados, queriam ser perdoados e queriam voltar para o mundo maravilhoso do qual eu me evadi voluntariamente (e, pelo jeito, a maioria deles também, se é que eram pessoas “reais” e suicidas mesmo). Rogavam por “salvação” – a “Deus” (seja lá o que eles pensem que essas palavras signifiquem). O pavor que deles irradiava era contagiante. Por uns instantes eu também o sentia, mas ainda estava querendo entender qual era a razão daquele desespero. Afinal, o problema era ficar naquele lugar para sempre? Isso era tão ruim? Para mim, que podia passar um dia inteiro olhando para um ponto desenhado na parede, era até tolerável.
3.4 Por fim, eu percebi o que "de fato" esse local era (ou emulava ser): era uma espécie de funil gigantesco que levava a algo semelhante a um “triturador de espíritos”: não me solicitem para explicar, mas me ficou clara (ou me pareceu ficar) a realidade daquele local: todos nós ali iríamos ter o que afinal supostamente queríamos (ou pelo menos eu queria) quando nos matamos: a extinção. Então, por que todo aquele suplício? Por que todo aquele desespero? Francamente, não entendi. As pessoas não sabem mesmo o que querem... Porém eu sabia. E deixei-me levar. Demorou um bom tempo – horas, dias, semanas?, difícil saber ao certo, pois perdi a noção do tempo – até que eu finalmente fui “triturado” e, tal qual um pintinho reprovado no teste de qualidade para virar peru de Natal, alcancei o que eu queria: o Nirvana.
***
IV - Crônicas do umbral (II):
acerca do meu passeio pelo "paraíso"
(cruzando o Rubicão)
acerca do meu passeio pelo "paraíso"
(cruzando o Rubicão)
"Vivemos nesse que é o melhor dos mundos possíveis."
"Sessenta e duas mil repetições fazem uma verdade."
(Bernard Marx, em Admirável Mundo Novo, cap. III)
"Nunca é alto o preço que a pagar pelo privilégio de pertencer a si mesmo."
(Nietzsche)
"Nunca é alto o preço que a pagar pelo privilégio de pertencer a si mesmo."
(Nietzsche)
"Desde que me entendo por gente, acho-me em oposição ao mundo. Em minha adolescência, isso causava-me medo, pois acreditava que a razão estava com a maioria. Foi Helvécio o primeiro que me tirou desse engano, o primeiro que me ergueu. Depois disso, a cada novo conflito, o mundo perdia e eu ganhava. Quando atingi os quarenta anos de idade, tive a impressão de haver ganho a demanda contra o mundo em última instância, e encontrei-me então elevado a um posto ao qual nem sequer havia ousado aspirar. Em troca, a vida tornava-se cada vez mais monótona e vazia."
(Schopenhauer)
§4
4.1 “Rá! Parabénsss! Você passsssou no teste!”, ouvi eu uma voz “angelical” dizer-me (embora anjos geralmente não iniciem o contato de forma tão descontraída, imagino).
4.2 Eu me percebi em um mundo lindo, colorido, em Full HD – melhor do que Avatar no IMAX 3D no final de 2009. Melhor porque era uma realidade de imersão, e ainda por cima sinestésica: os sentidos se misturavam, as cores viravam sons que viravam gostos e toques aveludados – mas, apesar dessa novidade sensorial (a qual, por esse meu relato, poderia parecer-lhes a princípio assustadora), era “tudo muito bom” (como diria o demiurgo Jeová se auto-felicitando pelo mundo de merda que ele fez) e transbordava um amor infinito que a tudo enredava.
4.3 O "anjo" brincalhão levou-me por um passeio incrível pelo “paraíso” (ou era isso que deveria parecer). Eu me comovi, confesso – todavia não o suficiente para calar meu senso crítico cosmológico. Enquanto meus “pluri-sentidos” eram bombardeados por uma plêiade sensorial, o anjo passava-me, telepaticamente, lições sobre “A Verdade”. Sim, com "V" maiúsculo! Ohhhh...
4.4 Ou não.
4.5 O problema dessas lições era-me bem palpável: sabem aquele blá-blá-blá teológico-esotérico de que “o mundo é bom”, “os bons são a maioria”, “o universo conspira ao nosso favor”, existe “a lei da atração” e “o poder do pensamento positivo”, “Deus não é responsável pelo mal do mundo”, “existe uma teleologia moral que garante com que tudo se encaminhe para o melhor possível”, etc.? Pois então, era tipo isso – esses discursos toscos de uma indigência ontológica escandalosa. (4.5.1 "É difícil, é mesmo impossível crer que o deus bom, o 'Pai', tenha se envolvido no escândalo da criação. Tudo leva a crer que não tenha com ela relação alguma, que seja a obra de um deus sem escrúpulos, de um deus tarado. A bondade não cria: falta-lhe imaginação; mas cumpre havê-la para fabricar um mundo, por mais malfeito que seja. É, em última instância, da mescla de bondade e de maldade que pode surgir um ato ou uma obra. Ou um universo. Partindo do nosso, em todo caso, é muito mais fácil remontar a um deus suspeito que a um deus honorável." (Cioran, em O funesto demiurgo))
4.6 A dificuldade em avaliar a passagem do tempo também estava presente aqui: é provável que todo o processo tenha durado dias, embora eu não possa estimar ao certo. Mas olhem, eu não sei como as pessoas caem nisso, pois eu não consegui evitar levar-me naturalmente ao ceticismo. Por mais que tudo ali fosse lindo, “hiper-real” e ainda por cima amoroso, isso não mudava o fato de que aquele discurso era inconsistente – era papo furado. Pareceu-me que estavam tentando jogar areia nos meus olhos. Acontece que eu sou macaco velho nesse jogo da estetização e do sentimentalismo como artifícios para tentar calar o senso-crítico.
4.6 A dificuldade em avaliar a passagem do tempo também estava presente aqui: é provável que todo o processo tenha durado dias, embora eu não possa estimar ao certo. Mas olhem, eu não sei como as pessoas caem nisso, pois eu não consegui evitar levar-me naturalmente ao ceticismo. Por mais que tudo ali fosse lindo, “hiper-real” e ainda por cima amoroso, isso não mudava o fato de que aquele discurso era inconsistente – era papo furado. Pareceu-me que estavam tentando jogar areia nos meus olhos. Acontece que eu sou macaco velho nesse jogo da estetização e do sentimentalismo como artifícios para tentar calar o senso-crítico.
4.7 Quando eu comecei a questionar toda essa ladainha, o "anjo", num misto de surpresa e irritação, tentou sofismar para cima de mim, até que, não muito tempo depois, admitiu que de fato era tudo papo furado e asseverou: “Você quer saber A Verdade? Ah, eu duvido da sua capacidade de suportar A Verdade... Se você realmente quer sabê-la, não poderá voltar à Terra nunca mais – nem na sua encarnação atual, nem na próxima e nem desencarnado!”
4.8 “Gente, quantas vezes eu tenho que dizer que não quero voltar para aquela merda de planeta! E reencarnar de novo... ai, que preguiça de sofrer um monte de novos traumas! Não, obrigado! Francamente...”
4.9 “Duan, Duan, Duan... você não precisa reencarnar. Você ainda não morreu! Estás há 5 dias na UTI em coma, seu bobíssimo! Seus parentes e seu ex-namorado – que ainda te ama! – estão torcendo para você acordar. Até orações estão rolando... Mas que ateus posers eles são, né? Que tal uma ressurreição sua como presente de Natal para eles? Hahaha.”
4.10 Oh sim! Eu estava tendo uma EQM (Experiência de Quase Morte)! Legal, legal... finalmente venho tendo dias agitados nessa minha (ex-)vida! Mas é sério, tentarão chantagear-me novamente com esse papo de voltar à vida da qual eu saí voluntária, sóbria e racionalmente? Seja lá o que fosse "A Verdade", estavam tentando escondê-la de mim.
4.11 “Verdade, Verdade, Verdade: só isso é o que interessa! Essa é a única causa que tem minha total adesão. Não quero voltar para Terra, droga! A humanidade fracassou, e aquele mundo já está tão evidentemente condenado...”
4.12 "Que é isso Duan... Você já sofreu demais pela Verdade e pelo mundo... Você não é Hamlet, nem o Buda. Que tal relaxar um pouco? Ninguém merece carregar um fardo desses, ainda mais por tanto tempo, rapaz. Façamos um trato: você morre nessa sua vida atual e nós lhe daremos uma nova vida bem mimada e confortável: vai nascer como um caçula de uma família rica, liberal e culta, belo e de herança salutar (tanto biológica quanto financeira), no primeiro mundo, etc. Podemos customizar segundo sua vontade! Dentro de certos limites, evidentemente. Quem luta por todos também merece descansar de vez em quando, não é mesmo?"
4.13 "Concordo que já sofri demais por aquele mundo insipido – o qual não merece mais o meu esforço. Não quero voltar a ele. E do jeito como as coisas vão por lá, muito em breve a paz não será mais uma opção a ninguém que estiver naquele planeta, nem mesmo a preço de qualquer ilusão. Mas eu não acredito que sofri o suficiente pela Verdade – ao menos não pela que é possivelmente acessível além da Terra."
4.11 “Verdade, Verdade, Verdade: só isso é o que interessa! Essa é a única causa que tem minha total adesão. Não quero voltar para Terra, droga! A humanidade fracassou, e aquele mundo já está tão evidentemente condenado...”
4.12 "Que é isso Duan... Você já sofreu demais pela Verdade e pelo mundo... Você não é Hamlet, nem o Buda. Que tal relaxar um pouco? Ninguém merece carregar um fardo desses, ainda mais por tanto tempo, rapaz. Façamos um trato: você morre nessa sua vida atual e nós lhe daremos uma nova vida bem mimada e confortável: vai nascer como um caçula de uma família rica, liberal e culta, belo e de herança salutar (tanto biológica quanto financeira), no primeiro mundo, etc. Podemos customizar segundo sua vontade! Dentro de certos limites, evidentemente. Quem luta por todos também merece descansar de vez em quando, não é mesmo?"
4.13 "Concordo que já sofri demais por aquele mundo insipido – o qual não merece mais o meu esforço. Não quero voltar a ele. E do jeito como as coisas vão por lá, muito em breve a paz não será mais uma opção a ninguém que estiver naquele planeta, nem mesmo a preço de qualquer ilusão. Mas eu não acredito que sofri o suficiente pela Verdade – ao menos não pela que é possivelmente acessível além da Terra."
4.14 Mas e por falar em verdades... como ficará a sua dissertação sobre a Ontologia da fofura? E que outro sodomita vai redigir os três volumes da História do cu nos quais você planejava trabalhar?
4.15 Ah vá... Eu e aquele mundo não precisamos de mais textos acadêmicos pós-modernos! E dane-se a Terra, daqui em diante eu estou fora!
4.15 Ah vá... Eu e aquele mundo não precisamos de mais textos acadêmicos pós-modernos! E dane-se a Terra, daqui em diante eu estou fora!
4.16 “OK, OK... como você quiser, a escolha* é sempre sua... O chefe sabe que eu tentei, afinal fica tudo registrado via energia de ponto zero. Você será colocado para fora do perímetro do sistema solar, pois toda essa área é de propriedade do Complexo Hiperdimensional. Sozinho lá fora, basta você desbloquear sua memória, conforme previsto no item 17.5 do contrato, e você saberá a sua amada Verdade. Alea jacta est e tchauzinho.” (*4.16.1 "É absurdo imaginar que a verdade consiste na opção, quando toda tomada de posição equivale a um desprezo pela verdade. Para nossa infelicidade, a escolha, a tomada de posição é uma fatalidade a que ninguém escapa. Cada um de nós deve optar por uma não realidade, por um erro, convencidos dele à força, como doentes, febris: nossos assentimentos, nossas adesões são como que sintomas alarmantes." (Cioran, em Ensaio sobre o pensamento reacionário))
4.17 “Contrato?”
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4.18 Enquanto falava essa palavra, eu percebi-me flutuando no espaço, longe de qualquer estrela que poderia ou não ser identificada como sendo o Sol. Agora, ao que tudo aparentava indicar, eu estava, enfim!, morto – e exilado da Terra.
4.19 Após eu digerir essa situação, eu desbloqueei minha memória e A Verdade revelou-se a mim.
***
V - Excurso (I):
acerca do alerta aos incautos
acerca do alerta aos incautos
"Fumam esse bagulho [maconha] para fugir da realidade? Não preciso dessa porcaria... Eu sou a realidade!"
(o sanguinário sargento Barnes, no filme Platoon)
“Por não pensarem perecem todos os néscios.”
(o sanguinário sargento Barnes, no filme Platoon)
“Por não pensarem perecem todos os néscios.”
(Gracián, n'A arte da prudência)
"A única exigência que faço aos meus leitores é que devem dedicar as suas vidas à leitura das minhas obras."
(James Joyce)
"Assim como as camadas de terra conservam em filas os seres vivos de épocas passadas, as prateleiras das bibliotecas também conservam em filas os erros do passado e suas explicações que, como aqueles no seu tempo, eram muito vivos e faziam muito barulho, mas hoje estão ali rígidos e petrificados, e só o paleontólogo literário os contempla."
(Schopenhauer)
"O ponto de comparação mais difícil, mas também menos enganador, para avaliar a autenticidade e o vigor de um filósofo é ver se ele capta, logo e radicalmente, no ser do ente, a proximidade do nada. Quem não viver essa experiência ficará, de modo definitivo e sem esperança, fora da filosofia."
(Heidegger)
"A filosofia não é apenas um objeto de estudo; ela deveria ser algo intimamente vivido, uma experiência pessoal".
(Cioran)
"É a coragem para fazer uma confissão honesta ao encarar qualquer pergunta que faz o filósofo. Ele deve ser como o Édipo de Sófocles, que, ao buscar esclarecimento em relação ao seu terrível destino, persegue a sua investigação infatigável, até mesmo quando profetiza que um horror apavorante o aguarda como resposta. Mas a maioria de nós carrega em nossos corações a Jocasta que implora para que Édipo, pelo amor de Deus, não investigue mais a fundo...
(Schopenhauer, em carta a Goethe, em Novembro de 1815)
"Quando Mara, o deus da morte, busca por meio tanto de tentações quanto de ameaças arrancar do Buda o império do mundo, este, para confundi-lo e desviá-lo de suas pretensões, lhe diz, entre outras coisas: 'Terás sofrido pelo conhecimento?' Esta interrogação a que Mara não podia responder deveria ser sempre utilizada quando se quisesse medir o valor exato de um espírito. É evidente que um Montaigne não sofreu pelo conhecimento: um sábio, e nada mais; um Pascal, pelo contrário, pagou pela menor afirmação ou negação que se permitiu; vem daí que tudo o que ele diz tem um peso que dificilmente se acharia nas palavras dos outros moralistas, todos mais ou menos instalados nas cômodas certezas do azedume, todos resignados com a nossa corrupção radical, que não parecem de modo algum corrigir nem sequer abalar."
(Cioran, no prefácio da sua Antologia do retrato)
"Quem consegue ler Fenomenologia do Espírito sem se sentir em um hospício é porque já está em um."
(Schopenhauer, remordendo-se de inveja e rancor pelo sucesso de Hegel)
"Amo o pensamento que guarda um gosto de carne e sangue, e a uma abstração vazia prefiro mil vezes uma reflexão surgida de uma exaltação dos sentidos ou de uma depressão nervosa. As pessoas ainda não entenderam que o tempo das preocupações superficiais é passado, e que um uivo de desespero é muito mais revelador do que o mais sutil dos argumentos e que uma lágrima tem sempre origens mais profundas do que um sorriso.
(Cioran, em Nos cumes do desespero)
"A única exigência que faço aos meus leitores é que devem dedicar as suas vidas à leitura das minhas obras."
(James Joyce)
"Assim como as camadas de terra conservam em filas os seres vivos de épocas passadas, as prateleiras das bibliotecas também conservam em filas os erros do passado e suas explicações que, como aqueles no seu tempo, eram muito vivos e faziam muito barulho, mas hoje estão ali rígidos e petrificados, e só o paleontólogo literário os contempla."
(Schopenhauer)
"O ponto de comparação mais difícil, mas também menos enganador, para avaliar a autenticidade e o vigor de um filósofo é ver se ele capta, logo e radicalmente, no ser do ente, a proximidade do nada. Quem não viver essa experiência ficará, de modo definitivo e sem esperança, fora da filosofia."
(Heidegger)
"A filosofia não é apenas um objeto de estudo; ela deveria ser algo intimamente vivido, uma experiência pessoal".
(Cioran)
"É a coragem para fazer uma confissão honesta ao encarar qualquer pergunta que faz o filósofo. Ele deve ser como o Édipo de Sófocles, que, ao buscar esclarecimento em relação ao seu terrível destino, persegue a sua investigação infatigável, até mesmo quando profetiza que um horror apavorante o aguarda como resposta. Mas a maioria de nós carrega em nossos corações a Jocasta que implora para que Édipo, pelo amor de Deus, não investigue mais a fundo...
(Schopenhauer, em carta a Goethe, em Novembro de 1815)
"Quando Mara, o deus da morte, busca por meio tanto de tentações quanto de ameaças arrancar do Buda o império do mundo, este, para confundi-lo e desviá-lo de suas pretensões, lhe diz, entre outras coisas: 'Terás sofrido pelo conhecimento?' Esta interrogação a que Mara não podia responder deveria ser sempre utilizada quando se quisesse medir o valor exato de um espírito. É evidente que um Montaigne não sofreu pelo conhecimento: um sábio, e nada mais; um Pascal, pelo contrário, pagou pela menor afirmação ou negação que se permitiu; vem daí que tudo o que ele diz tem um peso que dificilmente se acharia nas palavras dos outros moralistas, todos mais ou menos instalados nas cômodas certezas do azedume, todos resignados com a nossa corrupção radical, que não parecem de modo algum corrigir nem sequer abalar."
(Cioran, no prefácio da sua Antologia do retrato)
"Quem consegue ler Fenomenologia do Espírito sem se sentir em um hospício é porque já está em um."
(Schopenhauer, remordendo-se de inveja e rancor pelo sucesso de Hegel)
"Amo o pensamento que guarda um gosto de carne e sangue, e a uma abstração vazia prefiro mil vezes uma reflexão surgida de uma exaltação dos sentidos ou de uma depressão nervosa. As pessoas ainda não entenderam que o tempo das preocupações superficiais é passado, e que um uivo de desespero é muito mais revelador do que o mais sutil dos argumentos e que uma lágrima tem sempre origens mais profundas do que um sorriso.
(Cioran, em Nos cumes do desespero)
§5
5.1 É chegado o momento de alguém, por acaso eu, contar-lhes A Verdade. Agora chega de brincadeiras, pois A Verdade é coisa séria. Tcham, tcham, tchaaammmm...
5.2 Contudo, antes, eu gostaria de alertá-los que, doravante, usarei muitos jargões técnicos – todos disponíveis aí na Terra. É incrível como A Verdade pode estar na nossa cara e simultaneamente nós não termos a sutileza necessária para vê-la. Se vocês acham que A Verdade é simples e de fácil digestão, tenho uma má notícia para vocês... Se querem compreendê-la, precisam executar o esforço de superar o mapeamento cognitivo restrito do senso comum. Se A Verdade é ocultada à face de todos, desocultá-la passa pela expansão do próprio vocabulário e da própria metodologia do pensar e do sentir. Como meu tempo de transmissão é curto, fui obrigado a sintetizar – por isso tive que me abster de ser didático e de explicar conceitos que podem ser pesquisados por vocês mesmos aí na Terra (acreditem, se eu tivesse condições de transmitir um texto maior, eu o teria feito). Não obstante o esnobismo que se pode performatizar com o jargão técnico (e com certeza não é o caso dessa carta), o abismo cognitivo entre essa linguagem e a do senso comum é impossível de se transpor. Quando traduzimos uma mensagem da primeira linguagem para a segunda, ela perde a sua especificidade descritiva, e vira, assim, uma caricatura de si própria. O máximo que se pode ter em termos dessa tradução é uma alegoria prolixa (e infelizmente não posso ser prolixo aqui) que delineia a superfície daquilo cujo âmago o jargão técnico descreve. (5.2.1"Traduzido em linguagem comum, um texto filosófico esvazia-se estranhamente." (Cioran))
5.3 Aqueles que insistem na utopia de ampliar seu conhecimento sem ampliar seu vocabulário e sem abandonar a lógica aristotélica vulgar são vítimas da própria preguiça intelectual ao ignorar que os limites de nossa linguagem são os limites do nosso mundo (como alertou Wittgenstein). O máximo que eles conseguem é acumular informações, anedotas e curiosidades, mas sem um ganho expressivo de conhecimento propriamente dito. Drama igualmente temerário é protagonizado pelo erudito literário (e é lamentável o quanto os médiuns, que gostam tanto de psicografar artistas, focam na casuística e na arte e "esquecem" – apesar de se acharem "científicos" – da epistemologia e da ontologia, pois, afinal, essas já estão dogmaticamente estabelecidas no âmbito da subcultura espírita, e portanto não são objeto de investigação), o qual acumula muitas informações desconexas, mas que – por não exercitar o pensar, por não estudar (e refletir longamente sobre, pois simplesmente ler também é preguiça intelectual e escapismo) questões filosóficas, psicológicas e sociológicas, bem como por não desenvolver uma capacidade de literacia suficiente para decifrar o enigma do mundo e para montar os quebra-cabeças semióticos da facticidade – não consegue sair das formas fetichizadas do senso comum e, pior, ainda por cima se acha mais inteligente e sábio do que a maioria das pessoas. Inebriado pelo gozo fátuo das sutilezas masturbatórias do diletantismo conceitual, o erudito literário representa (isso dado o detalhe cármico supracitado, desconhecido da maioria) a quintessência do desperdício do processo vital humano – pois ele chafurda inútil e jocosamente no próprio material essencial à emancipação humana.
5.4 Tanto os que caíram na armadilha de negar o pensamento quanto os que apenas brincam com ele para assim fugir de si mesmos pouco aproveitarão do que se segue.
***
"Que é a verdade?"
(Pilatos, no Evangelho de João, 18:38)
"O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males."
(Paulo, na Primeira epístola a Timóteo, 6:10)
"Não resta dúvidas de que hoje, o mundo asiático e o mundo ocidental não são mais coisas separadas, e de que um não é mais antípoda do outro. Pelo contrário, são pedaços iguais de uma mesma máquina de triturar vidas e de produzir dinheiro, lucro, capital. São as duas partes simétricas de um mesmo cérebro, mentalmente doente, e cuja patologia tem origem e fim no dinheiro."
(Ezio Flavio Bazzo, no cap. 31 de Toaletes e guilhotinas: uma epistemologia da merda e da vingança)
"Todo homem que for dotado de espírito filosófico há de ter o pressentimento de que, atrás da realidade em que existimos e vivemos, esconde-se outra muito diferente e que, por consequência, a primeira não passa de uma aparição da segunda."
(Nietzsche, n'O nascimento da tragédia)
§6"Não resta dúvidas de que hoje, o mundo asiático e o mundo ocidental não são mais coisas separadas, e de que um não é mais antípoda do outro. Pelo contrário, são pedaços iguais de uma mesma máquina de triturar vidas e de produzir dinheiro, lucro, capital. São as duas partes simétricas de um mesmo cérebro, mentalmente doente, e cuja patologia tem origem e fim no dinheiro."
(Ezio Flavio Bazzo, no cap. 31 de Toaletes e guilhotinas: uma epistemologia da merda e da vingança)
"Todo homem que for dotado de espírito filosófico há de ter o pressentimento de que, atrás da realidade em que existimos e vivemos, esconde-se outra muito diferente e que, por consequência, a primeira não passa de uma aparição da segunda."
(Nietzsche, n'O nascimento da tragédia)
6.2 O cotidiano de vocês é tão ilusório quanto o de frangos em uma granja. Ele é estruturado, manipulado, planejado e guiado em função de interesses que vocês desconhecem, assim como o dos animais na indústria alimentícia (nesse sentido, inesperado e paranoico, o idealismo platônico, plagiado descaradamente das escolas de mistérios dos egípcios, é verdadeiro na Terra). A realidade de vocês – e até então a minha nesse planeta – é estruturada como ficção.
6.3 E o que vocês estão produzindo aí? Vitela? Mais ou menos... E para quem? Voltemos ao contrato...
6.4 O contrato foi assinado por mim e pelo Complexo Hiperimensional – um cartel de corporações hiperdimensionais provenientes de várias civilizações da galáxia (anunnaki, reptilianos, arcturianos, greys, etc., os primeiros os quais foram os responsáveis pela criação aí na Terra do auto-intitulado, para a gargalhada da elite cósmica, "Homo sapiens"). É um contrato de prestação de serviços – no caso, meu para o Complexo. Basicamente eu, uma vez encarnado na Terra, ofereço parte das minhas energias biófilas, parte da força vital (orgone) captada pelo meu corpo, parte da minha jouissance, e, ainda, disponibilizo-me para ser fonte de ACTH (hormônio adrenocorticotrófico) e de adrenochrome (mesmo que isso implique no meu desencarne precoce). Em troca da oferta desses produtos, o Complexo me dá o direito de viver encarnado na Terra. Sim, isso mesmo, vocês leram corretamente. Se isso está lhes parecendo um feudalismo cósmico-cibernético, vocês estão no caminho certo.
6.5 Aí na Terra, não apenas suas vidas terrenas encarnadas, mas a própria dinâmica dos seus ciclos reencarnatórios é administrada pelo Complexo, de acordo exclusivamente com os interesses corporativos desse cartel.
6.6 Certo, mas porque eu (e vocês) assinaria um contrato desses? Está lá – tudo na minha memória (ratificada pela parte dos registros akáshicos que me é estrutural e legalmente acessível nesse nível 4-D). (6.6.1 "Legalmente acessível” porque a maior parte daquilo que por natureza, nesse nível da realidade, pode ser acessado desses registros – os quais são o maior patrimônio do universo – foi privatizada e está protegida pelos direitos de propriedade e apropriação intelectual.)
6.7 Antes de eu assinar o contrato, o meu antigo planeta, habitado por povos “primitivos” (algo tipo os indígenas aí da Terra), foi devastado por mercenários. Isso foi quando eu estava na minha 8ª encarnação como “ser cultural” (isto é, como “vida inteligente”, como vida dotada de razão e capaz de produzir um nível cultural emergente). Mas, detalhe!, eu me lembrava das minhas vidas anteriores! Por isso o meu amadurecimento cármico (a.k.a. "evolução espiritual") – e o de muitos naquele planeta – estava bem acelerado em comparação com a tragédia que se vê aí na Terra. Porém isso foi abortado por mercenários a serviço do Complexo, que se apossaram do planeta e empreenderam um genocídio dos povos que nele habitavam.
6.8 O meu "espírito" (o que vocês tradicionalmente entendem aí por esse conceito faz parte daquilo que os físicos terráqueos chamam de "energia e matéria escuras") – bem como os de centenas de milhões dos meus semelhantes – ficou vagando no universo sem local para poder encarnar, pois todos os locais propícios à vida já eram (e ainda o são) propriedades a serviço de alguma das empresas do Complexo ou do usufruto da elite cósmica (dentro da qual, obviamente, encontram-se os proprietários desse mesmo Complexo), ou, ainda, propriedade de outros cartéis e oligopólios da mesma elite cósmica (a qual inclui outras civilizações de outras galáxias, além dessas já citadas aqui e que são as que dominam a Via-Láctea). O universo conhecido inteiro já foi comprado pelo capital, e há muito tempo. Após milhares de anos vagando sem destino, eu aceitei trabalhar para o próprio Complexo que destruiu meu povo, em troca do "privilégio" de estar encarnado – estavam contratando particularmente para o atendimento de necessidades da linha de produção na Terra. Se vocês estranham que alguém aceite uma proposta desses, é porque estão subestimando o poder mortificante do tédio eterno.
6.9 Essa não é apenas a minha história – provavelmente é a da maioria de vocês aí também. O meu povo (i.e., o povo da minha encarnação anterior à minha assinatura do contrato – não que, depois de tudo, eu ainda me sinta parte de um povo*, deixemos isso bem claro) não foi o único a sofrer com esse processo. E não foi mero acaso ou algo pontual. É uma estratégia do Complexo e de outros cartéis e corporações para produzir mão-de-obra e suprimir eventuais inimigos.
*Em A verdadeira imagem do ser humano, p.15 (Brasil B-Young):
6.10 E para que servem esses produtos fornecidos pela fábrica-Terra (e por várias outras análogas espalhadas pela galáxia)? Isso não é nenhum segredo: eles são produtos usados por parte da elite cósmica (a parte formada, basicamente, pelas mesmas civilizações já mencionadas) para acessar, efemeramente, as dimensões superiores (seja com fins lúdicos – “masturbação transcendental” – seja com fins sérios de pesquisa exploratória e científica). A Terra é uma fábrica cósmica de psicotrópicos! E vocês se voluntariaram a fazer parte do seu ativo imobilizado!
6.11 “Só” isso. Novamente, não subestimem o poder do tédio eterno ("De modo algum o tédio é um mal a ser desprezado: por fim, ele pinta verdadeiro desespero no rosto", Schopenhauer). O que mais temos nesse universo é tempo. Isso pode não parecer crível para quem, aí na Terra, vive uma vida atribulada e corrida de hamster na roda, numa queda contínua rumo à morte. Contudo, para quem tem as memórias das vidas passadas, fica claro o quanto o tempo é abundante e o quanto o viver é simplesmente interminável. (6.11.1 "O inferno é o lugar onde somos condenados ao tempo pela eternidade", Cioran em A queda no tempo.) Que esses seres já tenham esgotado as possibilidades de uma vida quadrimensional e busquem acessar outros níveis dimensionais, é bastante compreensível. Embora haja outras formas de tentar fazer isso – como ensinam os sábios esotéricos mais profundos – o caminho mediado pelo consumo de mercadorias produzidas por vidas alheias reificadas é, com certeza, mais fácil e confortável (e auto-alienado); e, se essas vidas alheias são “persuadidas” (mediante a criação planejada de condições adversas para elas o decidirem, condições essas nas quais não tenham escolhas muito melhores) a aceitar a sua servidão, então (pensam os donos e clientes do Compexo do alto de sua imaturidade cármica) tudo bem, né?
6.12 Dado que os primeiros, e talvez únicos, leitores dessa mensagem sejam espíritas, eu sinto-me na obrigação de alertá-los de que a doutrina espírita – como todas as demais doutrinas religiosas (pouco importando se elas admitem ser religiosas ou se buscam esconder-se atrás de algum pretenso verniz científico, como faz o espiritismo) – é uma farsa para controlar as massas ignaras e induzi-las a manterem-se no látego terrestre. Em algum lugar do kardecismo – se não me engano na Pergunta 132 do Livro dos espíritos (verifiquem aí, porque eu não tenho acesso ao livro aqui, e pelo jeito nenhum kardecista passou para esse lado aqui para poder ratificar essa informação) – é “relevado” que “a Lei de Deus lhes impõe a reencarnação”. Não, não lhes impõe, o que lhes impõe – e com direito a apagamento de memória para estelionato cármico – é o contrato que vocês mesmo assinaram com o Complexo Hiperdimensional, nada a ver com “imposição” de “Deus” (engraçado que a mesma doutrina que fala em livre-arbítrio vem com esse papo de imposição divina...). (6.12.1 O espiritismo ainda consegue a façanha de deturpar com seu pollyanismo asqueroso o mérito inconteste de Jung de defender a integração entre luz e sombra, em detrimento do infantilismo vulgar de fugir da sombra e imaginar que assim ela desaparece: não que Jung fosse espírita, mas é muito comum os espíritas referirem-se a ele e acharem que estão de acordo com seu pensamento. É que tudo o que o otimismo consegue tocar acaba logo por descer a ladeira escorregadia da vulgaridade...) Todas as religiões organizadas estão sob controle do biopoder do Complexo, e as ferramentas básicas que elas usam, bem como as demais instituições do biopoder, para controlar seus servos voluntários são os sofismas, o medo, a esperança, a ignorância, o ódio, a submissão, a culpa e a fé.
***
VII - Excurso (II):
acerca do meu luto
acerca do meu luto
"Eu era filho de Júpiter, o filho de Kronos,
Entretanto a dor que eu sentia era infinita."
(na Odisseia, de Homero)
"Sem Bach, a teologia seria desprovida de objeto, a Criação, fictícia, o nada, peremptório. Se há alguém que deve tudo a Bach esse alguém é Deus."
(Cioran, em Silogismos da amargura)
§7
7.1 Após conscientizar-me da minha situação, eu senti uma grande tristeza por todos os que não se libertaram – i.e., provavelmente quase todos os seres humanos com quem convivi nessas 252 vidas. Senti mais pesar por aqueles que conheci nessa última encarnação – pois eles eu gostaria de poder avisar de alguma forma (os que conheci nas minhas vidas anteriores à essa última provavelmente estão agora em outras vidas eu não teria nem como rastreá-los para encontrá-los).
7.2 Tentei voltar para a Terra, mas simplesmente não consegui. Após ter desbloqueado minha memória eu sabia que, enquanto espírito desencarnado, eu poderia me mover para qualquer “espaço público” do universo. Entretanto, a Terra (como qualquer espaço que possa ser usado pelo processo de autovalorização do capital) já não era espaço público; ela era propriedade do Complexo, para o qual eu agora era persona non grata.
7.3 Enchi-me de tristeza ao saber que não podia alertar meus amigos, meus parentes, meu ex-namorado (Jacinto), o qual, segundo o inspetor de qualidade (o “anjo”) ainda me amava (será? eu vivi bons momentos oxitocínicos com ele, os quais, apesar de tudo, efemeramente me afastaram das perplexidades do abismo e foram uma espécie de oásis, fugaz, no deserto do real). Não sei se isso era (ou ainda é) verdade, e provavelmente nunca o saberei (a menos que ele também fosse reprovado por algum inspetor após a sua morte). O que ficou claro para mim, é que eu o amava (e ainda o amo). (7.3.1 "Apesar de tudo, seguimos amando; e esse 'apesar de tudo' cobre um infinito." (Cioran, em Silogismos da amargura))
7.4 Não apenas não podia ajudar os que eu na Terra amava, como também tragicamente descobri que não tinha mais acesso ao acervo cultural deste planeta (indisponíveis nos registros akáshicos acessíveis a mim, ou por qualquer outro meio que me fosse acessível) – todos os livros que não li e os que li, todos os filmes que não vi e os que vi, e todas as músicas que não ouvi e as que ouvi: tudo estava-me inacessível para sempre. (7.4.1 Boa parte dos ex-humanos contribuí para um projeto que busca recuperar as memórias que cada um tem das obras da cultura humana. Assim, o acervo cultural produzido pela humanidade tem uma sombra construída no além.)
***
VIII - Mas tem mais:
acerca da continuação do apocalipse segundo Duan Conrado Castro (em especial para quem se sentiu enganado até aqui porque está esperando um anúncio do fim do mundo)
acerca da continuação do apocalipse segundo Duan Conrado Castro (em especial para quem se sentiu enganado até aqui porque está esperando um anúncio do fim do mundo)
(Pitágoras)
"Os animais se entredevoram e os homens se enganam uns aos outros [e a si próprios], e a isso se chama 'a marcha do mundo'."
(Schopenhauer)
"A ditadura perfeita terá a aparência da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão.”
(Schopenhauer)
"A ditadura perfeita terá a aparência da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão.”
(Aldous Huxley)
"O que é necessário explicar não é que o faminto roube ou que o explorado entre em greve, mas o porquê da maioria dos famintos não roubar e a maioria dos explorados não entrar em greve."
“Já acredito há muito tempo que, se a eficiência cada vez maior da tecnologia de destruição um dia fizer que nossa espécie desapareça da Terra, não terá sido a crueldade a responsável por nossa extinção, menos ainda a indignação que a crueldade desperta ou as represálias e vinganças que ela atrai, mas sim a docilidade, a falta de responsabilidade do homem moderno, sua desprezível aceitação de qualquer decreto comum. Os horrores que já vimos, e os horrores ainda maiores que logo veremos, são sinal não de que os homens rebeldes, insubordinados e indomáveis estejam aumentando em número no mundo todo, e sim de que aumenta constantemente o número de homens obedientes e dóceis.”
(George Bernanos)
"Em si mesma, toda ideia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada... Assim nascem as ideologias e as farsas sangrentas."
(Cioran, no início do Breviário da decomposição. Gostaria de salientar que a "decomposição" do título refere-se ao processo de extinção humana.)
"Jamais o espírito hesitante, afligido pelo hamletismo, foi pernicioso. O princípio do mal reside na tensão da vontade, na inaptidão para o quietismo, na megalomania prometeica de uma raça que se arrebenta de tanto ideal, que explode sob suas convicções e que, por haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça – vícios mais nobres do que todas as suas virtudes –, embrenhou-se em uma via de perdição, na História, nesta mescla indecente de banalidade e apocalipse..."
(Idem)
"'Possível' não significa o que casualmente alguém pode fantasiar, mas o que realmente pode existir e subsistir. Esse mundo é configurado de modo apropriado para continuar a existir com grande dificuldade e, caso fosse um pouco pior, não seria capaz de persistir. Consequentemente, uma vez que um mundo pior não poderia continuar a existir, ele é absolutamente impossível, e, por isso, esse mundo em si já é o pior dos mundos possíveis."
(Schopenhauer, no cap. 46 do tomo II d'O mundo como vontade e como representação)
"A história universal é uma sucessão de catástrofes rumo a uma catástrofe final."
(Cioran)
"É tarde demais. Sempre foi, e sempre será. Tarde demais." (Dr. Manhattan, em Watchmen, de Alam Moore)
"E Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai, multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre todo animal que se move sobre a Terra."
(Gênesis, 1:28)
"A injunção do Gênesis, 'crescei e multiplicai-vos', não poderia ter saído da boca de um Deus bom. 'Sede escassos' deveria ter sugerido, caso tivesse voto na matéria."
(Cioran, em O Funesto demiurgo)
"Se uma população de bactérias vivendo em uma placa de Petri duplica-se a cada minuto, então um minuto antes do colapso inevitável da população apenas a metade da placa estará ocupada."
(Terence McKenna)
"O padrão geral de comportamento das sociedades humanas ameaçadas é elas se tornarem mais tacanhas à medida que decaem, em vez de se concentrarem mais na crise."
(Ed Ayres)
“Acreditamos não estar exagerando ao dizer que o Antropoceno, ao nos apresentar a perspectiva de um ‘fim do mundo’ no sentido o mais empírico possível, o de uma mudança radical das condições materiais de existência da espécie, vem suscitando uma autêntica angústia metafísica. Essa angústia, muitas vezes beirando o pânico, tem se exprimido em uma desconfiança perante todas as figuras do antropocentrismo, seja como ideologia prometeica do progresso da humanidade em direção a um Milênio sociotécnico, seja como pessimismo pós-modernista que celebra ironicamente o poder constituinte do Sujeito ao denunciá-lo como inesgotável matriz de ilusões. A consciência de que o grandioso projeto de uma construção social da realidade realizou-se sob a forma desastrosa de uma destruição natural do planeta suscita uma (quase-)unanimidade em torno da necessidade de declarar passado, isto é, de fazer passar o mundo dos homens sem mundo que é (que foi) o mundo dos Modernos. Mas as transformações em curso desse esquema mítico partem em direções diversas; algumas delas buscam mesmo inverter o signo negativo que marca esta destruição, advogando a abolição radical do mundo como a única saída para a transfiguração emancipadora final do humano. Em uma época em que a exuberância maníaca e a depressão melancólica parecem disputar o leme do psiquismo coletivo, todo discurso sobre o fim do mundo suscita um discurso inverso que apregoa a perenidade humana, sua capacidade de superação e de sublimação, e tende a tomar qualquer menção a ideias de declínio ou fim como irreais, fantasiosas, supersticiosas mesmo." (Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski, em Há mundo por vir? Ensaio sobre o medo e os fins)
"O mundo inteiro é um saco de merda se rasgando."
(Bukowski)
"Em si mesma, toda ideia é neutra ou deveria sê-lo; mas o homem a anima, projeta nela suas chamas e suas demências; impura, transformada em crença, insere-se no tempo, toma a forma de acontecimento: a passagem da lógica à epilepsia está consumada... Assim nascem as ideologias e as farsas sangrentas."
(Cioran, no início do Breviário da decomposição. Gostaria de salientar que a "decomposição" do título refere-se ao processo de extinção humana.)
"Jamais o espírito hesitante, afligido pelo hamletismo, foi pernicioso. O princípio do mal reside na tensão da vontade, na inaptidão para o quietismo, na megalomania prometeica de uma raça que se arrebenta de tanto ideal, que explode sob suas convicções e que, por haver-se comprazido em depreciar a dúvida e a preguiça – vícios mais nobres do que todas as suas virtudes –, embrenhou-se em uma via de perdição, na História, nesta mescla indecente de banalidade e apocalipse..."
(Idem)
"'Possível' não significa o que casualmente alguém pode fantasiar, mas o que realmente pode existir e subsistir. Esse mundo é configurado de modo apropriado para continuar a existir com grande dificuldade e, caso fosse um pouco pior, não seria capaz de persistir. Consequentemente, uma vez que um mundo pior não poderia continuar a existir, ele é absolutamente impossível, e, por isso, esse mundo em si já é o pior dos mundos possíveis."
(Schopenhauer, no cap. 46 do tomo II d'O mundo como vontade e como representação)
"A história universal é uma sucessão de catástrofes rumo a uma catástrofe final."
(Cioran)
"É tarde demais. Sempre foi, e sempre será. Tarde demais." (Dr. Manhattan, em Watchmen, de Alam Moore)
"E Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai, multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre todo animal que se move sobre a Terra."
(Gênesis, 1:28)
"A injunção do Gênesis, 'crescei e multiplicai-vos', não poderia ter saído da boca de um Deus bom. 'Sede escassos' deveria ter sugerido, caso tivesse voto na matéria."
(Cioran, em O Funesto demiurgo)
(Terence McKenna)
"O padrão geral de comportamento das sociedades humanas ameaçadas é elas se tornarem mais tacanhas à medida que decaem, em vez de se concentrarem mais na crise."
(Ed Ayres)
“Acreditamos não estar exagerando ao dizer que o Antropoceno, ao nos apresentar a perspectiva de um ‘fim do mundo’ no sentido o mais empírico possível, o de uma mudança radical das condições materiais de existência da espécie, vem suscitando uma autêntica angústia metafísica. Essa angústia, muitas vezes beirando o pânico, tem se exprimido em uma desconfiança perante todas as figuras do antropocentrismo, seja como ideologia prometeica do progresso da humanidade em direção a um Milênio sociotécnico, seja como pessimismo pós-modernista que celebra ironicamente o poder constituinte do Sujeito ao denunciá-lo como inesgotável matriz de ilusões. A consciência de que o grandioso projeto de uma construção social da realidade realizou-se sob a forma desastrosa de uma destruição natural do planeta suscita uma (quase-)unanimidade em torno da necessidade de declarar passado, isto é, de fazer passar o mundo dos homens sem mundo que é (que foi) o mundo dos Modernos. Mas as transformações em curso desse esquema mítico partem em direções diversas; algumas delas buscam mesmo inverter o signo negativo que marca esta destruição, advogando a abolição radical do mundo como a única saída para a transfiguração emancipadora final do humano. Em uma época em que a exuberância maníaca e a depressão melancólica parecem disputar o leme do psiquismo coletivo, todo discurso sobre o fim do mundo suscita um discurso inverso que apregoa a perenidade humana, sua capacidade de superação e de sublimação, e tende a tomar qualquer menção a ideias de declínio ou fim como irreais, fantasiosas, supersticiosas mesmo." (Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski, em Há mundo por vir? Ensaio sobre o medo e os fins)
"O mundo inteiro é um saco de merda se rasgando."
(Bukowski)
"Nossa civilização está cansada… Por mim, sigo este assunto com autêntica fascinação. Afinal de contas, não é dada a todos a oportunidade de presenciar uma decadência!"
[Para Cioran, a decadência não é outra coisa senão o instinto tornado impuro pela ação da consciência.]"No passado, com amor ou ódio, os homens se aventuravam em Deus, o qual, de Nada inesgotável que era, agora é apenas – para desespero de místicos e ateus – um problema."
(Cioran)
§8
8.1 Nas minhas viagens cósmicas eu acabei chegando à Associação dos Exilados da Terra, um grupo no qual alguns dos ex-humanos se reúnem. Trocando informações com eles, outras peças do quebra-cabeças se encaixaram. A seguir, vou apresentar algumas delas a vocês.
8.2 Descobri, por exemplo, que eu fui liberado da minha servidão na Terra basicamente por três motivos: (1) porque o contrato, a fim de ser mais sedutor, tem que prever uma possibilidade de emancipação; porque (2) os inspetores de qualidade (dos quais o tal "anjo" é um avatar) têm uma meta de produção de espíritos a serem encaminhadas para a fila umbralina de reencarnação na Terra (ou em outro planeta de propriedade do Complexo) e, ao mesmo tempo, têm um conjunto limitado de recursos para cumprir essa meta (como esses recursos são escassos, o sistema todo já prevê uma perda de espíritos, que são considerados matérias-primas cujo custo de tratamento está acima do benefício que podem oferecer – i.e., são parte dos resíduos industriais* desse processo de produção); e, não menos importante, porque (3) eu tive sorte (mas não nos esqueçamos que a sorte favorece os preparados): pode parecer piada, mas esse período de 5 dias terráqueos em que eu estava sendo "tratado" para ser induzido a decidir voluntariamente ser reencaminhado ao labor na Terra corresponderam a um feriadão na sociedade reptiliana e, além disso, era começo de mês e, ainda por cima, na hora em que o inspetor decidiu me descartar estava provavelmente perto do final do turno dele... Eu presumo que tudo isso afetou a disposição dele em tratar o meu caso com mais esforço. (*8.2.1 "O cético é o homem inutilizável por excelência." (Cioran))
8.3 Descobri, igualmente, que, ao apagar nossas memórias a cada reencarnação, o Complexo está literalmente impedindo nosso (no caso, agora o de vocês) amadurecimento cármico e nos reduzindo a meros insumos para a produção de mercadorias. Trata-se de um sistema de dominação, que vem a ser o que os gnósticos já chamavam há muitos séculos de "sístase"; esse sistema favorece uns à custa da evolução espiritual de outros. O sequestro de boa parte de nossas energias biófilas, da orgone captada por nossos corpos e se nossa jouissance fortalece o caráter neurótico das massas humanas zumbificadas (o qual inclusive pode ser identificado por um enrijecimento muscular crônico e um encurtamento progressivo da respiração, e também por muitas doenças crônicas), recrudescendo o culto coletivo à morte e à barbárie e alimentando, simultaneamente, tanto a manutenção dos mega-sistemas de poder opressor quanto a ilusão utópica e soteriológica de que um dia um líder messiânico vai nos salvar de nós mesmos. Já o adrenochrome, é produzido pelas glândulas adrenais em estado de intenso sofrimento: em outras palavras, é obtido mediante condições torturantes. Além das abduções, existe toda uma logística (nano)cibernética e hiperdimensional para coletar e estocar (no subsolo da Lua, juntamente com os outros produtos) o adrenochrome produzido pelas condições de vida desesperadoras nas quais boa parte da população de coitados que reveste a Terra vegeta e, enfim, morre para renascer repetidamente.
8.4 (8.4.1 Depois de tantos petabytes de desinformação histérica produzidos sobre o suposto fim do mundo que ocorreria no final de 2012, como não se deixar levar pelo ceticismo diante de novos e peremptórios anúncios do fim dos tempos?) Descobri, ainda, que os biogestores do Sistema Terra sabem que a forma como os humanos estão vivendo aí é insustentável e que essa civilização humana de alta entropia está atualmente em seu estertor (eles sabem que, em virtude da forma violenta pela qual os humanos se comunicam entre si e consigo mesmos (no íntimo de suas mentes), a civilização ruirá por ser incapaz de construir um convivialismo que permita uma dialética não-suicida entre competição e cooperação). Sabem, inclusive – e obviamente já estão preparados para isso –, que, ao longo da década de 2030, * a sexta extinção em massa * (causada pelo próprio parasitismo insano e irresponsavelmente suicida de uma humanidade cegada às limitações termodinâmicas do planeta por causa do delírio do crescimento econômico infinito ensejado pelo ciclo pantagruélico de autovalorização do deus-capital, o qual, como todo deus(-ogro), não aceita dividir seu altar com mais ninguém) tornará a Terra inabitável para o design dos corpos humanos: seu suicídio e o genocídio de boa parte da vida contemporânea do planeta será o – lucrativo – legado final do Homo perturbatus. O apocalipse humano é uma ótima oportunidade para os negócios... do Complexo. (8.4.2 O comportamento irresponsável que caracteriza o mainstream cultural da humanidade há milênios e cujo acme é o capitalismo global é pautado (hedonistamente) por uma privatização dos benefícios e por uma terceirização dos custos – os quais são transferidos para outros seres, considerados pessoas ou não, no presente e/ou para um futuro ignorado. A própria ciência econômica hegemônica sacramenta esse comportamento ao hipostasiar como "racional" a maximização da utilidade multidividual no curto prazo (esquecendo apenas do detalhe de que uma civilização do tipo zero* pautada por essa regra entra em conflito com as leis termodinâmicas do universo). Às favas o futuro, pois, como já dizia em 1923 o illuminatus Keynes, "no longo prazo estaremos todos mortos" (quem precisa de ortodoxia com uma "heterodoxia" como essa?). Esta irresponsabilidade é fruto de uma consciência reificada e de uma racionalidade instrumental incapazes de reconhecer a interconexão entre todos os seres e elementos. Os povos "primitivos" não tinham (e alguns ainda conseguem não ter) esse nível de reificação da consciência** e consideravam, dentro da limitação de seu mapeamento cognitivo, a natureza "sagrada", e por isso mesmo buscavam viver em harmonia com ela. Porém, já na primeira página da Bíblia Sagrada selou-se o destino da humanidade e do atual ciclo de vida na Terra ao colocar-se na boca do demiurgo patriarcal Jeová a ordem fálica para instrumentalizar a natureza ao bel prazer humano, sacramentando assim a carnificina cega e estupidamente autodestrutiva. *8.4.2.1 Quanto à escala de Kardashev, a história da vida no universo registra que apenas conseguiram passar do tipo zero ao tipo I (noosférica) algumas das civilizações que tiveram a sorte de surgir em um sistema solar no qual havia mais de um planeta habitável. Ou seja, mesmo sem a intervenção dos anunnaki os hominídeos da Terra provavelmente já estavam previamente condenados. **8.4.2.2 A divisão social do trabalho alimenta a falsificação da consciência (a produção da consciência reificada) e, consequentemente, também alimenta a irresponsabilidade moral e a hipocrisia. Por exemplo, enquanto um índio tem plena consciência do que significa matar para viver, um civilizado da classe média para cima consome quilos e quilos de carne mensalmente, os quais, vendidos em cortes padronizados e embalados assepticamente, perderam qualquer vínculo significativo com os corpos dos animais dos quais fizeram parte. Até o sangue residual deve ser eliminado: na glutonaria do espeto-corrido, o bom-tom é solicitar a carne bem-passada. Esse mesmo civilizado, que pode ter comido voluptuosamente vários corações de galinha no almoço, não teria coragem de matar, esquartejar e desossar ele próprio a sua refeição necrófaga; todavia ele se preocupa, hipocritamente, em não matar uma joaninha ou uma mariposa que por ventura adentre a sua sala de estar.) A presente teia da vida em Gaia está nos momentos finais antes de seu total esgarçamento (trata-se de era epilogal tanto para a biosfera quanto a para tecnosfera e, outrossim, para a utopia de uma integração noosférica bem-sucedida protagonizada pelo Homo sapiens) mas para eles – os biogestores do Sistema Terra – nada disso é problema, pois, tal como um agricultor predatório que não se importa em exaurir o solo em que cultiva, o Complexo já tem um planeta análogo à Terra prontinho para receber todos os serviçais que no momento estão rumando com todo vapor à débâcle sistêmica de sua civilização-granja. Não há como parar, endogenamente, essa reação em cadeia que é, simultaneamente, tanto o fundamento da "glória" da humanidade quanto o de sua inevitável ruína – o ponto de não-retorno já foi ultrapassado. (8.4.3 Enquanto nas sociedades (nômades ou agrárias) tradicionais prevalecia uma noção de tempo cíclico, a mitologia capitalista (industrial e pós-industrial) – a fim de eternizar (e assim legitimar) essa construção social suicida (em uma civilização do tipo zero...) – criou um tempo eterno, no qual nunca se dorme e sempre se está destruindo a natureza, criando mercadorias, produzindo, distribuindo e consumindo. O tempo eterno do ciclo de autovalorização do capital transformou-se superestruturalmente – na falsa consciência ideológica burguesa – no tempo oficial, em substituição ao tempo cíclico das sociedades tradicionais, cuja consciência mantinham um intercâmbio bem mais expressivo com (os ciclos d)a natureza. Esta eternidade ilusória está, obviamente e enquanto construção histórica, ela própria condenada à dissolução (ou seja, ela também cumpre um ciclo) – como é insustentável viver uma mentira, cedo ou tarde fica impossível negar os fatos, e os custos dessa negação são diretamente proporcionais ao tempo em que se resiste em abandoná-la (no caso dessa atual civilização aí, já está claro que o custo a ser pago será, conforme o planejado, a vida de todos os seres humanos, a maioria dos quais perecerá, contando a partir de hoje, no prazo de cerca de duas décadas e meia, embora uma minoria "sortuda" postergará em vão, em um after (em um pós-apocalipse*), a agonia da extinção vivendo em bunkers). *8.4.3.1 Os filmes pós-apocalíticos geralmente erram feio por imaginar que com o fim da civilização somem magicamente os problemas ambientais criados por ela (pois, afinal, raramente esses filmes concebem o fim da civilização como decorrente de um Armagedom ecológico) – como se a civilização fosse desligar com segurança os mais de 1.000 reatores nucleares atualmente em atividade antes de fechar as portas, como se todo o lixo nuclear já produzido fosse ser gerido adequadamente pelo humanos do "neoneolítico", como se os feedbacks positivos engatilhados pela húbris do projeto iluminista na geofísica do planeta fossem se desarmar sozinhos, e como se a espiral descendente biosférica decorrente do metabolismo civilizacional fosse se reverter espontaneamente... A natureza não é tão feérica quanto o imaginário reificado que dela se construiu.) (8.4.4 A atual civilização humana – inebriada pelo delírio capitalista e rumo ao pico da produção no Sistema Terra – consome vorazmente combustíveis fósseis (isto é, corpos putrefatos de seres mortos há milhões de anos) para assim acessar um estoque imemorial de energia solar que está neles armazenada. Ou seja, essa civilização é energeticamente deficitária e vive às custas de energia do Sol acumulada no passado geológico – energia cujo estoque não é renovável (isso, portanto, sinaliza para um colapso). Como essa energia está acumulada na forma de matéria orgânica e como ela é liberada mediante combustão deste material, o seu usufruto tem como uma de suas contrapartidas (além das geopolítcas...) a liberação de gases do efeito estufa (o mesmo efeito sem o qual não haveria a exuberância de vida na Terra), liberação essa que muda a dinâmica geofísica do planeta (a qual é, obviamente, a base da teia da vida (humana) aí encarnada) e, isso, em conjunto com a destruição da biosfera para obter outras matérias-primas (além da energia – e vale lembrar ainda que o petróleo também é fonte do hodiernamente onipresente plástico) para a orgia mercantil capitalista e em conjunto com a produção gigantesca de lixo (adivinhem por quem e o porquê?), sinaliza para outro colapso. A humanidade está de joelhos entre esses dois abismos e o pior ainda está por vir. Como diria Cioran, o qual elevou, na história da Filosofia, o pessimismo ao seu paroxismo, "o futuro nos espera para imolarmo-nos". Vocês aí estão no dealbar da era de ouro do pânico, mas não se esqueçam ao menos de usar filtro solar...) Cada notícia ruim que a mídia corporativa veicula, bem como cada notícia ruim que decide suavizar ou mesmo não veicular, é apenas mais um sinal indicativo da iminente catástrofe final dessa dessa civilização esgotada que arfa no estertor de sua crise agônica. Do ponto de vista do atual ciclo da vida aí na Terra, o que está em andamento a todo vapor é a derradeira e definitiva "tragédia dos comuns". (8.4.5 Enquanto a Europa estava mergulhada nas trevas da Idade Média, o polímata muçulmano Ibn Khaldun, precursor das ciências sociais, já havia notado o padrão segundo o qual sociedades sedentárias (pacíficas ou pouco violentas) são dominadas por sociedades nômades (virilizadas, militarizadas e bastante violentas) (é o que resta de barbárie em uma sociedade em processo de pacificação e de "evolução moral" que ainda a protege de ser engolida pela barbárie externa; portanto, são as forças bárbaras internas ao Ocidente que ainda defendem "o estilo de vida ocidental" diante do barbarismo externo, seja russo, seja chinês, seja islâmico, etc.: se o barbarismo sumisse da cultura Ocidental, como querem os pacifistas e reformadores do mundo, não haveria ninguém para fazer o trabalho sujo de usar a força bruta para defender os "valores ocidentais" face à vontade de poder externa). O processo de seleção societal selecionou (guiado pela administração do Complexo, é claro), ao longo de milênios, sociedades marcadas memeticamente pela violência*, pela irresponsabilidade, pelo descuidado, pelo desperdício conspícuo, pela reificação, pela hipocrisia, pelo hedonismo suicida, pela corrupção, etc. A hodierna civilização capitalista global não criou esses memes (o que é ignorado pela maioria dos críticos ingênuos do capitalismo, os quais se equivocam ao acharem que, só porque todos os problemas humanos atualmente têm ramificações no ubíquo metabolismo capitalista, bastaria destruir esse modo de produção e todo infortúnio humano magicamente sumiria) – apenas (e)levou a sua expressão à máxima eficiência (construindo uma aldeia global pretensamente racional, na qual cada caloria de alimento produzida consome em média 10 calorias de combustíveis fósseis). Muito menos é possível "jogar a culpa" isoladamente na figura do Estado, como se Hobbes nunca tivesse existido (de todas as ideologias que estão atualmente na moda aí na Terra, nenhuma me parece mais idiota** do que a anarcocapitalista, a qual promove o elogio de uma flagrante distopia que, no mais, é evidentemente equivocada ontologicamente***, pois o PNA – Princípio da Não Agressão – é uma completa piada, um otimismo ingenuíssimo, de dar pena). Embora – e esse aspecto é especialmente tragicômico – todo multivíduo (com exceção dos casos mais graves de psicopatia) tenha, stricto sensu, a estrutura biológica e "espiritual" necessária e suficiente para romper com esses memes (e essa mesma estrutura é essencial para o multivíduo produzir os produtos do interesse do Complexo...) e, assim, viabilizar, em (falsa) teoria, uma emancipação da sociedade rumo à paz e à sustentabilidade (ou seja, como defendiam Marx, Rousseau, Saint-Exupéry, Skinner, Marshall Rosenberg e outros otimistas ontológicos, o problema, nesse nível, não é na natureza humana!), um rompimento societal, da coletividade, é, na prática (efetivamente), impedido pela atuação inercial/estrutural desses memes que foram imemorialmente selecionados, bem como pela atuação administrativa dos biogestores do Sistema Terra. Na práxis, apenas alguns multivíduos chegam, pontualmente e como um resíduo dialético da liberdade social para destruir, a realizar esse rompimento. O desconhecimento dessa realidade leva a fantasias utopistas que afirmam que tal processo pontual, residual e particular de emancipação poderia de alguma forma surreal ser generalizado e assim desmantelar a ação estrutural dos memes selecionados e da gestão do Complexo, promovendo, destarte, uma fantástica "emergência da consciência coletiva", a qual é, a priori, impossível. Assim como não ocorreu nos anos 1960-70 – quando a humanidade enfrentava a possibilidade de extinção mediante um apocalipse nuclear (era um conflito controlado pelo Complexo, claro) e a contracultura floresceu para logo depois ser assimilada pelo sistema mercantil – esse utópico despertar coletivo de consciência rumo à paz, ao amor e ao cuidado não ocorrerá, e mesmo que ocorresse já seria tarde demais para salvar a existência humana nesse planeta. As pessoas insiders das subculturas pacifistas sofrem da típica versão subcultural do sofisma da composição: possuem um viés cognitivo que as faz achar que algo dominante em sua subcultura e pelo que militam está ficando dominante, hegenônico no mainsteam. Dessa maneira, o pacifista, de tanto conviver com outros pacifistas, de tanto tomar conhecimento de histórias de transformação, acaba acreditando que o mundo está em franca e acelerada mudança rumo a uma era de luz. Ocorre que a velocidade dessa suposta revolução é muito mais lenta que a velocidade com a qual a humanidade está destruindo o único planeta que "tem" para habitar. *8.4.5.1 A violência, tão associada culturalmente à masculinidade (mas também presente na expressão cultural do feminino), teve, evidentemente, um papel fundamental para a sobrevivência da humanidade na luta pela sobrevivência diante da hostilidade da natureza e das outras espécies que habitam o planeta. Porém, com o avanço do progresso tecnológico (em paralelo à não progressão da natureza humana rumo a algo melhor), e com o consequente aumento da capacidade de destruição por ele possibilitado, a violência civilizacional humana se tornou uma armadilha fatal para a humanidade e para os demais seres que habitam a Terra. **8.4.5.2 "Atribuir ao processo histórico uma significação, fazê-la surgir de uma lógica imanente ao devir é admitir, mais ou menos explicitamente, uma forma de providência. (...) Passar de uma concepção teológica ou metafísica para o materialismo histórico é simplesmente mudar de providencialismo. Se adquiríssemos o hábito de olhar para além do conteúdo específico das ideologias e das doutrinas, veríamos que se prevalecer de alguma delas mais do que de outras não implica, em nenhuma hipótese, qualquer demonstração de sagacidade." (Cioran, em Ensaio sobre o pensamento reacionário) ***8.4.5.3 Se a natureza humana fosse outra e melhor, quaisquer sistemas de organização social, incluso os já vigentes aí na Terra, seriam suficientes para transformar a vida humana em uma experiência paradisíaca (a qual, conforme relata Homero, foi experimentada e descartada por Odisseu, pois ele julgou ser-lhe insuportável nela permanecer – afinal, conforme asseverou Schopenhauer, nenhuma outra existência senão essa de privação, dor e sofrimento é vivível por nós; o que seríamos de nós como multivíduos e como civilizações sem o Outro constituído por nossos problemas e fracassos?). Uma falha de viés otimista na concepção ontológica da natureza (humana) pode ser sempre encontrada na fundamentação discursiva de qualquer utopia, pois toda utopia precisa, sob pena de inexistir, pressupor falsificadamente saber o que a natureza (humana) é e pode vir a ser.) Além disso, essas civilizações-granja são planejadas para serem descartáveis e, em seu processo suicida de dissolução, maximizarem sua produção. Após o cultivo não intensivo de cerca de 100 bilhões de vidas humanas nos últimos 180 mil anos, o Sistema Terra, no fulminante Antropoceno, chega à maturidade, ao pico planejado da produção, viabilizando assim a exaustão dos atuais recursos do planeta para a realização efetiva (efetividade = eficácia + eficiência) do reboot do Sistema. A Terra, ao fim do presente ciclo produtivo, irá, daqui a milhões de anos, curar-se da infecção humana, e será regenerada por si mesma ao se livrar desses parasitas que somos nós (ou melhor, agora, vocês), e, quem sabe, será usada novamente (pelos seus proprietários) para esse mesmo fim – numa espécie de “sistema de rodízio de cultivo” – ou para tantos outros fins corporativos demandados pelo Complexo. (8.4.6 O natimorto acordo da COP21 (anunciado e festejado dias antes do meu suicídio) é, como seus antecessores, mera fantasia (que a priori não tem como ser cumprida) cujo principal objetivo é dar verniz de legitimidade (ao sinalizar para uma mudança necessária mas que não ocorrerá) ao processo de inflação populacional – e assim maximizar a produção do Sistema Terra (o que, no fim das contas, é a razão instrumental de toda a vida aí nesse planeta). Ou seja, o objetivo do acordo é não ser cumprido e servir, junto com futurismos otimistas veiculados pela mídia, de mera cortina de fumaça para a parte do populacho preocupada, com razão, com a sustentabilidade da civilização humana, dessa máquina omnicida que transforma os recursos do planeta nas mercadorias psicotrópicas demandadas pelo Complexo para oferta no mercado cósmico.)
8.4 (8.4.1 Depois de tantos petabytes de desinformação histérica produzidos sobre o suposto fim do mundo que ocorreria no final de 2012, como não se deixar levar pelo ceticismo diante de novos e peremptórios anúncios do fim dos tempos?) Descobri, ainda, que os biogestores do Sistema Terra sabem que a forma como os humanos estão vivendo aí é insustentável e que essa civilização humana de alta entropia está atualmente em seu estertor (eles sabem que, em virtude da forma violenta pela qual os humanos se comunicam entre si e consigo mesmos (no íntimo de suas mentes), a civilização ruirá por ser incapaz de construir um convivialismo que permita uma dialética não-suicida entre competição e cooperação). Sabem, inclusive – e obviamente já estão preparados para isso –, que, ao longo da década de 2030, * a sexta extinção em massa * (causada pelo próprio parasitismo insano e irresponsavelmente suicida de uma humanidade cegada às limitações termodinâmicas do planeta por causa do delírio do crescimento econômico infinito ensejado pelo ciclo pantagruélico de autovalorização do deus-capital, o qual, como todo deus(-ogro), não aceita dividir seu altar com mais ninguém) tornará a Terra inabitável para o design dos corpos humanos: seu suicídio e o genocídio de boa parte da vida contemporânea do planeta será o – lucrativo – legado final do Homo perturbatus. O apocalipse humano é uma ótima oportunidade para os negócios... do Complexo. (8.4.2 O comportamento irresponsável que caracteriza o mainstream cultural da humanidade há milênios e cujo acme é o capitalismo global é pautado (hedonistamente) por uma privatização dos benefícios e por uma terceirização dos custos – os quais são transferidos para outros seres, considerados pessoas ou não, no presente e/ou para um futuro ignorado. A própria ciência econômica hegemônica sacramenta esse comportamento ao hipostasiar como "racional" a maximização da utilidade multidividual no curto prazo (esquecendo apenas do detalhe de que uma civilização do tipo zero* pautada por essa regra entra em conflito com as leis termodinâmicas do universo). Às favas o futuro, pois, como já dizia em 1923 o illuminatus Keynes, "no longo prazo estaremos todos mortos" (quem precisa de ortodoxia com uma "heterodoxia" como essa?). Esta irresponsabilidade é fruto de uma consciência reificada e de uma racionalidade instrumental incapazes de reconhecer a interconexão entre todos os seres e elementos. Os povos "primitivos" não tinham (e alguns ainda conseguem não ter) esse nível de reificação da consciência** e consideravam, dentro da limitação de seu mapeamento cognitivo, a natureza "sagrada", e por isso mesmo buscavam viver em harmonia com ela. Porém, já na primeira página da Bíblia Sagrada selou-se o destino da humanidade e do atual ciclo de vida na Terra ao colocar-se na boca do demiurgo patriarcal Jeová a ordem fálica para instrumentalizar a natureza ao bel prazer humano, sacramentando assim a carnificina cega e estupidamente autodestrutiva. *8.4.2.1 Quanto à escala de Kardashev, a história da vida no universo registra que apenas conseguiram passar do tipo zero ao tipo I (noosférica) algumas das civilizações que tiveram a sorte de surgir em um sistema solar no qual havia mais de um planeta habitável. Ou seja, mesmo sem a intervenção dos anunnaki os hominídeos da Terra provavelmente já estavam previamente condenados. **8.4.2.2 A divisão social do trabalho alimenta a falsificação da consciência (a produção da consciência reificada) e, consequentemente, também alimenta a irresponsabilidade moral e a hipocrisia. Por exemplo, enquanto um índio tem plena consciência do que significa matar para viver, um civilizado da classe média para cima consome quilos e quilos de carne mensalmente, os quais, vendidos em cortes padronizados e embalados assepticamente, perderam qualquer vínculo significativo com os corpos dos animais dos quais fizeram parte. Até o sangue residual deve ser eliminado: na glutonaria do espeto-corrido, o bom-tom é solicitar a carne bem-passada. Esse mesmo civilizado, que pode ter comido voluptuosamente vários corações de galinha no almoço, não teria coragem de matar, esquartejar e desossar ele próprio a sua refeição necrófaga; todavia ele se preocupa, hipocritamente, em não matar uma joaninha ou uma mariposa que por ventura adentre a sua sala de estar.) A presente teia da vida em Gaia está nos momentos finais antes de seu total esgarçamento (trata-se de era epilogal tanto para a biosfera quanto a para tecnosfera e, outrossim, para a utopia de uma integração noosférica bem-sucedida protagonizada pelo Homo sapiens) mas para eles – os biogestores do Sistema Terra – nada disso é problema, pois, tal como um agricultor predatório que não se importa em exaurir o solo em que cultiva, o Complexo já tem um planeta análogo à Terra prontinho para receber todos os serviçais que no momento estão rumando com todo vapor à débâcle sistêmica de sua civilização-granja. Não há como parar, endogenamente, essa reação em cadeia que é, simultaneamente, tanto o fundamento da "glória" da humanidade quanto o de sua inevitável ruína – o ponto de não-retorno já foi ultrapassado. (8.4.3 Enquanto nas sociedades (nômades ou agrárias) tradicionais prevalecia uma noção de tempo cíclico, a mitologia capitalista (industrial e pós-industrial) – a fim de eternizar (e assim legitimar) essa construção social suicida (em uma civilização do tipo zero...) – criou um tempo eterno, no qual nunca se dorme e sempre se está destruindo a natureza, criando mercadorias, produzindo, distribuindo e consumindo. O tempo eterno do ciclo de autovalorização do capital transformou-se superestruturalmente – na falsa consciência ideológica burguesa – no tempo oficial, em substituição ao tempo cíclico das sociedades tradicionais, cuja consciência mantinham um intercâmbio bem mais expressivo com (os ciclos d)a natureza. Esta eternidade ilusória está, obviamente e enquanto construção histórica, ela própria condenada à dissolução (ou seja, ela também cumpre um ciclo) – como é insustentável viver uma mentira, cedo ou tarde fica impossível negar os fatos, e os custos dessa negação são diretamente proporcionais ao tempo em que se resiste em abandoná-la (no caso dessa atual civilização aí, já está claro que o custo a ser pago será, conforme o planejado, a vida de todos os seres humanos, a maioria dos quais perecerá, contando a partir de hoje, no prazo de cerca de duas décadas e meia, embora uma minoria "sortuda" postergará em vão, em um after (em um pós-apocalipse*), a agonia da extinção vivendo em bunkers). *8.4.3.1 Os filmes pós-apocalíticos geralmente erram feio por imaginar que com o fim da civilização somem magicamente os problemas ambientais criados por ela (pois, afinal, raramente esses filmes concebem o fim da civilização como decorrente de um Armagedom ecológico) – como se a civilização fosse desligar com segurança os mais de 1.000 reatores nucleares atualmente em atividade antes de fechar as portas, como se todo o lixo nuclear já produzido fosse ser gerido adequadamente pelo humanos do "neoneolítico", como se os feedbacks positivos engatilhados pela húbris do projeto iluminista na geofísica do planeta fossem se desarmar sozinhos, e como se a espiral descendente biosférica decorrente do metabolismo civilizacional fosse se reverter espontaneamente... A natureza não é tão feérica quanto o imaginário reificado que dela se construiu.) (8.4.4 A atual civilização humana – inebriada pelo delírio capitalista e rumo ao pico da produção no Sistema Terra – consome vorazmente combustíveis fósseis (isto é, corpos putrefatos de seres mortos há milhões de anos) para assim acessar um estoque imemorial de energia solar que está neles armazenada. Ou seja, essa civilização é energeticamente deficitária e vive às custas de energia do Sol acumulada no passado geológico – energia cujo estoque não é renovável (isso, portanto, sinaliza para um colapso). Como essa energia está acumulada na forma de matéria orgânica e como ela é liberada mediante combustão deste material, o seu usufruto tem como uma de suas contrapartidas (além das geopolítcas...) a liberação de gases do efeito estufa (o mesmo efeito sem o qual não haveria a exuberância de vida na Terra), liberação essa que muda a dinâmica geofísica do planeta (a qual é, obviamente, a base da teia da vida (humana) aí encarnada) e, isso, em conjunto com a destruição da biosfera para obter outras matérias-primas (além da energia – e vale lembrar ainda que o petróleo também é fonte do hodiernamente onipresente plástico) para a orgia mercantil capitalista e em conjunto com a produção gigantesca de lixo (adivinhem por quem e o porquê?), sinaliza para outro colapso. A humanidade está de joelhos entre esses dois abismos e o pior ainda está por vir. Como diria Cioran, o qual elevou, na história da Filosofia, o pessimismo ao seu paroxismo, "o futuro nos espera para imolarmo-nos". Vocês aí estão no dealbar da era de ouro do pânico, mas não se esqueçam ao menos de usar filtro solar...) Cada notícia ruim que a mídia corporativa veicula, bem como cada notícia ruim que decide suavizar ou mesmo não veicular, é apenas mais um sinal indicativo da iminente catástrofe final dessa dessa civilização esgotada que arfa no estertor de sua crise agônica. Do ponto de vista do atual ciclo da vida aí na Terra, o que está em andamento a todo vapor é a derradeira e definitiva "tragédia dos comuns". (8.4.5 Enquanto a Europa estava mergulhada nas trevas da Idade Média, o polímata muçulmano Ibn Khaldun, precursor das ciências sociais, já havia notado o padrão segundo o qual sociedades sedentárias (pacíficas ou pouco violentas) são dominadas por sociedades nômades (virilizadas, militarizadas e bastante violentas) (é o que resta de barbárie em uma sociedade em processo de pacificação e de "evolução moral" que ainda a protege de ser engolida pela barbárie externa; portanto, são as forças bárbaras internas ao Ocidente que ainda defendem "o estilo de vida ocidental" diante do barbarismo externo, seja russo, seja chinês, seja islâmico, etc.: se o barbarismo sumisse da cultura Ocidental, como querem os pacifistas e reformadores do mundo, não haveria ninguém para fazer o trabalho sujo de usar a força bruta para defender os "valores ocidentais" face à vontade de poder externa). O processo de seleção societal selecionou (guiado pela administração do Complexo, é claro), ao longo de milênios, sociedades marcadas memeticamente pela violência*, pela irresponsabilidade, pelo descuidado, pelo desperdício conspícuo, pela reificação, pela hipocrisia, pelo hedonismo suicida, pela corrupção, etc. A hodierna civilização capitalista global não criou esses memes (o que é ignorado pela maioria dos críticos ingênuos do capitalismo, os quais se equivocam ao acharem que, só porque todos os problemas humanos atualmente têm ramificações no ubíquo metabolismo capitalista, bastaria destruir esse modo de produção e todo infortúnio humano magicamente sumiria) – apenas (e)levou a sua expressão à máxima eficiência (construindo uma aldeia global pretensamente racional, na qual cada caloria de alimento produzida consome em média 10 calorias de combustíveis fósseis). Muito menos é possível "jogar a culpa" isoladamente na figura do Estado, como se Hobbes nunca tivesse existido (de todas as ideologias que estão atualmente na moda aí na Terra, nenhuma me parece mais idiota** do que a anarcocapitalista, a qual promove o elogio de uma flagrante distopia que, no mais, é evidentemente equivocada ontologicamente***, pois o PNA – Princípio da Não Agressão – é uma completa piada, um otimismo ingenuíssimo, de dar pena). Embora – e esse aspecto é especialmente tragicômico – todo multivíduo (com exceção dos casos mais graves de psicopatia) tenha, stricto sensu, a estrutura biológica e "espiritual" necessária e suficiente para romper com esses memes (e essa mesma estrutura é essencial para o multivíduo produzir os produtos do interesse do Complexo...) e, assim, viabilizar, em (falsa) teoria, uma emancipação da sociedade rumo à paz e à sustentabilidade (ou seja, como defendiam Marx, Rousseau, Saint-Exupéry, Skinner, Marshall Rosenberg e outros otimistas ontológicos, o problema, nesse nível, não é na natureza humana!), um rompimento societal, da coletividade, é, na prática (efetivamente), impedido pela atuação inercial/estrutural desses memes que foram imemorialmente selecionados, bem como pela atuação administrativa dos biogestores do Sistema Terra. Na práxis, apenas alguns multivíduos chegam, pontualmente e como um resíduo dialético da liberdade social para destruir, a realizar esse rompimento. O desconhecimento dessa realidade leva a fantasias utopistas que afirmam que tal processo pontual, residual e particular de emancipação poderia de alguma forma surreal ser generalizado e assim desmantelar a ação estrutural dos memes selecionados e da gestão do Complexo, promovendo, destarte, uma fantástica "emergência da consciência coletiva", a qual é, a priori, impossível. Assim como não ocorreu nos anos 1960-70 – quando a humanidade enfrentava a possibilidade de extinção mediante um apocalipse nuclear (era um conflito controlado pelo Complexo, claro) e a contracultura floresceu para logo depois ser assimilada pelo sistema mercantil – esse utópico despertar coletivo de consciência rumo à paz, ao amor e ao cuidado não ocorrerá, e mesmo que ocorresse já seria tarde demais para salvar a existência humana nesse planeta. As pessoas insiders das subculturas pacifistas sofrem da típica versão subcultural do sofisma da composição: possuem um viés cognitivo que as faz achar que algo dominante em sua subcultura e pelo que militam está ficando dominante, hegenônico no mainsteam. Dessa maneira, o pacifista, de tanto conviver com outros pacifistas, de tanto tomar conhecimento de histórias de transformação, acaba acreditando que o mundo está em franca e acelerada mudança rumo a uma era de luz. Ocorre que a velocidade dessa suposta revolução é muito mais lenta que a velocidade com a qual a humanidade está destruindo o único planeta que "tem" para habitar. *8.4.5.1 A violência, tão associada culturalmente à masculinidade (mas também presente na expressão cultural do feminino), teve, evidentemente, um papel fundamental para a sobrevivência da humanidade na luta pela sobrevivência diante da hostilidade da natureza e das outras espécies que habitam o planeta. Porém, com o avanço do progresso tecnológico (em paralelo à não progressão da natureza humana rumo a algo melhor), e com o consequente aumento da capacidade de destruição por ele possibilitado, a violência civilizacional humana se tornou uma armadilha fatal para a humanidade e para os demais seres que habitam a Terra. **8.4.5.2 "Atribuir ao processo histórico uma significação, fazê-la surgir de uma lógica imanente ao devir é admitir, mais ou menos explicitamente, uma forma de providência. (...) Passar de uma concepção teológica ou metafísica para o materialismo histórico é simplesmente mudar de providencialismo. Se adquiríssemos o hábito de olhar para além do conteúdo específico das ideologias e das doutrinas, veríamos que se prevalecer de alguma delas mais do que de outras não implica, em nenhuma hipótese, qualquer demonstração de sagacidade." (Cioran, em Ensaio sobre o pensamento reacionário) ***8.4.5.3 Se a natureza humana fosse outra e melhor, quaisquer sistemas de organização social, incluso os já vigentes aí na Terra, seriam suficientes para transformar a vida humana em uma experiência paradisíaca (a qual, conforme relata Homero, foi experimentada e descartada por Odisseu, pois ele julgou ser-lhe insuportável nela permanecer – afinal, conforme asseverou Schopenhauer, nenhuma outra existência senão essa de privação, dor e sofrimento é vivível por nós; o que seríamos de nós como multivíduos e como civilizações sem o Outro constituído por nossos problemas e fracassos?). Uma falha de viés otimista na concepção ontológica da natureza (humana) pode ser sempre encontrada na fundamentação discursiva de qualquer utopia, pois toda utopia precisa, sob pena de inexistir, pressupor falsificadamente saber o que a natureza (humana) é e pode vir a ser.) Além disso, essas civilizações-granja são planejadas para serem descartáveis e, em seu processo suicida de dissolução, maximizarem sua produção. Após o cultivo não intensivo de cerca de 100 bilhões de vidas humanas nos últimos 180 mil anos, o Sistema Terra, no fulminante Antropoceno, chega à maturidade, ao pico planejado da produção, viabilizando assim a exaustão dos atuais recursos do planeta para a realização efetiva (efetividade = eficácia + eficiência) do reboot do Sistema. A Terra, ao fim do presente ciclo produtivo, irá, daqui a milhões de anos, curar-se da infecção humana, e será regenerada por si mesma ao se livrar desses parasitas que somos nós (ou melhor, agora, vocês), e, quem sabe, será usada novamente (pelos seus proprietários) para esse mesmo fim – numa espécie de “sistema de rodízio de cultivo” – ou para tantos outros fins corporativos demandados pelo Complexo. (8.4.6 O natimorto acordo da COP21 (anunciado e festejado dias antes do meu suicídio) é, como seus antecessores, mera fantasia (que a priori não tem como ser cumprida) cujo principal objetivo é dar verniz de legitimidade (ao sinalizar para uma mudança necessária mas que não ocorrerá) ao processo de inflação populacional – e assim maximizar a produção do Sistema Terra (o que, no fim das contas, é a razão instrumental de toda a vida aí nesse planeta). Ou seja, o objetivo do acordo é não ser cumprido e servir, junto com futurismos otimistas veiculados pela mídia, de mera cortina de fumaça para a parte do populacho preocupada, com razão, com a sustentabilidade da civilização humana, dessa máquina omnicida que transforma os recursos do planeta nas mercadorias psicotrópicas demandadas pelo Complexo para oferta no mercado cósmico.)
8.5 Quanto a Deus, se é que existe, parece ter abandonado sua criação à própria sorte (pelo menos nesse nível da realidade). Talvez tenha se cansado de nós. Talvez sejamos apenas uma diversão que ele observa sadicamente à distância. Talvez sejamos parte de um experimento ou simulação atrelado a alguma pesquisa. Talvez ele próprio esteja escondido aqui fora, ou mesmo, por que não?, até mesmo aí na Terra, disfarçado (quiçá até de si mesmo). Talvez ele nem se lembre quem é (como já especulava Escoto Erígena no século IX). Talvez o nível 4-D seja uma espécie de inferno dos outros níveis do universo (ou mesmo os vários níveis superiores sejam uma espécie de paraíso do nosso nível – embora o universo por nós conhecido não dê evidência de ser regido por qualquer teleologia moral). Ou, ainda, talvez todos nós sejamos Deus, como pretendem os panteístas. (8.5.1 Se esse universo for uma simulação, parece-me muito mais provável que a relação qualitativa entre a(s) consciência(s) que simula(m) (“ele(s)”) e as consciências simuladas (“nós”) não seja uma relação de observador(es)/observados (como ocorreria em um experimento científico), tampouco uma relação de controlador(es)/controlados (como ocorreria em um videogame), ou ainda uma relação de uso instrumental (como é a de vocês com as leveduras que fermentam seus álcoois e seus pães e é a da elite cósmica com vocês), mas sim uma relação de vivência, de irrealidade de imersão, quiçá até acrescida de uma de simbiose, na qual o(s) autor(es) desse mundo é/são simultaneamente o(s) seu(s) protagonista(s) (na qual o sujeito do conhecimento, que observa, é também o sujeito que deseja, que vive). Todos nós conhecemos esse tipo de relação qualitativa em nossos sonhos. Como já dizia Calderón no séc. XVII (e como já disseram muitos outros, a exemplo de Descartes, antes e depois dele), “a vida é sonho”. Se insistirmos na hipótese matrixiana de que esse nosso universo é uma simulação computacional criada por uma espécie de civilização (muito) mais avançada, eu apenas faria o adendo de que me parece bem mais plausível que ao menos um dos cidadãos dessa civilização está vivendo essa simulação na condição de protagonista monista dessa virtualidade onírica do eterno retorno do mesmo – detalhe esse que, aliás, (1) tornaria essa simulação bem mais “real” e portanto eficaz em seus objetivos miméticos, (2) explicaria essa sensação que as mentes filosóficas têm de que esse mundo é um epifenômeno de um outro, e (3) explicaria (para além de truísmos baseados na seleção natural), na condição de síntese entre o panteísmo e o solipsismo, o porquê de termos em nossas consciências a simultaneidade da sensação de sermos tudo com a evidência de não sermos nada (sentimo-nos vivendo em uma irrealidade, mas ao mesmo tempo sentimos o âmago de nossas consciências como sendo real; ou seja, sentimo-nos, no âmago de nossas autoconsciências, como algo real imerso em uma irrealidade). Destarte, nesse caso a máquina não estaria vazia.) Também não podemos descartar a hipótese de que esse mau demiurgo tenha simplesmente cometido suicídio ao acabar por inclinar sua predileção ao Nada. Embora abundem especulações, o fato é que simplesmente não sabemos A Verdade sobre Deus. Por ora, o posicionamento mais razoável quanto ao problema de Deus parece ser o apateísmo. Seja como for, nesse nível da realidade onde eu agora estou, Deus está ausente e não tem qualquer papel nos processos naturais conhecidos, tampouco como fundamento da moral (para a ruína da "razão prática" de Kant e de muitos dos argumentos deístas). E obviamente aí na Terra não é diferente: para efeito da vida aí no "pálido ponto azul", “Deus” é só mais uns dos slogans para controle da patuleia ignara. A religiosidade e a utopia são, simultaneamente, fruto da miséria e protesto contra a miséria. (8.5.2 A humanidade passou de uma sociedade tradicional na qual as pessoas eram embriagadas por fantasias religiosas para uma sociedade do espetáculo pós-moderna e niilista na qual as pessoas são embriagadas por delírios ficcionais sem fim do entretenimento midiático e do consumismo hedonista, e na qual muitas, em especial as mais pobres, ainda permanecem dóceis e submissas ao opiáceo religioso: a rigor, a maioria das pessoas, asfixiada pelo ar irrespirável de um sistema completamente corrupto, nunca se importou muito com a realidade, pois essas pessoas não têm, nem querem ter, a maturidade intelectual e emocional para isso. A rigor, o que Claude Lévi-Strauss chamou de “pensamento selvagem”, e que podemos também chamar de pensamento mágico, jamais desapareceu de nossas culturas pretensamente emancipadas da irrazão pelo esclarecimento iluminista. O pensamento racional verdadeiro, e não essa sua falsificação no senso comum, não tem nada de espontâneo, mas, ao contrário, exige um contínuo esforço e um custoso compromisso, os quais poucos seres humanos têm a condição e sequer a disposição anti-comodista em realizar. Como ter alguma esperança na humanidade enquanto em plena segunda década do século XXI os adolescentes e os jovens adultos – essa geração que se julga a mais sábia que já pisou na Terra – orientam suas decisões pela astrologia? Isso é o melhor que a aclamada "era da (des)informação" é capaz de produzir...) Profetas e líderes religiosos, quando não são mesmo charlatões (e muitas vezes o são – porém não sempre), estão sendo tão enganados quanto seu rebanho. Todas as deidades e guias diante das quais vocês aí, idólatras por instinto, se curvam e imploram por algum alento e algum abrigo são, isso quanto têm alguma existência real para além das vossas imaginações carentes, avatares dos gestores da vida aí na Terra, que operam a serviço empresarial do Complexo. Enquanto vocês continuarem a aceitar – e mesmo a pedir por ela – a sua condição de rebanho de algum líder messiânico e de sua respectiva doutrina espúria de servidão disfarçada de emancipação utópica, vocês continuarão ratificando o contrato que permite ao Complexo alienar as suas vidas para fins alheios aos seus próprios interesses. Ninguém, seja profeta, messias, deus, santo, filósofo, político, celebridade, atleta, CEO, popstar, etc. – nenhum intermediário – pode lhes salvar de seu próprio desejo de serem servos. Godot nunca chegará. Vocês – por medo ensejado pelo esquecimento do véu de Maya terrestre e alimentado pela pobreza escandalosa de uma realidade sem horizontes – trocam sua liberdade efetiva pela esperança de ter uma liberdade que acham (e querem achar) que não têm. Qualquer um que promete apaziguar suas consciências consegue lhes tirar a autonomia – como se um apaziguamento fosse possível mediante a traição de si mesmo. Seus senhores apenas parecem-lhes grandes porque vocês estão de joelhos diante deles. (8.5.3 "Fazer-se valer era, e é o sonho humano. É difícil crer que haja sacrificado o paraíso por simples desejo de conhecer o bem e o mal; ao contrário, é perfeitamente possível imaginá-lo arriscando tudo para ser alguém. Corrijamos o Gênesis: se pôs a perder sua felicidade inicial, foi [tal como Lúcifer] menos pelo apetite à ciência que por apetite à glória" (Cioran). Para o pensador romeno, a crença em Deus é a pior das humilhações.)
8.6 Nessa mise-en-scène lúgubre no qual vocês vegetam, a autonomia multividual teria que ser construída mediada pela desconstrução do comodismo da servidão voluntária. Não é possível emancipar-se sem assumir o ônus da própria liberdade. Quando nos eximimos de dominar a nós mesmos, alguém o faz por nós. A fim de se atingir esse objetivo de autonomia, far-se-ia necessário romper com uma cultura que facilita com que as pessoas e as instituições não assumam a responsabilidade sobre suas próprias escolhas. Responsabilizar-se exige maturidade intelectual e, principalmente, maturidade emocional, pois passa por encarar sem eufemismos os impactos das próprias ações (apenas pessoas medíocres – e, portanto, covardes – usam eufemismo, excetuando-se o uso instrumental com o fito de seduzir ou persuadir; mais sintomático ainda: apenas pessoas medíocres pensam com eufemismos). O fato das pessoas serem induzidas a fazer escolhas dentro de contextos bem limitados (como, por exemplo, escolher entre ser escravo ou ser torturado até a morte, ou ainda entre ser um assaltante ou trabalhar 12 horas por dia em condições insalubres para ganhar menos de um salário mínimo (pois é essa que, segundo a ciência econômica "axiologicamente neutra", é a remuneração eficiente de um trabalho de baixa produtividade e de baixa qualificação)) não tira delas a responsabilidade; mas, inversamente, o fato das pessoas escolherem dentro de horizontes restritos não elimina a responsabilidade daqueles que constroem coletivamente o contexto (no caso, todas as pessoas, em proporcionalidade ao seu poder social, e portanto à sua posição dentro da divisão social e cósmica do trabalho e do poder). A responsabilidade é dialeticamente compartilhada, pois todos estão envolvidos – não existem inocentes. O fato de sermos responsáveis por como reagimos a algo não tira a responsabilidade do agente da ação à qual reagimos. Se a ontologia do ser social pretende ser realista em seu diagnóstico e eficaz no tratamento que propõe, ela deve pautar-se pela desreificação proveniente de um construtivismo empático, buscando, assim, escapar dialeticamente da armadilha antinômica tão recorrente ao aristotelismo vulgar (e caricato) do senso comum: o determinismo coitadista (usualmente predominante na esquerda política) e o voluntarismo sem escrúpulos (usualmente predominante na direita política). O coitadismo, a fracassomania e a vilanização do outro – que alimentam o ciclo de irresponsabilidade e violência – são formas viciadas de culpar outrem e assim negar nossas responsabilidades sobre nossas escolhas, nossos sentimentos e nossas ações, e são frutos essencialmente de uma imaturidade emocional, a qual não surpreende que abunde em uma sociedade na qual as pessoas, sempre sendo manipuladas entre a pressa do urgente e a distração da futilidade (ou em eterna preparação para vencerem o "jogo da vida" do capitalismo (considerar a vida um jogo é trapacear no jogo da vida)), em geral não recebem educação emocional para além de livros de autoajuda pollyânicos e de comédias românticas piegas que se passam em universos paralelos (em não-lugares: utopias) nos quais a vida é mais simples, e onde tudo acaba bem. Outrossim, a incapacidade de metabolizar o sofrimento alheio (ou mesmo o próprio), fruto da mesma imaturidade emocional, é a base do desprezo e do sadismo (a violência floresce quando não sabemos o que fazer com o sofrimento decorrente de necessidades não atendidas), os quais atualmente são celebrados como “zoeira”, “liberdade de expressão”, “politicamente incorreto”, "lacrar", "sambar na cara da sociedade", etc. A imaturidade emocional das massas entorpecidas é condição precípua à sua bioadministração, e é construída pela sociedade verticalmente hierarquizada, com o protagonismo da comunicação violenta, da família patriarcal, da noção retributiva de justiça, e do sistema educacional, o qual por sua vez tem como função básica ensinar a submissão e a alienação, essa última fomentada pela memorização de informações irrelevantes e desconexas (como se isso fosse conhecimento e pensamento racional), em detrimento de uma integração entre a maturidade racional, a maturidade emocional e a maturidade corporal (o racional-imaginário (cognitivo), o emocional-afetivo e o sensorial-corporal* são dimensões inelimináveis da natureza dos seres culturais encarnados, e qualquer deontologia que não busque uma homeostase, um equilíbrio** dinâmico, dessas três dimensões, como os trabalhos de Gurdjieff alegam buscar, está fadada ao fracasso de sua pretensão emancipatória devido à sua própria pobreza ontológica), enquanto o chamado "ensino superior" foca-se em preparar as pessoas (ou melhor, o que sobrou delas) para empregos que elas nunca terão. (*8.6.1 "Toda metafísica começa com uma angustia do corpo, que se torna depois universal; de forma que os inquietos por frivolidade prefiguram os espíritos autenticamente atormentados", Cioran; "Uma coisa, entretanto, é certa: o corpo humano é o ator principal de todas as utopias. O sonho de um corpo imenso, o mito dos gigantes, de Prometeu, é uma utopia.", Foucault. Toda não-homeostase entre corporeidade, cognição e afetividade é conveniente à promoção das miragens mercantis capitalistas, bem como às religiosas e políticas; portanto, a ataraxia decorrente de um conectoma maduro (adulto, emancipado) não é de forma alguma objetivo do biopoder estabelecido, e toda a dinâmica societal tende a empurrar os multivíduos na direção contrária desse estado mental. **8.6.2 "Quando conhecemos o equilíbrio, não nos apaixonamos por nada, não nos apegamos nem à vida, porque somos a vida" (Cioran, em História e utopia).) Construir, tanto como multivíduo quanto como coletividade, a maturidade emocional passa inevitavelmente pela integração de nossa sombra junguiana (como diz Jung, ninguém se torna iluminado por imaginar formas de luz, mas sim por tornar consciente a escuridão). Esses processos de integração passam, por sua vez, fundamentalmente pela autocrítica, a capacidade de pensar contra si mesmo ("A autocrítica da razão é sua mais autêntica moral", Adorno); porém, orientadas por um mapeamento cognitivo superegoico intoxicado pela lei do talião (em detrimento de uma justiça restaurativa) e pelos princípios da identidade e do terceiro excluído, e ainda sem se darem ao esforço de buscar uma melhoria de si próprias, as pessoas fazem de tudo para não enfrentar a si mesmas e, assim, não admitirem seus erros para não "merecerem" (segundo essa lógica necrófila) ser castigadas (inversamente, inventam falsos "méritos" para "merecerem" recompensas). Quanto mais viciado o mapeamento cognitivo do Zeitgeist, maior terá que ser o esforço de cada multivíduo para, apesar do contexto no qual está inserido, quebrar o ciclo vicioso de sua servidão e manter-se vivo e lúcido para que esse processo não seja abortado e sua memória não seja novamente apagada. (8.6.3 Quanto à autocrítica: A coragem, unida à prudência, aqui é essencial, pois nunca se estará previamente preparado o suficiente para um empreendimento como esse (é inútil esperar pelas condições ideais, pois elas jamais chegarão); e por mais inteligente e corajoso que se seja, não há garantia de sucesso – como bem ilustra o caso de Nietzsche, cujo grande e fatal erro foi insistir no amor fati**. Já que falei nele, eu vejo a obra de Nietzsche como um mero tropeço entre as obras de Schopenhauer (a qual ele fez de tudo para em vão tentar refutar) e do anti-Zaratustra* Cioran, tropeço esse que foi muito bem-vindo aos interesses ideológicos da elite sedenta de poder (incluso dos nazistas, que supostamente compreenderam o filósofo de forma errônea – o que certamente foi facilitado pela falta de compromisso de Nietzsche com a clareza) e de adolescentes ingênuos cuja cobiça de gozo não conhece limites. *8.6.3.1 "Comparado com seus Pensamentos, Assim falou Zaratustra é um sistema de ilusões. Nietzsche deveria ser gritado; é o que teria que se fazer com todos os arautos de ilusões" Cioran, em O livro das ilusões. **8.6.3.2 O pessimismo sem o * odium fati * não raro leva à opção por essa menoridade, essa pequenez, conhecida por conservadorismo, para onde também usualmente leva o otimismo quando ele se volta ao elogio publicitário do presente (e de todo legado do passado necessário para chegar-se aonde a civilização chegou: a essa maravilha estonteante de locus histórico...) em vez de focar no sonho (utópico) de construir um mundo melhor no futuro – sonho esse que, por mais otimismo que exija ao propor uma possibilidade de melhoria, implica em admitir-se previamente que o mundo atual, e portanto a respectiva vida que ele oferece, não valem a pena, não são dignos do esforço que exigem diuturnamente (admissão essa que nada tem de otimista) (mas há também casos, como ilustra o kardecismo, em que otimismo e elogio do presente se misturam com utopismo e promessa de um futuro melhor, pois acredita-se que estamos em franco processo evolutivo, do bom rumo ao ótimo, tudo encaminhando-se ao melhor possível). O conservadorismo animado pelo pessimismo pressupõe o amor fati, na medida em que defende a autopoiese de “tudo isso que aí está” (ou “esteve”, no caso do reacionarismo, desse conservadorismo piorado, desse arcadismo da mediocridade) em detrimento, uma vez descartadas as ilusões utópicas, da opção pela extinção (nem que decorrente da tentativa, ao que tudo mais que indica vã, de se construir um mundo melhor, como eu já aventava no §118 do meu blog ao falar dos perigos do transhumanismo): opção pela simples não existência. Sim, ainda está debatendo-se (n)essa questão hamletiana***: tendo concluído que o Ser não pode ser melhor do que já é – que o progresso histórico não pode trazer melhoria significativa, que as resoluções de certos problemas criam outros tão ruins senão piores (tipo uma sexta extinção em massa em troca de smartphones), que os heróis de ontem são os vilões de hoje, e que os sonhos etéreos utópicos degeneram em distopias bem concretas tão logo se passe da teoria à prática**** – o conservador esclarecido agarra-se desesperadamente à miséria desse Ser indigno (que é, afinal, tudo o que lhe resta), em vez de ousar abandoná-lo (novamente, aqui, a coragem é crucial): em vez de recusar-se a dar o seu consentimento para com essa cama de gato. (“No assentimento à existência existe uma espécie de baixeza, a qual escapamos graças a nossos orgulhos e a nossos pesares, mas sobretudo à melancolia que nos preserva de um deslize para uma afirmação final, arrancada de nossa covardia. Há coisa mais vil do que dizer sim ao mundo? E, no entanto, multiplicamos sem cessar esse consentimento, essa trivial repetição, esse juramento de fidelidade à vida, negado somente por tudo o que em nós recusa a vulgaridade” Cioran, em Breviário da decomposição.) É essa ligação entre o pessimismo e o conservadorismo que explica a popularidade de Schopenhauer, Nietzsche, Cioran e cia. entre os conservadores mais sofisticados aí da Terra. É mais fácil, por exemplo, ver um schopenhauriano lendo/defendendo Mises (ou outros arautos de distopias, como Olavo de Carvalho em Pindorama), essa caricatura grosseira do liberal econômico (do burguês maquiavelicamente cortês e refinadamente bárbaro), do que os elaborados e espirituosos Deleuze e Zizek (entre tantos outros). Ele, o leitor/apologista de Mises (ou de Olavo, et al.), pode até se achar “o rebelde”, “o (Atlas) revoltado (on ou offline)”, ao fazer isso (e ao denunciar a plenos dedos e pulmões os ardis do marxismo cultural no mundo em geral e do "lullopetismo“no Brasil em particular); mas, contudo vale lembrar que simplesmente nunca houve nem nunca haverá rebeldia alguma em dar seu aceite ao que existe, por mais que se busque travestir esse ato de heroísmo (como pretendeu fazer Nietzsche, também aqui inspirado em Schopenhauer: no elogio que este faz ao heroísmo, conforme ilustra epígrafe da parte IX da presente carta). Recusar a crença na possibilidade de melhoria não implica necessariamente em comprometer-se com (em achar suficiente, em fazer de objeto da sua ação) a miséria escandalosa do que já demasiado existe: este é o erro (decorrente mais de um mau-caratismo do que de uma debilidade da razão) daqueles que, em sendo pensantes, deixam-se seduzir pelo conservadorismo (é verdade que a maioria que se deixa seduzir pelo conservadorismo é de não-pensantes mesmo, por isso que as pessoas mais inteligentes e intelectuais tendem ao esquerdismo, tanto na sua dimensão econômica quanto na moral; não que não haja estupidez na esquerda: ela está, afinal, em toda a parte). Nota: pouco importando o que um liberal econômico (e sua caricatura anarcocapitalista) pense sobre sexualidade e outras questões morais, para mim ele é um conservador: pois o que ele defende é o despotismo pantagruélico do capital, que é o poder hegemônico, mais do que estabelecido; qualquer movimento no sentido de defender o capital, mesmo mediante o paroxismo “revolucionário” anarcocapitalista (ou "libertário" como alguns têm a desfaçatez, ou a ignorância, de chamar), é, para mim, um movimento conservador. ***8.6.3.2.1 Afinal, A Grande Questão para a autoconsciência (ou seja, para a lucidez), à qual todas as outras questões acabam invariavelmente remetendo, sempre foi e ainda é julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida (motivo pelo qual Camus via no suicídio único problema filosófico realmente sério). Por exemplo: a vida é julgada digna de ser vivida quando é defendida a hipótese de que esse universo em geral e a humanidade em particular são a criação bem-sucedida de um arquiteto cuja inteligência, cujo amor e cuja justiça são expressivos, ou mesmo, como ousa-se dizer, são infinitos (hipótese essa que, como sabe qualquer um que, vivendo em plena "era da (des)informação", pensa com honestidade e contra suas próprias fraquezas, carece de quaisquer evidências plausíveis). A figura do magnânimo criador do universo (e a dos deuses, a do mundo místico em geral) possui um papel instrumental de legitimação da vida, de justificação da afirmação do querer-viver, assim como a "mão invisível" das doutrinas liberais econômicas busca legitimar, com a desculpa de explicar, os horrores do capitalismo. Por isso mesmo que a chamada “morte de Deus” revelou, em especial a partir do “desencantamento do mundo” (Weber) promovido pela modernidade, a face lúgubre do niilismo (contra a qual Nietzsche declarou inutilmente guerra com sua “transvaloração dos valores” e a qual – apesar da irrupção historicamente assertiva ao querer-viver terráqueo dessa outra face, a esfuziante, do niilismo que é representada pelo orgia mercantil capitalista – continua, e com toda razão, a ser sedutora para algumas subculturas nas quais predomina o ateísmo, como, entre outras, a dos chamados “metaleiros” e a dos “intelectuais malditos”, esses depressivos profissionais), pois sem a metanarrativa focada na figura de Deus, do arquiteto vitorioso ao qual se deve louvores e tudo o mais, evaporaram-se os argumentos publicitários (as ficções úteis) que o Ocidente inventara para justificar a vida, ou seja, para tentar dar um sentido moral ao horror do onipresente sofrimento humano. Ficou, destarte, a vida sem credibilidade diante da autoconsciência racional terráquea, i.e., sem uma legitimação, ou melhor: sem um artifício escamoteador suficientemente crível para a sua falta de legitimidade (função de escamoteamento essa que, afinal, tenta ainda cumprir o cadáver insepulto de Deus, junto agora com os novos deuses do consumismo, do entretenimento, do amor (romântico), do culto ao trabalho e ao empreendedorismo, da corpolatria, da busca pela saúde perfeita*****, das utopias (espiritual, liberal, comunista, nacionalista, anarquista, e todas as outras) e de suas derivações, etc., e função essa que a ciência, por mais que tentem os cientificistas desde Comte, é a priori incapaz de cumprir). Destruídas todas as ilusões, o que resta? Como ficará melhor esclarecido a diante, o que eu lhes proponho, caros terráqueos – em consonância com Schopenhauer, com Cioran e com outros –, é que se vá audaciosamente até o fim: que se admita essa ilegitimidade da vida em face da autoconsciência, que se reconheça que ela, a vida, é simplesmente um erro (a inconveniência de um tropeço, como já ilustrado alegoricamente há milênios no mito do pecado original), que se admita que não existe saída para o niilismo e que se pare de inventar véus, deuses, utopias, distrações, esperanças, eufemismos sadomasoquistas, etc., na tentativa vã de esconder essa verdade inescapável de que a experiência do Ser é um fracasso desde seu fundamento e de que, portanto, o nosso destino inescapável é o Nada: "Não há nobreza senão na negação da existência, em um sorriso que domina paisagens aniquiladas" (Cioran). *****8.6.3.2.1.1 "Tudo o que nós perseguimos, é por desejo de tormentos. A procura pela saúde é ela mesma um tormento, o mais sutil e o melhor camuflado de todos" (Cioran). ****8.6.3.2.2 "Mostrem-me neste mundo uma só coisa que começasse bem e que não tenha acabado mal. As palpitações mais orgulhosas somem em um esgoto, onde cessam de pulsar, como se houvessem chegado a seu fim natural: esta decadência constitui o drama do coração e o sentido negativo da história. Cada 'ideal' alimentado, no início, com sangue de seus sectários, se deteriora e de desvanece quando é adotado pela massa. Eis a pia de água benta transformada em escarradeira: é o ritmo inelutável do 'progresso'". (Cioran, de novo))
8.7 Como eu já disse no § 112 do meu blog (cuja leitura recomendo), a vida, da forma mais genérica possível, pode ser descrita como o desdobramento da atividade e a consequente complexificação fenomenológica de um * algoritmo autopoietico * subsumido a restrições de recursos (o qual, por sua vez, é a expressão no espaço-tempo 4-D de algo que está para além da realidade que conhecemos, de forma análoga à placa holográfica cujo holograma somos nós; este algo é o sujeito (Atman), a coisa-em-si, desse universo que conhecemos, desse nível da realidade no qual vivemos (e, nessa medida, também nesse aspecto o idealismo platônico acertou em seu diagnóstico roubado dos egípcios)). Tal qual uma sinfonia que retoma sempre a mesma melodia, a vida é uma afirmação de si mesma, ela torna-se uma repetição infinitamente variada do mesmo tema (e esse é o tão buscado "sentido da vida"). Ela vai se desdobrando e se fragmentando sempre que pode, variando-se "horizontalmente" e complexificando-se "verticalmente", multiplicando-se qualitativa e quantitativamente. (8.7.1 Esse algoritimo autopoietico manifestou-se na Terra, assim que as condições mínimas o permitiram e provavelmente vindo de fora do planeta, pela primeira vez há 4,0 bilhões de anos, na forma de uma molécula auto-replicante. Os pensadores "materialistas" aí da Terra, por descartarem o biocentrismo, atribuem esse evento ao mero acaso.) Uma das diferenças de nossa experiência desencarnada é que nela somos incapazes de expressar a autopoiese quantitativamente (isso é, de gerar novos seres mediante reprodução, pois o "espiritual", a "coisa-em-si", não se reproduz como novo multivíduo sem a mediação do "material"), mas ainda podemos vivê-la qualitativamente nesse nível da realidade, ou seja, ainda podemos desejar – e, de fato, cada um de nós é movido por um desejo omnívoro, do qual nossos corpos são paráfrases – e estamos sempre em busca sem fim do “objeto a” lacaniano (encarnados ou desencarnados, essa busca permanece, pois é fundante de nossa existência): "Que tenhamos que desejar meramente para ter algo é a nossa maior loucura." (Cícero). (8.7.2 O existir, não importa em que contexto, impõe uma séria de necessidades. Cada (objeto de) desejo é uma estratégia, quase nunca refletida o suficiente, para tentar satisfazer uma ou mais necessidades.) Mas nada disponível é bom o suficiente: Não há satisfação possível para essa insatisfação que é a base de nosso psiquismo (e, aqui nesse nível, o problema é realmente a natureza (humana), como aventaram Schopenhauer, Cioran e outros pessimistas ontológicos); outrossim, é meio evidente que simplesmente não existe uma organização societal capaz de satisfazer aos anseios egoicos de todos os seus diversificados componentes, de tal forma que sempre haverá insatisfeitos, os quais se sentem ofendidos, explorados, desprivilegiados, abusados, etc*. Estamos sempre em busca de um objeto que nos falta, de algo que nos escapa, e nessa busca – nas asas de nossa imaginação (a qual é muito mais presente em nossas vidas multividuais e coletivas do que a (por puro embuste) idolatrada razão) – construímos ideais, "sonhos", deuses, amores eróticos, fantasias sexuais, filhos ("Ter cometido todos os crimes, exceto aquele de ser pai", Cioran em Do inconveniente de ter nascido), psicotrópicos, ídolos, filosofias, seitas, artes, ideologias-e-utopias, causas políticas de todas as matizes ideológicas, desperdícios conspícuos (cujo mercantilismo tornou-se a base psíquica do consumismo suicida, pautado pela descartabilidade da obsolescência planejada**, da atual civilização humana), jogos, paixões, entretenimentos (e, como já dizia Voltaire, "se não fosse pela futilidade a maioria das pessoas se enforcaria"), modismos, esportes, competições, compulsões, vícios, etc., tudo isso na vã esperança de que essa carência que nos fundamenta possa por algum estratagema ser locupletada, e assim trazer-nos uma saciedade que, por definição, nos é impossível – uma utopia de jouissance total, uma supressão do mal-estar que nos é constitutivo. A sequência bem-sucedida das realizações desses desejos sem fim nós imaginamos inspirados pelo conceito de "felicidade", e a cosmovisão otimista (a qual infecta o senso comum) não nos cansa de prometer (embora abundem provas em contrário) que este universo está construído para promover essa nossa pretensão de felicidade. Este estado utópico no qual estejamos, tanto como multivíduos isolados quanto como coletividade, tão satisfeitos que não precisaríamos sonhar com algo melhor é perseguido em vão por (quase) todas as religiões e ideologias (por mais que a “fé” seja chamada a introjetar no mapeamento cognitivo uma tendência à confirmação das ideologias construídas e ratificadas pelos processos de veridificação (de construção social das verdades), a realidade, arredia, insiste em transbordar e em desconfirmar seus diagnósticos e prognósticos (o retorno do recalcado é garantido); o grau no qual a fé – "Apenas tem convicção aquele que nada aprofunda", diz Cioran, ao que eu acrescento: "aquele que voluntariamente não procura o contraditório" – é um valor para uma ideologia é o grau da dissonância cognitiva que essa ideologia promove, isto é, o grau do abismo cognitivo entre as evidências do que existe e do que a ideologia diz existir, quer que exista). (*8.7.3 Thomas Jefferson, à época da luta pela independência das colônias inglesas que viriam a ser os EUA, declarou que “quando a injustiça é a lei, a resistência torna-se um dever”. Por mais que essa bela citação e suas variações sejam usadas por representantes dos mais diferentes matizes ideológicos, ela, na efetividade do abandono da via da compaixão (a qual é o verdadeiro fundamento da moral), significa o seguinte: “quando eu e meu grupo (seja lá quem nós formos) tivermos condições de impor, quer pela força quer pela fraude, frente aos demais grupos rivais (que disputam os mesmos recursos escassos dos quais eu e meu grupo queremos nos apropriar), a nossa vontade (de poder) – cuja não satisfação nós qualificamos por “injustiça” –, nós o faremos.” Retirando-se o verniz dos blá-blá-blás publicitários e utopistas, a "justiça" revela-se, na efetividade, a preponderância da vontade do mais forte. Assim, é fácil perceber como mesmo os grupos que alegam defender “direitos humanos” facilmente deixam-se levar pelo fascismo da negação do outro e da discriminação (legitimadora de violência) ao qual tanto alegam se opor, e acabam por fim a defender os “humanos direitos”, esses os quais, em nossas falas, são sempre (não importa quem nós sejamos) espelhos do que nós já somos e/ou gostaríamos de ser – reflexos de nossos desejos atendidos cotidianamente (aquilo que já possuímos e somos) e os frustrados (aquilo que queremos ter e ser e que acreditamos que teremos e seremos se arrancarmos, na guerra (cooperativa) de todos contra todos, de nossos antagonistas os recursos escassos que estão com eles). Não é que o poder e a luta por ele corrompam: eles apenas são as ocasiões que permitem essa corrupção que nos fundamenta a todos manifestar-se mais claramente. Dado que somos a encarnação de um algoritmo autopoetico, não existem seres “puros” e “incorruptos” (“Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus”, diz apóstolo Paulo em sua Epístola aos Romanos, capítulo 3, versículo 23): o que muda é (de acordo com a construção cibernética e semiótica de self de cada multivíduo) o preço que cada um estabelece para corromper-se e entregar-se à barbárie: alguns apenas cedem (bem) mais facilmente do que outros. **8.7.4 Já em A riqueza das nações de Smith é descrita casualmente a obsolescência planejada, a qual virou cêntrica ao capitalismo no século XX, primeiramente nos EUA, inaugurando a chamada "sociedade de consumo". Se a URSS, onde se buscava utilitária e genuinamente produzir valores do uso o mais funcionais e duráveis possíveis, tivesse vencido o conflito contra os EUA, a sobrevida humana no planeta seria bem maior, porém ao custo, é claro, de um despotismo político apenas orwelliano, em detrimento da mistura desse com o despotismo huxleyano, mescla essa que caracteriza o mundo hodierno* após o festejado "fim da história". Não que a URSS tenha perdido a Guerra Fria por alguma "injustiça" – perdeu, como já previsto pelo Complexo de antemão, em função de sua maior ineficiência. Para os interesses produtivos do Complexo, o capitalismo apresenta uma ótima vantagem comparativa em relação ao "socialismo real": o capitalismo é mais eficiente – não apenas em produzir esses valores de uso que são os seres humanos, mas em fazê-lo em troca da destruição total da natureza (permitindo a maximização da eficácia do uso dos recursos planetários). Pois é isso que interessa ao Complexo nessa fase do Sistema Terra: maximizar a transformação dos recursos naturais do planeta em pessoas e essas nos insumos psicotrópicos demandados pelas outras unidades produtivas do Complexo, e assim melhor satisfazer a demanda do mercado cósmico. Por outro lado, olhando do ponto de vista da sobrevivência humana e da preservação da atual teia da vida no planeta, soa até razoável a afirmação do stalinista Lukács (o inventor do conceito de reificação) de que "o pior socialismo é melhor do que o melhor capitalismo". *8.7.4.1 A moda atual aí na Terra da literatura juvenil distópica esconde o fato de que não se quer ver que já se está vivendo em uma realidade distópica. Destarte, a crítica social, a qual se não aparece na juventude não aparece nunca mais, foge para um futuro hipotético e pós-apocalíptico para assim evitar de dirigir a sua atenção ao presente concreto.) (8.7.5 Ao nível econômico, esse algoritmo autopoietico – que se expressa ubiquamente em todos os níveis da realidade por nós conhecidos – aparece como a grande (e suicida e lucrativa para o Complexo) "descoberta" coletiva da humanidade, a saber, o movimento incessante de autovalorização do capital. Embora Schopenhauer – o supremo denunciador do algoritmo autopoietico (o qual ele chamava**, por assim ele aparecer em nossa autoconciência, de "Vontade") – aparentemente não tenha se apercebido disso, Marx o percebeu, todavia dentro das restrições ontológicas do materialismo dialético. Infelizmente eu não lembro de cabeça a citação, mas em algum lugar do livro I d'O Capital fala-se da irracionalidade fundamental do movimento de autovalorização do capital, e de como nenhum lucro é grande o suficiente para satisfazê-lo. Como já salientava Marx, é essencial, para não se cair em uma mistificação, evitar o fetichismo e não reificar o capital como "uma coisa" autônoma que se coloca sobre a humanidade. Ao contrário, o capital é uma relação social e seu movimento incessante de autovalorização é alimentado pelo "amor ao dinheiro" de cada pessoa – não importando a que classe social pertença – que busca mais prazer mediante mais dinheiro, isso por: (1) deixa-se seduzir pelo dinheiro enquanto encarnação abstrata da satisfação do desejo, já que ele tem o potencial de comprar o trabalho alheio e assim de satisfazer qualquer desejo cuja (promessa de) satisfação possa passar pela relação mercantil (ou seja, muitos desejos, e cada vez mais na medida do progresso técnico e de lavagem cerebral publicitária, embora não todos); (2) inebriar-se pelas falsas promessas do festim mercantil capitalista e, hipnotizada pelo fetichismo da mercadoria, acreditar ingenuamente que a posse e o consumo de mercadorias (os "bens", como diz jocosamente a corrente dominante do pensamento econômico; άγάθα, como diziam os filósofos gregos antigos, muitos dos quais alertavam, bem antes de Tyler Durden, que aquilo que possuímos acaba por nos possuir) e de serviços é o principal caminho para a satisfação (humana); e (3) cair na armadilha da satisfação egoica mediante o desperdício conspícuo, buscando assim ver-se como melhor do que os outros por conseguir desperdiçar em suas vaidades mais recursos dos que eles conseguem (o que Veblen chamou "comparação odiosa" no ótimo A teoria da classe ociosa). (8.7.5.1 Desde que o progresso técnico e a divisão social do trabalho conseguiram, há milhares de anos, produzir um excedente econômico (isto é, uma quantidade de valores de uso que excedem a básico para atender a necessidade vegetativa da população), existe toda uma movimentação ideológica para assegurar o usufruto desse excedente por uma subcategoria social – a saber, a classe ociosa. A abundância material relativa, a riqueza, abriu no ser social, dessa maneira, as portas da exploração do humano pelo humano e da guerra (cooperativa) de todos contra todos.) Assim, o leitmotiv do capital é a cobiça humana em perseguir seus "sonhos" (essa palavra é usada pela linguagem publicitária hegemônica para eufemisticamente denominar todos os objetos de desejo mediados pelas trocas mercantis, legalizadas ou não), ou, se preferirmos usar o jargão schopenhauriano, é a afirmação do querer-viver. Ora, uma civilização fulcrada em semelhantes decisões éticas, e que simultaneamente dispõe de grandes forças de "destruição criativa" (criadora de entropia, inclusive) com as quais promove uma "devastação do mundo" (como diria Heidegger) para satisfazer a sua infinita volúpia é, a priori, uma civilização suicida. **8.7.5.2 “É privilégio do verdadeiro gênio, e sobretudo do gênio que abre um caminho, cometer impunemente grandes erros": Schopenhauer apresenta essa citação de Voltaire como epígrafe da sua crítica a Kant. Entretanto, essa mesma citação aplica-se ao próprio Schopenhauer, que acertou em entender o âmago do Ser como Vontade, mas errou feio – embora nas fronteiras das limitações cognitivas de seu tempo – na demonstração racional que pretendeu fazer de seu “pensamento único” ("No fundo, toda vontade de ter uma teoria totalmente coerente realiza-se na perda de seu contato com o real, na sua esclerose e no seu endurecimento." (Cioran)). A veleidade de uma demonstração racional, de um simulacro discursivo, levou-o a ficar a um erro do otimismo: retificado o escândalo filosófico do seu “idealismo fisiológico”, sua metanarrativa escorrega para o racionalismo e assim degenera em otimismo. Não que a sua impostura ante A Verdade seja o pessimismo: é, isso sim, a construção de um sistema de doutrinas: “Quem carece de esperança carece também de ensinamentos: somente o otimismo tem doutrinas” (Fernando Savater em Ensaio sobre Cioran). Já o filósofo romeno pode ser visto, à guisa de introdução, como uma mistura/síntese de Nietzsche com Schopenhauer: como um Nietzsche invertido (pois sem o compromisso com o amor fati) – e nessa inversão se aproxima do odium fati schopenhauriano – e como um Schopenhauer sem o compromisso com um sistema de pensamento – e nessa assistematicidade se aproxima de Nietzsche ("Santa Teresa D'Ávila ensinou-me sobre as coisas terrestres, mas especialmente sobre as celestes, mais do que todos os grandes filósofos. Incomodaria-me que em qualificassem de discípulo de Schopenhauer ou de Nietzsche; mas poderia conter minha alegria se me chamassem de discípulo das santas?" Cioran, n'O livro das ilusões).) O sofrimento (o desejo não satisfeito, contrariado ou sem objeto – o que leva ao tédio) e o medo de sofrer (causado pelo trauma do sofrimento passado) são categorias epistemológicas fundamentais, pois estão umbilicalmente ligados aos nossos ideais utópicos de satisfação e de emancipação (a saber, sonhos de uma conciliação do viver com o não sofrer – uma solução para a aporia fundamental da existência), e portanto, também, às nossas interpretações ideológicas (interpretações que diagnosticam problemas (humanos) a serem resolvidos) sobre a ontologia social (e sobre a cosmologia, quando se hipostasia uma teleologia moral à vida em geral) – as quais são, no devir autopoietico, constantemente (re)construídas com o aparelho conceitual disponível ao mapeamento cognitivo de cada multivíduo e de cada Zeitgeist. O sofrimento leva a uma ligação entre essa descrição dos problemas do mundo (um juízo pretensamente “positivo” (a priori, porém, não é possível, quando se pensa a sociedade e a experiência dos seres culturais, um posicionamento “objetivo e imparcial”)) com o sonho de um mundo sem problemas (utopia que baliza os juízos normativos), e os biogestores do Sistema Terra manipulam habilmente esses cordéis e seus respectivos trade-offs insolúveis para induzir coletivamente o gado humano a agir, sem que este o perceba, contra seus próprios interesses. (8.7.6 Os conflitos ideológicos, pautados por uma ubíqua cultura de violência e de negação do outro, não raro levam ao fanatismo* e revelam como cada um sonha secretamente em refundar o mundo à sua própria imagem e semelhança (pois, para sustentar seu ego, acredita conhecer a fórmula para se "viver corretamente"), vendo assim formas inimigas onde quer que coloque os olhos ("Se todos os que matamos em pensamento desaparecessem de verdade, a terra não teria mais habitantes. Trazemos em nós um carrasco reticente, um criminoso irrealizável", Cioran; mas, como nos lembra Marshall Rosenberg, matar os outros é superficial demais: é um eufemismo contraproducente para enfrentarmos nossa própria frustração). Nas vicissitudes febris do vigente pré-apocalipse em que se encontra a humanidade, quem acompanha a loquacidade da polifonia dos conflitos ideológicos assiste a um festival cacofônico interminável de coitadismos (numa espécie de disputa pelo monopólio do martírio), de imputações de culpa (vilanizações do outro), de ódios (no ódio aos demais escondemos de nós mesmos aquilo que em nós não queremos encarar), de linchamentos, de ressentimentos, de revisionismos históricos, de ameaças e de paranoias ideológicas-utópicas-milenaristas (parodias das grandes ideologias e ilusões da história humana pregressa), um desfile fastidioso fruto da decomposição da hegemonia moral tradicional diante do aumento da entropia social na terminal hipermodernidade – fruto esplêndido do empoderamento paulatino das "minorias", da assunção econômica (para atender às necessidades do turbocapitalismo e do Complexo), e portanto volitiva e verbal, dos "fracos", esses "novos agentes políticos" na fabulosa sociedade afluente. Como disse Pierre Bourdieu, "o mundo social é um imenso reservatório de violência que se revela ao encontrar as condições de sua realização". Esses conflitos ideológicos hodiernamente desviam a atenção dos "amigos da humanidade" (as pessoas que gostam, como estratégia egoica, de se engajar em causas pretensamente altruístas) da única causa que mereceria atenção atualmente (supondo-se, é claro, que já não fosse uma causa perdida), pois dela dependem todas as outras: a questão ambiental. Enquanto a humanidade está em queda livre rumo à extinção iminente, os "reformadores do mundo" de plantão estão discutindo, ad nauseam, questões menores, como, por exemplo, a opressão que lésbicas cis sofrem de mulheres trans lésbicas com pênis que lhes demandam sexo, a gordofobia no mundo gay, o racismo no movimento vegano, a "apropriação cultural", etc... *8.7.6.1 "Uma religião se extingue quando tolera verdades que a excluem; e bem morto está o deus em nome do qual já não se mata" Cioran.) As comoções multividuais se (re)produzem em escala coletiva (e dialeticamente mediadas pelo imaginário do senso comum, da religião, da política e da indústria cultural): o medo da morte (a qual, afinal, é a única coisa certa na vida, pois tudo o que começa está no tempo, no devir, e portanto está condenado a acabar) mutividual vira, no domínio coletivo, catastrofismo (e que a coletividade humana, estando sujeita ao devir, vai acabar cedo ou tarde extinta já seria algo praticamente certo a priori, tanto que mesmo a maioria das religiões (para não dizer todas) manipula seus devotos não apenas com base no medo da morte multividual, mas também no da morte coletiva de toda a humanidade, bem como no da morte de comunidades locais, as quais no passado, sem o comércio global, eram bem mais frágeis e suscetíveis à ruína por falta local de alimentos); o anseio multividual de uma vida perfeita e de uma felicidade permanente, vira utopia; as defesas egoicas viram ideologias ("A loucura de pregar está tão enraizada em nós que emerge de profundidades desconhecidas ao instinto de conservação. Cada um espera seu momento de propor algo: não importa o que. Tem uma voz: isto basta. Pagamos caro não sermos surdos nem mudos...", Cioran.); a terceirização da responsabilidade vira messianismo; e etc. (8.7.7 Quanto ao catastrofismo: Os pensadores integrados ao maquinismo social, diante da existência e da expressão dos pensadores apocalípticos, costumam acusar seus opoentes outsiders doomsayers de estarem delirando. Não percebem que delírio é acreditar que as coisas podem continuar seguindo inercialmente o caminho atual. Enquanto a razão da extinção humana será a ação coletiva de todos os seres humanos – i.e., será o desacordo fundamental entre as dinâmicas civilizacional e natural – os filmes catastrofistas em geral, salvo poucas exceções, mostram repetidamente, ratificando o papel anestésico e alienante da indústria cultural, o "fim do mundo" como sendo resultado de eventos exógenos à ação humana, ou, na mais humana das possibilidades, como sendo consequência da ação de pequenos grupos de malucos e de conspiradores (não raro os enredos girando em torno de objetos mágicos, sem os quais o equilíbrio do universo estaria para sempre garantido): como se a civilização humana contemporânea fosse uma Arcádia em perfeita harmonia metabólica com a natureza, como se não houvesse profusos sinais de que ela se refestela vulgarmente sob uma espada de Dâmocles que ela finge não ver.) O papel do sofrimento como categoria epistemológica e ferramenta de bioadministração das massas, resumidamente, é mais ou menos o seguinte:
8.6 Nessa mise-en-scène lúgubre no qual vocês vegetam, a autonomia multividual teria que ser construída mediada pela desconstrução do comodismo da servidão voluntária. Não é possível emancipar-se sem assumir o ônus da própria liberdade. Quando nos eximimos de dominar a nós mesmos, alguém o faz por nós. A fim de se atingir esse objetivo de autonomia, far-se-ia necessário romper com uma cultura que facilita com que as pessoas e as instituições não assumam a responsabilidade sobre suas próprias escolhas. Responsabilizar-se exige maturidade intelectual e, principalmente, maturidade emocional, pois passa por encarar sem eufemismos os impactos das próprias ações (apenas pessoas medíocres – e, portanto, covardes – usam eufemismo, excetuando-se o uso instrumental com o fito de seduzir ou persuadir; mais sintomático ainda: apenas pessoas medíocres pensam com eufemismos). O fato das pessoas serem induzidas a fazer escolhas dentro de contextos bem limitados (como, por exemplo, escolher entre ser escravo ou ser torturado até a morte, ou ainda entre ser um assaltante ou trabalhar 12 horas por dia em condições insalubres para ganhar menos de um salário mínimo (pois é essa que, segundo a ciência econômica "axiologicamente neutra", é a remuneração eficiente de um trabalho de baixa produtividade e de baixa qualificação)) não tira delas a responsabilidade; mas, inversamente, o fato das pessoas escolherem dentro de horizontes restritos não elimina a responsabilidade daqueles que constroem coletivamente o contexto (no caso, todas as pessoas, em proporcionalidade ao seu poder social, e portanto à sua posição dentro da divisão social e cósmica do trabalho e do poder). A responsabilidade é dialeticamente compartilhada, pois todos estão envolvidos – não existem inocentes. O fato de sermos responsáveis por como reagimos a algo não tira a responsabilidade do agente da ação à qual reagimos. Se a ontologia do ser social pretende ser realista em seu diagnóstico e eficaz no tratamento que propõe, ela deve pautar-se pela desreificação proveniente de um construtivismo empático, buscando, assim, escapar dialeticamente da armadilha antinômica tão recorrente ao aristotelismo vulgar (e caricato) do senso comum: o determinismo coitadista (usualmente predominante na esquerda política) e o voluntarismo sem escrúpulos (usualmente predominante na direita política). O coitadismo, a fracassomania e a vilanização do outro – que alimentam o ciclo de irresponsabilidade e violência – são formas viciadas de culpar outrem e assim negar nossas responsabilidades sobre nossas escolhas, nossos sentimentos e nossas ações, e são frutos essencialmente de uma imaturidade emocional, a qual não surpreende que abunde em uma sociedade na qual as pessoas, sempre sendo manipuladas entre a pressa do urgente e a distração da futilidade (ou em eterna preparação para vencerem o "jogo da vida" do capitalismo (considerar a vida um jogo é trapacear no jogo da vida)), em geral não recebem educação emocional para além de livros de autoajuda pollyânicos e de comédias românticas piegas que se passam em universos paralelos (em não-lugares: utopias) nos quais a vida é mais simples, e onde tudo acaba bem. Outrossim, a incapacidade de metabolizar o sofrimento alheio (ou mesmo o próprio), fruto da mesma imaturidade emocional, é a base do desprezo e do sadismo (a violência floresce quando não sabemos o que fazer com o sofrimento decorrente de necessidades não atendidas), os quais atualmente são celebrados como “zoeira”, “liberdade de expressão”, “politicamente incorreto”, "lacrar", "sambar na cara da sociedade", etc. A imaturidade emocional das massas entorpecidas é condição precípua à sua bioadministração, e é construída pela sociedade verticalmente hierarquizada, com o protagonismo da comunicação violenta, da família patriarcal, da noção retributiva de justiça, e do sistema educacional, o qual por sua vez tem como função básica ensinar a submissão e a alienação, essa última fomentada pela memorização de informações irrelevantes e desconexas (como se isso fosse conhecimento e pensamento racional), em detrimento de uma integração entre a maturidade racional, a maturidade emocional e a maturidade corporal (o racional-imaginário (cognitivo), o emocional-afetivo e o sensorial-corporal* são dimensões inelimináveis da natureza dos seres culturais encarnados, e qualquer deontologia que não busque uma homeostase, um equilíbrio** dinâmico, dessas três dimensões, como os trabalhos de Gurdjieff alegam buscar, está fadada ao fracasso de sua pretensão emancipatória devido à sua própria pobreza ontológica), enquanto o chamado "ensino superior" foca-se em preparar as pessoas (ou melhor, o que sobrou delas) para empregos que elas nunca terão. (*8.6.1 "Toda metafísica começa com uma angustia do corpo, que se torna depois universal; de forma que os inquietos por frivolidade prefiguram os espíritos autenticamente atormentados", Cioran; "Uma coisa, entretanto, é certa: o corpo humano é o ator principal de todas as utopias. O sonho de um corpo imenso, o mito dos gigantes, de Prometeu, é uma utopia.", Foucault. Toda não-homeostase entre corporeidade, cognição e afetividade é conveniente à promoção das miragens mercantis capitalistas, bem como às religiosas e políticas; portanto, a ataraxia decorrente de um conectoma maduro (adulto, emancipado) não é de forma alguma objetivo do biopoder estabelecido, e toda a dinâmica societal tende a empurrar os multivíduos na direção contrária desse estado mental. **8.6.2 "Quando conhecemos o equilíbrio, não nos apaixonamos por nada, não nos apegamos nem à vida, porque somos a vida" (Cioran, em História e utopia).) Construir, tanto como multivíduo quanto como coletividade, a maturidade emocional passa inevitavelmente pela integração de nossa sombra junguiana (como diz Jung, ninguém se torna iluminado por imaginar formas de luz, mas sim por tornar consciente a escuridão). Esses processos de integração passam, por sua vez, fundamentalmente pela autocrítica, a capacidade de pensar contra si mesmo ("A autocrítica da razão é sua mais autêntica moral", Adorno); porém, orientadas por um mapeamento cognitivo superegoico intoxicado pela lei do talião (em detrimento de uma justiça restaurativa) e pelos princípios da identidade e do terceiro excluído, e ainda sem se darem ao esforço de buscar uma melhoria de si próprias, as pessoas fazem de tudo para não enfrentar a si mesmas e, assim, não admitirem seus erros para não "merecerem" (segundo essa lógica necrófila) ser castigadas (inversamente, inventam falsos "méritos" para "merecerem" recompensas). Quanto mais viciado o mapeamento cognitivo do Zeitgeist, maior terá que ser o esforço de cada multivíduo para, apesar do contexto no qual está inserido, quebrar o ciclo vicioso de sua servidão e manter-se vivo e lúcido para que esse processo não seja abortado e sua memória não seja novamente apagada. (8.6.3 Quanto à autocrítica: A coragem, unida à prudência, aqui é essencial, pois nunca se estará previamente preparado o suficiente para um empreendimento como esse (é inútil esperar pelas condições ideais, pois elas jamais chegarão); e por mais inteligente e corajoso que se seja, não há garantia de sucesso – como bem ilustra o caso de Nietzsche, cujo grande e fatal erro foi insistir no amor fati**. Já que falei nele, eu vejo a obra de Nietzsche como um mero tropeço entre as obras de Schopenhauer (a qual ele fez de tudo para em vão tentar refutar) e do anti-Zaratustra* Cioran, tropeço esse que foi muito bem-vindo aos interesses ideológicos da elite sedenta de poder (incluso dos nazistas, que supostamente compreenderam o filósofo de forma errônea – o que certamente foi facilitado pela falta de compromisso de Nietzsche com a clareza) e de adolescentes ingênuos cuja cobiça de gozo não conhece limites. *8.6.3.1 "Comparado com seus Pensamentos, Assim falou Zaratustra é um sistema de ilusões. Nietzsche deveria ser gritado; é o que teria que se fazer com todos os arautos de ilusões" Cioran, em O livro das ilusões. **8.6.3.2 O pessimismo sem o * odium fati * não raro leva à opção por essa menoridade, essa pequenez, conhecida por conservadorismo, para onde também usualmente leva o otimismo quando ele se volta ao elogio publicitário do presente (e de todo legado do passado necessário para chegar-se aonde a civilização chegou: a essa maravilha estonteante de locus histórico...) em vez de focar no sonho (utópico) de construir um mundo melhor no futuro – sonho esse que, por mais otimismo que exija ao propor uma possibilidade de melhoria, implica em admitir-se previamente que o mundo atual, e portanto a respectiva vida que ele oferece, não valem a pena, não são dignos do esforço que exigem diuturnamente (admissão essa que nada tem de otimista) (mas há também casos, como ilustra o kardecismo, em que otimismo e elogio do presente se misturam com utopismo e promessa de um futuro melhor, pois acredita-se que estamos em franco processo evolutivo, do bom rumo ao ótimo, tudo encaminhando-se ao melhor possível). O conservadorismo animado pelo pessimismo pressupõe o amor fati, na medida em que defende a autopoiese de “tudo isso que aí está” (ou “esteve”, no caso do reacionarismo, desse conservadorismo piorado, desse arcadismo da mediocridade) em detrimento, uma vez descartadas as ilusões utópicas, da opção pela extinção (nem que decorrente da tentativa, ao que tudo mais que indica vã, de se construir um mundo melhor, como eu já aventava no §118 do meu blog ao falar dos perigos do transhumanismo): opção pela simples não existência. Sim, ainda está debatendo-se (n)essa questão hamletiana***: tendo concluído que o Ser não pode ser melhor do que já é – que o progresso histórico não pode trazer melhoria significativa, que as resoluções de certos problemas criam outros tão ruins senão piores (tipo uma sexta extinção em massa em troca de smartphones), que os heróis de ontem são os vilões de hoje, e que os sonhos etéreos utópicos degeneram em distopias bem concretas tão logo se passe da teoria à prática**** – o conservador esclarecido agarra-se desesperadamente à miséria desse Ser indigno (que é, afinal, tudo o que lhe resta), em vez de ousar abandoná-lo (novamente, aqui, a coragem é crucial): em vez de recusar-se a dar o seu consentimento para com essa cama de gato. (“No assentimento à existência existe uma espécie de baixeza, a qual escapamos graças a nossos orgulhos e a nossos pesares, mas sobretudo à melancolia que nos preserva de um deslize para uma afirmação final, arrancada de nossa covardia. Há coisa mais vil do que dizer sim ao mundo? E, no entanto, multiplicamos sem cessar esse consentimento, essa trivial repetição, esse juramento de fidelidade à vida, negado somente por tudo o que em nós recusa a vulgaridade” Cioran, em Breviário da decomposição.) É essa ligação entre o pessimismo e o conservadorismo que explica a popularidade de Schopenhauer, Nietzsche, Cioran e cia. entre os conservadores mais sofisticados aí da Terra. É mais fácil, por exemplo, ver um schopenhauriano lendo/defendendo Mises (ou outros arautos de distopias, como Olavo de Carvalho em Pindorama), essa caricatura grosseira do liberal econômico (do burguês maquiavelicamente cortês e refinadamente bárbaro), do que os elaborados e espirituosos Deleuze e Zizek (entre tantos outros). Ele, o leitor/apologista de Mises (ou de Olavo, et al.), pode até se achar “o rebelde”, “o (Atlas) revoltado (on ou offline)”, ao fazer isso (e ao denunciar a plenos dedos e pulmões os ardis do marxismo cultural no mundo em geral e do "lullopetismo“no Brasil em particular); mas, contudo vale lembrar que simplesmente nunca houve nem nunca haverá rebeldia alguma em dar seu aceite ao que existe, por mais que se busque travestir esse ato de heroísmo (como pretendeu fazer Nietzsche, também aqui inspirado em Schopenhauer: no elogio que este faz ao heroísmo, conforme ilustra epígrafe da parte IX da presente carta). Recusar a crença na possibilidade de melhoria não implica necessariamente em comprometer-se com (em achar suficiente, em fazer de objeto da sua ação) a miséria escandalosa do que já demasiado existe: este é o erro (decorrente mais de um mau-caratismo do que de uma debilidade da razão) daqueles que, em sendo pensantes, deixam-se seduzir pelo conservadorismo (é verdade que a maioria que se deixa seduzir pelo conservadorismo é de não-pensantes mesmo, por isso que as pessoas mais inteligentes e intelectuais tendem ao esquerdismo, tanto na sua dimensão econômica quanto na moral; não que não haja estupidez na esquerda: ela está, afinal, em toda a parte). Nota: pouco importando o que um liberal econômico (e sua caricatura anarcocapitalista) pense sobre sexualidade e outras questões morais, para mim ele é um conservador: pois o que ele defende é o despotismo pantagruélico do capital, que é o poder hegemônico, mais do que estabelecido; qualquer movimento no sentido de defender o capital, mesmo mediante o paroxismo “revolucionário” anarcocapitalista (ou "libertário" como alguns têm a desfaçatez, ou a ignorância, de chamar), é, para mim, um movimento conservador. ***8.6.3.2.1 Afinal, A Grande Questão para a autoconsciência (ou seja, para a lucidez), à qual todas as outras questões acabam invariavelmente remetendo, sempre foi e ainda é julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida (motivo pelo qual Camus via no suicídio único problema filosófico realmente sério). Por exemplo: a vida é julgada digna de ser vivida quando é defendida a hipótese de que esse universo em geral e a humanidade em particular são a criação bem-sucedida de um arquiteto cuja inteligência, cujo amor e cuja justiça são expressivos, ou mesmo, como ousa-se dizer, são infinitos (hipótese essa que, como sabe qualquer um que, vivendo em plena "era da (des)informação", pensa com honestidade e contra suas próprias fraquezas, carece de quaisquer evidências plausíveis). A figura do magnânimo criador do universo (e a dos deuses, a do mundo místico em geral) possui um papel instrumental de legitimação da vida, de justificação da afirmação do querer-viver, assim como a "mão invisível" das doutrinas liberais econômicas busca legitimar, com a desculpa de explicar, os horrores do capitalismo. Por isso mesmo que a chamada “morte de Deus” revelou, em especial a partir do “desencantamento do mundo” (Weber) promovido pela modernidade, a face lúgubre do niilismo (contra a qual Nietzsche declarou inutilmente guerra com sua “transvaloração dos valores” e a qual – apesar da irrupção historicamente assertiva ao querer-viver terráqueo dessa outra face, a esfuziante, do niilismo que é representada pelo orgia mercantil capitalista – continua, e com toda razão, a ser sedutora para algumas subculturas nas quais predomina o ateísmo, como, entre outras, a dos chamados “metaleiros” e a dos “intelectuais malditos”, esses depressivos profissionais), pois sem a metanarrativa focada na figura de Deus, do arquiteto vitorioso ao qual se deve louvores e tudo o mais, evaporaram-se os argumentos publicitários (as ficções úteis) que o Ocidente inventara para justificar a vida, ou seja, para tentar dar um sentido moral ao horror do onipresente sofrimento humano. Ficou, destarte, a vida sem credibilidade diante da autoconsciência racional terráquea, i.e., sem uma legitimação, ou melhor: sem um artifício escamoteador suficientemente crível para a sua falta de legitimidade (função de escamoteamento essa que, afinal, tenta ainda cumprir o cadáver insepulto de Deus, junto agora com os novos deuses do consumismo, do entretenimento, do amor (romântico), do culto ao trabalho e ao empreendedorismo, da corpolatria, da busca pela saúde perfeita*****, das utopias (espiritual, liberal, comunista, nacionalista, anarquista, e todas as outras) e de suas derivações, etc., e função essa que a ciência, por mais que tentem os cientificistas desde Comte, é a priori incapaz de cumprir). Destruídas todas as ilusões, o que resta? Como ficará melhor esclarecido a diante, o que eu lhes proponho, caros terráqueos – em consonância com Schopenhauer, com Cioran e com outros –, é que se vá audaciosamente até o fim: que se admita essa ilegitimidade da vida em face da autoconsciência, que se reconheça que ela, a vida, é simplesmente um erro (a inconveniência de um tropeço, como já ilustrado alegoricamente há milênios no mito do pecado original), que se admita que não existe saída para o niilismo e que se pare de inventar véus, deuses, utopias, distrações, esperanças, eufemismos sadomasoquistas, etc., na tentativa vã de esconder essa verdade inescapável de que a experiência do Ser é um fracasso desde seu fundamento e de que, portanto, o nosso destino inescapável é o Nada: "Não há nobreza senão na negação da existência, em um sorriso que domina paisagens aniquiladas" (Cioran). *****8.6.3.2.1.1 "Tudo o que nós perseguimos, é por desejo de tormentos. A procura pela saúde é ela mesma um tormento, o mais sutil e o melhor camuflado de todos" (Cioran). ****8.6.3.2.2 "Mostrem-me neste mundo uma só coisa que começasse bem e que não tenha acabado mal. As palpitações mais orgulhosas somem em um esgoto, onde cessam de pulsar, como se houvessem chegado a seu fim natural: esta decadência constitui o drama do coração e o sentido negativo da história. Cada 'ideal' alimentado, no início, com sangue de seus sectários, se deteriora e de desvanece quando é adotado pela massa. Eis a pia de água benta transformada em escarradeira: é o ritmo inelutável do 'progresso'". (Cioran, de novo))
(algoritimo autopoietico)->(necessidade)->(desejo)<->->(expectativa/ esperança/otimismo)->(ação e reação)->(frustração)->(sofrimento)->(desejo/ideal de não sofrer)<->->(desejo/ideal de salvação)->(ideologia-e-utopia)<->->(biopoder)->(negação do outro, conflitos ideológicos e recrudescimento do ódio e da violência)<->->(frustração) ->(sofrimento)
8.8 Em função desse dharma configurado pela ubiquidade, no nível 4-D ao menos, desse algoritmo autopoietico, o qual implica em uma busca permanente pelo prazer (incluso os prazeres, pouco refinados mas mesmo assim desejados, inerentes à materialidade por vocês conhecida), muitos seres acabam desejando voltar à corporeidade material clara ("clara", em oposição à material escura, desconhecida de vocês aí e que vocês entendem como "mundo espiritual"), mesmo quando ela implica em uma limitação de consciência. Aliás, essa limitação – esse esquecimento (e toda alienação e reificação são esquecimentos), esse exercício voraz da vontade de ignorância – é mesmo por muitos desejada (pois sem esquecimento e inconsciência a vida não se sustentaria*) como um alívio, como um sono revigorante que nos faz esquecer do fato que simplesmente não podemos morrer e de que estamos condenados à autonomia (e é no mínimo irônico que aí na Terra o medo da morte e da liberdade seja um poderoso instrumento de guerra psicológica para a gestão das massas humanas servis embrutecidas). Já outros seres, encarnados ou não, tentam chegar às dimensões superiores – uma espécie de “além do além” – para ver se lá as coisas são melhores do que por aqui. Esse esquecimento – essa fuga que faz a consciência para não notar o fardo da existência – tão desejado, porém, acaba impedindo uma mais eficaz mortificação do algoritmo autopoietico, sem a qual ele não se direciona à negação ascética de si mesmo. Lamentavelmente, tudo isso é uma fatalidade cumulativa e permanentemente (re)construída no via-a-ser autopoietico (na queda no tempo, na dialética materialista reprodutiva, no processo de seleção natural, na cibernética existencial, no devir construtivista, etc...). (*8.8.1 Outrossim, a perpetuação de uma civilização, seja a humana, seja a reptiliana, etc., depende da irreflexividade da maioria de seus membros; depende de que essa maioria leve a vida adormecida, distraída, reificada, zumbificada, no "piloto automático", pouco ou nada consciente das escolhas que faz, em uma condição de engrenagem suficientemente funcional – útil – do maquinismo social (portanto, sem a "alma" que Gurdjieff qualificou como "um luxo" e sem a "lucidez" que recebeu igual qualificação da parte Saramago). Não que a reflexividade precisasse, para dar cabo de uma civilização, decidir peremptoriamente que a vida não vale a pena ser vivida: a simples dúvida a esse respeito, que é no mínimo uma das consequências diretas da hipertrofia da consciência, já bastaria para desfazer este compromisso homeostático que o multivíduo deve ter com o sistema como uma conditio sine qua non cibernética para reproduzi-los cotidianamente (reproduzir tanto o sistema no qual vivem os multivíduos bem como cada multivíduo isolado na condição de agente desse sistema). Demandar, portanto, que a coletividade simplesmente "desperte" – ou seja, clamar por "conscientização coletiva" – já é solicitar, inadvertida e sub-repticialmente, o fim da civilização.)
8.9 Cabe esclarecer que não existe apenas um modelo de contrato que os atuais seres humanos (isto é, os espíritos que estão encarnados como seres humanos na Terra atualmente) podem assinar com o Complexo Hiperdimensional. Esse modelo que eu assinei é o modelo mais comum – o “contrato padrão” e que, a rigor, serve para os espíritos miseráveis (a maioria, claro). Entretanto, a vida na Terra também pode ser – e o é para a elite cósmica – objeto de turismo. Sim. Há tanto operações de safári, nas quais a elite vem se divertir fazendo trabalho de gestão da vida na Terra (às vezes, inclusive, trabalho voluntário – e eles vão se divertir muito quando o vindouro colapso sistêmico em breve chegar, o caos for instituído e chegar a hora da colheita final de adrenochrome do presente ciclo produtivo), como há também opções de “turismo cármico”, nas quais são oferecidas “performances biográficas”, as quais chegam até a ser objeto de apostas (o que é conhecido como “cassino cármico”) – tudo que ocorre aí na Terra não passa, para esse “nicho de mercado”, de um jogo, um parque de diversões. Nada como tirar uma vida de férias!
8.10 Isso quer dizer que nem todos os seres humanos aí na Terra são espíritos miseráveis que aceitaram ser explorados por falta de melhor opção. Alguns até têm melhores opções, mas estão aí só por diversão – literalmente, por passatempo. Além disso, outros podem estar aí como punição por terem cometido crimes contra a elite cósmica (o que é crime ou não, depende unicamente dos interesses dessa elite). Nossa amada Terra também serve de prisão de segurança máxima. Em todos esses casos, esses seres na condição de seres humanos desconhecem suas vidas passadas. Vocês que estão recebendo essa mensagem, provavelmente têm uma origem análoga à minha (pois o contrato que eu assinei é o contrato que a maioria assinou e assina), embora não necessariamente esse seja o caso. Talvez alguns de vocês sejam alguém da elite cósmica se divertindo – mesmo que alguns/muitos de vocês achem suas vidas sofridas, de repente seu respectivo “eu verdadeiro” é masoquista, ou apenas estava aborrecido, e, por isso, escolheu voluntariamente sofrer nessa vida que ele-você agora vive, apesar de eventualmente poder ter outras opções menos trágicas à disposição (as quais, de repente, já perderam a graça...). (8.10.1 Para a maioria, viver é como ser viciado em fazer tatuagens: enquanto sente-se a dor (durante a realização da operação ou logo após) pensa-se em parar pois parece não valer a pena, mas depois (quando integrou-se mais uma bela figurinha em seu álbum) a dor é esquecida (junto com os danos e riscos à saúde) e fica presente na consciência apenas o benefício.)
8.11 Mas também existem falsos seres humanos entre vocês – i.e., seres que lembram de suas reencarnações anteriores e fingem não o lembrar. Esses seres são biogestores e operadores da linha de produção do Sistema Terra (há seres nessa condição "desencarnados", como o inspetor de qualidade que me rejeitou e com cujo avatar eu conversei, e também há encarnados mas que estão na superfície do planeta sob disfarce humano). Geralmente os seres que fazem essas tarefas sob a forma humana são os famosos reptilianos. Há também lacaios humanos que trabalham na gestão do sistema sob o mando dos reptilianos; eles são seduzidos (isso já desde antes da Grande Fraternidade Branca) com ofertas de poder e promessas (em geral falsas) de regalias no pós-morte: são, há muito tempo, os igualmente famosos Illuminati e sua respectiva camarilha, fantoches e escravos, operando em diversas sociedades secretas ocultistas, em uma estrutura piramidal e que têm por função administrar a plutocracia corporocrata mundial, cuja face em nossas "sociedades livres" apresenta-se no jogo das "relações públicas" como "democracia representativa" e como "governança corporativa" (Platão já alertava que "o preço a pagar pela tua não participação na política é seres governado por quem é inferior"). (8.11.1 Incapazes de amor ou empatia (pois não estariam aptos a praticar a reificação e a violência se enxergassem a humanidade dos outros) – embora finjam (nem sempre bem) serem capazes – os plutocratas volitam entre o maquiavelismo e a psicopatia; eles conseguem ter e manter seu poder ao consagrarem suas vidas ao fim supremo e irracional da autovalorização do capital.) E igualmente piramidal é a própria “aldeia global”: da "elite política no sentido lato" (uma rede de multivíduos que tomam as decisões relevantes em todas as esferas da "ampla administração" – (bio)política profissional, relações públicas, policial, jurídica, militar, inteligência e contra-inteligência, econômica, financeira, corporativa, midiática, religiosa, acadêmica, criminosa organizada, ocultista, artística, esportiva, etc.) ao "povo propriamente dito" (o "gado humano"), o qual, por sua vez, está dividido em castas (na prática, como vocês bem sabem, um cidadão do Congo tem um “valor social” bem menor do que o de um cidadão da Alemanha, por exemplo, assim como o é inferior o de um pobre em relação ao de alguém de classe média, e o deste em relação a um bilionário, etc.). Nos limites desse cenário, "Deus", "liberdade", "igualdade", "fraternidade", "democracia", "sustentabilidade", “direitos humanos”, etc. são meros slogans publicitários, (ficções úteis às causas das autopoieses – da vida em geral, do establishment político, do Sistema Terra, do multivíduo dentro desse contexto, etc.) são meios para os fins maquiavélicos, bioadministrativos, da elite política no sentido lato.
8.12 Na atual fase do processo civilizatório humano, a onipresença midiática do erotismo visual após a "revolução sexual" – um sexo que é sempre sugerido e idealizado, mas é muito pouco falado e realizado – e a apartação entre sexualidade e afetividade na sociedade burguesa – uma reificação do ato sexual (re)alimentada pela reificação visual da excitação midiática – estruturam uma ambiência de permanentes insatisfação e frustração afetivo-sexuais (pois os imaginários eróticos construídos socialmente são passíveis de serem realizados por poucos multivíduos, e mesmo para esses em geral acabam não sendo muito satisfatórios, pois a desintegração da unidade entre afeto e corpo (e razão) leva a priori à insatisfação, e essa em geral ao vício) e de falsa libertação dos padrões repressivos tradicionais, permitindo ao biopoder lograr, assim, a canalização da libido irrealizada para impulsionar o consumismo. (8.12.1 Quanto ao orgasmo, como não notar a óbvia evidência schopenhauriana de que o mesmo constitui la petite mort? Não sei como alguém consegue ser otimista sabendo que gozar é fenomenologicamente aproximar-se da morte.) (8.12.2 O ato sexual com a sensação de "enraizamento ontológico" propiciada pelo amor e pela respectiva total entrega que este propicia – ato esse que para acontecer de maneira plenamente bem sucedida envolve tantas variáveis que ocorre em momentos raros e efêmeros, mormente nesse prelúdio de final de história humana no qual tudo o que é sólido desmancha no ar – é o máximo que se pode alcançar na Terra de se amenizar a solidão existencial que se deve sentir em um universo como esse. É por essa potencialidade, somada ao papel crucial da sexualidade para a procriação e para a homeostase multividual (reflexo orgânico do fato do ato sexual ser um dos clímax da afirmação do corpo, encarnação do algoritmo autopoietico), que o sexo com amor é tão problemático e tão problematizado pelo biopoder, para o qual é conveniente que o mínimo de pessoas possível tenha acesso a esse tipo de satisfação e equilíbrio.) No hegemônico contexto superestrutural presente aí, as ideologias do trabalho, do desperdício conspícuo e da reificação visual do erotismo – instrumentalizadas e integradas pelo e para processo de autovalorização do capital – sufocam o ócio criativo, a capacidade de contemplação e a criatividade, condições essas indispensáveis, em conjunto com a integração homeostática entre afeto, intelecto e corpo, para que a massa ignara e distraída da macrofísica do poder pudesse sequer imaginar a possibilidade de pensar sua revolta de maneira que fosse minimamente articulada, consistente e coerente; assim sendo, inviabiliza-se cognitivamente uma ruptura com esse establishment que é ratificado voluntariamente a todo instante pelas ações multividuais e coletivas. Para o gado humano, o enredo biográfico normal, insider, esperado, previsível, provável e ilusoriamente mais cômodo dentro de todo esse contexto manipulado pelo Complexo (em uma palavra: dentro dessa sístase), é que cada humano sofra e – em função disso combinado a uma gigantesca cortina de fumaça e desinformação ensejada pela pobreza e desarticulação do seu mapeamento cognitivo e do seu self, desarticulação essa que não permite-lhe perceber as escolhas que faz tampouco assumir a responsabilidade por elas – assim seja levado, pouco a pouco, a perder-se nos labirintos dos seus próprios mecanismos de defesa do ego (por não ter a coragem de enfrentar o abismo que espreita a vida de todos (exceto de alguns que morrem cedo demais para sequer vislumbrá-lo), tampouco a maturidade para reconhecer que é impossível haver felicidade durável e que "Não é a pobreza que causa a dor, mas sim a cobiça" (Epicteto)), até que, enfim, seu psiquismo acaba por cristaliza-se nas armadilhas da própria mente (lembrando algo análogo àquilo que Freud chamava de "adulto infantilizado" e Sartre chamava de "homem inautêntico"). Quando esse momento chega, o multivíduo, enredado nessa cama de gato, capitulou e perdeu praticamente qualquer possibilidade, nessa encarnação e depois do desencarne até o reboot de sua memória, de romper com o contrato que assinou, e assim ele voluntariamente ratifica sua condição de peça no maquinismo da fábrica administrada pelo e para o Complexo. (8.12.3 Na hegemonia cultural contemporânea aí em Gaia, a principal necessidade que a “amizade” (para além do colecionismo nas redes sociais) entre as pessoas busca prover é a de companhia para o entretenimento. Basicamente as amizades são ofertadas e demandas dentro do escopo da indústria do entretenimento (a qual já subsumiu-se até à sua maior rival, a religião, com a qual compete no mercado de satisfação da vontade de ignorância mediante ocasiões à evasão da insuportável banalidade apocalíptica do verdadeiro). O âmago do entretenimento é, e sempre foi, o fugir de si próprio, a autoalienação, a fuga da tragédia de existir. Nesse escopo, a diferença entre a realidade terráquea hodierna – a chamada modernidade líquida – e a realidade de séculos ou de milênios atrás é que, em virtude da “eficiência” (energeticamente deficitária) capitalista, as formas de entretenimento (multividual e compartilhada com os amigos) são agora tantas em comparação com o passado que é muito fácil uma pessoa passar pela vida inteira em estado permanente de fuga de si mesma (e ainda dopada pelos psicotrópicos “medicinais” da indústria farmacêutica quando os outros artifícios não são suficientes para esconder o abismo que covardemente não se quer encarar). A indústria do entretenimento tornou-se tão eficaz que oferece – embutidas nos seus produtos de falsificação geral (e otimista) da vida (com infindáveis jornadas do herói e intermináveis espetacularizações (pretensamente) excitantes de Eros e de Thanatos) – sucedâneos da reflexão (na forma de lugares-comuns da autoajuda), reflexão da qual ela própria busca promover a evasão.)
8.12 Na atual fase do processo civilizatório humano, a onipresença midiática do erotismo visual após a "revolução sexual" – um sexo que é sempre sugerido e idealizado, mas é muito pouco falado e realizado – e a apartação entre sexualidade e afetividade na sociedade burguesa – uma reificação do ato sexual (re)alimentada pela reificação visual da excitação midiática – estruturam uma ambiência de permanentes insatisfação e frustração afetivo-sexuais (pois os imaginários eróticos construídos socialmente são passíveis de serem realizados por poucos multivíduos, e mesmo para esses em geral acabam não sendo muito satisfatórios, pois a desintegração da unidade entre afeto e corpo (e razão) leva a priori à insatisfação, e essa em geral ao vício) e de falsa libertação dos padrões repressivos tradicionais, permitindo ao biopoder lograr, assim, a canalização da libido irrealizada para impulsionar o consumismo. (8.12.1 Quanto ao orgasmo, como não notar a óbvia evidência schopenhauriana de que o mesmo constitui la petite mort? Não sei como alguém consegue ser otimista sabendo que gozar é fenomenologicamente aproximar-se da morte.) (8.12.2 O ato sexual com a sensação de "enraizamento ontológico" propiciada pelo amor e pela respectiva total entrega que este propicia – ato esse que para acontecer de maneira plenamente bem sucedida envolve tantas variáveis que ocorre em momentos raros e efêmeros, mormente nesse prelúdio de final de história humana no qual tudo o que é sólido desmancha no ar – é o máximo que se pode alcançar na Terra de se amenizar a solidão existencial que se deve sentir em um universo como esse. É por essa potencialidade, somada ao papel crucial da sexualidade para a procriação e para a homeostase multividual (reflexo orgânico do fato do ato sexual ser um dos clímax da afirmação do corpo, encarnação do algoritmo autopoietico), que o sexo com amor é tão problemático e tão problematizado pelo biopoder, para o qual é conveniente que o mínimo de pessoas possível tenha acesso a esse tipo de satisfação e equilíbrio.) No hegemônico contexto superestrutural presente aí, as ideologias do trabalho, do desperdício conspícuo e da reificação visual do erotismo – instrumentalizadas e integradas pelo e para processo de autovalorização do capital – sufocam o ócio criativo, a capacidade de contemplação e a criatividade, condições essas indispensáveis, em conjunto com a integração homeostática entre afeto, intelecto e corpo, para que a massa ignara e distraída da macrofísica do poder pudesse sequer imaginar a possibilidade de pensar sua revolta de maneira que fosse minimamente articulada, consistente e coerente; assim sendo, inviabiliza-se cognitivamente uma ruptura com esse establishment que é ratificado voluntariamente a todo instante pelas ações multividuais e coletivas. Para o gado humano, o enredo biográfico normal, insider, esperado, previsível, provável e ilusoriamente mais cômodo dentro de todo esse contexto manipulado pelo Complexo (em uma palavra: dentro dessa sístase), é que cada humano sofra e – em função disso combinado a uma gigantesca cortina de fumaça e desinformação ensejada pela pobreza e desarticulação do seu mapeamento cognitivo e do seu self, desarticulação essa que não permite-lhe perceber as escolhas que faz tampouco assumir a responsabilidade por elas – assim seja levado, pouco a pouco, a perder-se nos labirintos dos seus próprios mecanismos de defesa do ego (por não ter a coragem de enfrentar o abismo que espreita a vida de todos (exceto de alguns que morrem cedo demais para sequer vislumbrá-lo), tampouco a maturidade para reconhecer que é impossível haver felicidade durável e que "Não é a pobreza que causa a dor, mas sim a cobiça" (Epicteto)), até que, enfim, seu psiquismo acaba por cristaliza-se nas armadilhas da própria mente (lembrando algo análogo àquilo que Freud chamava de "adulto infantilizado" e Sartre chamava de "homem inautêntico"). Quando esse momento chega, o multivíduo, enredado nessa cama de gato, capitulou e perdeu praticamente qualquer possibilidade, nessa encarnação e depois do desencarne até o reboot de sua memória, de romper com o contrato que assinou, e assim ele voluntariamente ratifica sua condição de peça no maquinismo da fábrica administrada pelo e para o Complexo. (8.12.3 Na hegemonia cultural contemporânea aí em Gaia, a principal necessidade que a “amizade” (para além do colecionismo nas redes sociais) entre as pessoas busca prover é a de companhia para o entretenimento. Basicamente as amizades são ofertadas e demandas dentro do escopo da indústria do entretenimento (a qual já subsumiu-se até à sua maior rival, a religião, com a qual compete no mercado de satisfação da vontade de ignorância mediante ocasiões à evasão da insuportável banalidade apocalíptica do verdadeiro). O âmago do entretenimento é, e sempre foi, o fugir de si próprio, a autoalienação, a fuga da tragédia de existir. Nesse escopo, a diferença entre a realidade terráquea hodierna – a chamada modernidade líquida – e a realidade de séculos ou de milênios atrás é que, em virtude da “eficiência” (energeticamente deficitária) capitalista, as formas de entretenimento (multividual e compartilhada com os amigos) são agora tantas em comparação com o passado que é muito fácil uma pessoa passar pela vida inteira em estado permanente de fuga de si mesma (e ainda dopada pelos psicotrópicos “medicinais” da indústria farmacêutica quando os outros artifícios não são suficientes para esconder o abismo que covardemente não se quer encarar). A indústria do entretenimento tornou-se tão eficaz que oferece – embutidas nos seus produtos de falsificação geral (e otimista) da vida (com infindáveis jornadas do herói e intermináveis espetacularizações (pretensamente) excitantes de Eros e de Thanatos) – sucedâneos da reflexão (na forma de lugares-comuns da autoajuda), reflexão da qual ela própria busca promover a evasão.)
***
IX - Acerca do epílogo:
a tentação de existir
a tentação de existir
"A [última] grande lição que a vida nos ensina é não querê-la."
(Schopenhauer)
Somente otimistas cometem suicídio, os que não conseguem mais ser otimistas com sucesso. Os demais, não tendo motivos para viver, por que teriam para morrer?"
(Cioran)
"Tudo o que existe gera, mais tarde ou mais cedo, o pesadelo. Esforcemo-nos, pois, para inventar alguma coisa melhor do que o ser."
(Idem)
"Assim como neste mundo crianças famintas apertam-se em torno das mães, assim também todos os seres aguardam a oblação sagrada."
(Vedas)
"Devemos ser a mudança que queremos ver no mundo."
(Schopenhauer)
Somente otimistas cometem suicídio, os que não conseguem mais ser otimistas com sucesso. Os demais, não tendo motivos para viver, por que teriam para morrer?"
(Cioran)
"Tudo o que existe gera, mais tarde ou mais cedo, o pesadelo. Esforcemo-nos, pois, para inventar alguma coisa melhor do que o ser."
(Idem)
"Assim como neste mundo crianças famintas apertam-se em torno das mães, assim também todos os seres aguardam a oblação sagrada."
(Vedas)
"Devemos ser a mudança que queremos ver no mundo."
(Mahatma Gandhi)
"O futuro pertence àqueles que se preparam para ele hoje."
(Malcon X)
"Até você torná-lo consciente, o inconsciente irá dirigir a sua vida, e você vai chamá-lo de 'destino'."
(Jung)
"O melhor trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é parar de projetar nossas sombras nos outros."
(Idem)
"Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente."
"O futuro pertence àqueles que se preparam para ele hoje."
(Malcon X)
"Até você torná-lo consciente, o inconsciente irá dirigir a sua vida, e você vai chamá-lo de 'destino'."
(Jung)
"O melhor trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é parar de projetar nossas sombras nos outros."
(Idem)
"Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente."
(Krishnamurti)
"A arte do abandono não é ensinada a ninguém."
(Clarice Lispector)
"Todas as pessoas desejam unicamente livrar-se da morte; não sabem livrar-se da vida."
(Lao-Tsé)
"Sobre um planeta que compõe seu epitáfio, tenhamos a dignidade suficiente de nos comportar como cadáveres amáveis."
(Cioran)
"A arte do abandono não é ensinada a ninguém."
(Clarice Lispector)
"Todas as pessoas desejam unicamente livrar-se da morte; não sabem livrar-se da vida."
(Lao-Tsé)
(Schopenhauer)
"Sobre um planeta que compõe seu epitáfio, tenhamos a dignidade suficiente de nos comportar como cadáveres amáveis."
(Cioran)
"Você não pode salvar as pessoas. Apenas pode amá-las."
(Anaïs Nin)
"Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e, conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."
(Brás Cubas, no fechamento de suas Memórias póstumas)
"Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e, conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: – Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria."
(Brás Cubas, no fechamento de suas Memórias póstumas)
§9
9.1 Alguns dos exilados da Terra organizaram um tal de Movimento de Libertação dos Terráqueos, mas a maioria dos exilados não concorda com a viabilidade e a relevância desse movimento, pois o Complexo é muito poderoso e não temos condições de nos opor aos senhores desse universo; além disso, as reações em cadeia sistêmicas (e seus respectivos feedbacks positivos) desencadeadas pela história da vida no universo conhecido em geral e na Terra em particular não podem ser paradas, quer exogenamente quer endogenamente, incluso por ressonância morfogênica (como já dito, o fato de alguns seres, ao longo do processo cármico, conseguirem atingir um nível de lucidez que os permite, multidividualmente, romper com essa (i)lógica não significa que esses estado de consciência possa ser generalizado para o grosso dos seres e que todo esse processo universal possa ser facilmente desmantelado – não há soluções mágicas).
9.2 Já outros exilados, e eu tendo a concordar com eles, entendem que uma empreitada dessas é, além de inútil, contraproducente*, pois apenas vai alimentar o algoritmo autopoietico do Ser, em vez de acalmá-lo para viabilizar sua verdadeira superação – que apenas pode ser alcançada pela renúncia ascética. Penso que é chegada a hora de transbordarmos compaixão, e não ressentimento. O verdadeiro inimigo não é o Complexo, mas sim o próprio e ubíquo algoritmo autopoietico do qual todos nós – servos e senhores – não conseguimos nos evadir (nem conseguiremos com qualquer utopia ou qualquer violência). Há boatos, que eu creio verdadeiros, de que existem grupos secretos que trabalham para alcançar as dimensões superiores por caminhos ocultos. Há boatos de que alguns já a alcançaram. Estou apenas no começo das minhas investigações sobre essa possibilidade. (*9.2.1 Diante do sofrimento e da sensação de injustiça, que sofremos ou vemos os outros sofrerem, temos basicamente quatro reações possíveis: (1 – a postura de quem sabe o que a vida é, e que, sabendo-o, consente com ela) omitirmo-nos (não fazermos nada), por acreditarmos que “a vida é assim mesmo” e por estarmos dispostos nós mesmos a reproduzir esse sofrimento e essa injustiça quando nos convier ou quando nos for possível (essa postura está ligada ao conformismo, ao maquiavelianismo, à psicopatia, ao pragmatismo, a um “niilismo ativo”, à “maldade” (ou a um “egoísmo hipertrofiado”), à "força", e é predominante na elite política, nos conservadores, nos reacionários e naqueles que querem “vencer na vida”; é basicamente a postura do amor fati nietzscheano); (2 – a postura de quem sabe o que a vida é, e que, sabendo-o, não consente com ela) omitirmo-nos (não fazermos nada), por acreditarmos que “a vida é assim mesmo”, que “o 'mal' já venceu”, porém não estando dispostos a reproduzir esse sofrimento e essa injustiça quando nos convier ou quando nos for possível (essa postura está ligada ao conformismo, mas um conformismo que deu as costas ao mundo, que desistiu dele, um “niilismo passivo”, fruto de um otimismo frustrado pelo esclarecimento, fruto de um pessimismo que entendeu a impossibilidade do progresso e da felicidade, mas que recusa a dar a sua aprovação, seu aceite, a isso; é compatível com fracassados no "jogo da vida" (esses que Cioran considerou “atletas da lucidez”), com os mendicantes voluntários, com os ermitões e com os ascetas); (3 – a postura de quem não sabe o que a vida é, e, por não sabê-lo, consente com ela inercialmente no geral e não consente pontualmente em momentos particulares) não omitirmo-nos (lutarmos contra), por acreditarmos que “a vida não é assim, horrorosa”, por, sendo cegos, vermos esses atos fontes de sofrimento e de injustiça como pontuais na historia da maravilhosa vida, por acreditarmos que a vida é boa, que “os bons são a maioria” e que “para que o mal triunfe basta que os bons nada façam” (essa posição pode ser descrita como a da reificação, da ignorância e da vulgaridade, aquela de quem não entendeu o que a vida realmente é, e, portanto, como a posição caracterizada por um otimismo ingênuo; assim como a postura 1 é característica da elite política, a 3 é característica das massas ignaras, nessas em que é comum encontrar pessoas que acreditam que não são “egoístas” (como se fosse possível sequer respirar sem um ego a defender)); e (4 – a postura de quem sabe o que a vida é, mas que nega esse saber ao atribuir-se o papel fantástico de mudar a vida para melhor) não omitirmo-nos, mesmo sabendo que, até o momento, a vida vem sendo assim mesmo, mas recusando-nos, em um ato de fé (de recusa À Verdade – como a que eu mesmo apresentei no fim dos capítulos 112 e 118 do meu blog), a acreditar que ela não possa mudar para melhor no futuro, em seu vir-a-ser (é a posição utópica, milenarista, messiânica, revoltada e que propõe um otimismo heroico (que é ingênuo também, como afinal o é todo otimismo, mas menos ingênuo que o da postura 3), reformador do mundo, que recusa A Verdade do fracasso do Ser; é a posição que diz que a "a vida não pode ser assim e eu contribuirei para que ela mude"). A maioria das pessoas não age sempre de acordo com a mesma dessas posições (embora seu comportamento global concentre-se em uma delas), mas sim muda de acordo com o contexto, de acordo com as particularidades do estímulo que excita sua subjetividade e incita sua reação (andando na rua, uma mesma pessoa, por exemplo, pode se omitir em uma quadra diante de alguém que pede esmola, mas não se omitir na quadra seguinte quando vê um homem batendo em uma mulher; em outro momento, essa mesma pessoa pode ajudar um outro mendigo, mas fingir que não percebe que os trabalhadores do estabelecimento de fast-food onde decidiu comer trabalham 10 horas por dia por menos de um salário mínimo (e que gastam mais 4 horas diárias no trajeto às casas onde dormem), ou fingir que não percebe que as roupas que ela está vestindo são feitas por escravos na Ásia); várias pessoas mudam, também, ao logo de suas próprias vidas, sendo que muitos que adotam majoritariamente a posição 4 na juventude acabam indo para a 1 ou para a 2 (já que é impossível voltar, sem uma lobotomia, à 3 uma vez tendo saído dela), pois cedo ou tarde é necessário sustentar-se, "ganhar a vida" e portanto aderir ao baile de máscaras social, ao "jogo da vida", a menos que se consiga fazer da própria rebelião política o seu ganha-pão, ou que se seja herdeiro e, por isso, tenha sua subsistência garantida (tipo o bon vivant Engels ou a Lu Genro). As posturas 1 e 3 são as básicas que regulam o funcionamento de uma sociedade e a manutenção do mainstream – e, no limite, a manutenção da própria vida dos seres culturais. A postura 2 e 4 são residuais (sendo a 2 bem mais residual que a 4) e são ligadas a “pessoas idealistas”, a outsiders, àqueles que recusam-se a consentir com esse mundo em seu geral. Se qualquer uma dessas duas últimas posições aumentar expressivamente na população, colapsam os sistemas de reprodução (autopoiese) do biopoder em particular e da vida em geral. (Também é verdade que o mesmo ocorreria se a posição 1 aumentasse expressivamente: como eu já disse no item 8.8.1, o comportamento essencial para a manutenção de uma civilização e da vida é o da ignorância da maioria, que é o compatível com a postura 3.) Mas a posição 4 comete o erro de viver em negação quanto À Verdade sobre natureza da vida, pois a vida de fato “é assim mesmo”, restando então como caminho legítimo, atinente tanto à ética quanto A Verdade, apenas a posição 2, que é a coerente com o odium fati. Além disso, enquanto a posição 2 não tem serventia alguma ao biopoder (por isso não é objeto de sua publicidade), a 4, na medida em que é insuprimível (como as demais) da população, é usada por ele na dialética administrativa das massas*, para iludi-las com falsas esperanças que prometem um futuro melhor do que o presente e para assim canalizar e neutralizar a frustração inevitável à existência em geral e à condição de servo voluntário em particular. Por fim, cabe notar que é o peso ético das posições 1, 2 e 4 que faz as pessoas que nelas estão imbricadas eventualmente invejem as que estão na posição 3 e enunciem que “a ignorância é uma benção” ("Quem come do fruto do conhecimento é sempre expulso de algum paraíso." (Klein)) , como se estar na posição 3 não implicasse, ela também, em custos desagradáveis para o próprio multivíduo, como se houvesse alguma posição e atitude possível diante da vida que pudesse assegurar simultaneamente todas as vantagens nela desejáveis. *9.2.1.1 "O papel dos utopistas liberais estará definitivamente encerrado, quando nosso regime for reconhecido [substitua-se por "quando chegar a hora da Grande Colheita"]. Até lá nos prestarão grande serviço. Por isso, impeliremos os espíritos a inventar toda a espécie de teorias fantásticas, modernas e pretensamente progressivas; porque teremos virado a cabeça a esses cristãos imbecis, com pleno êxito, por meio dessa palavra 'progresso', não havendo uma só mentalidade entre eles que veja que, sob essa palavra, se esconde um erro em todos os casos em que não tratar de invenções materiais, porque a verdade é uma só e não poderia progredir. O progresso, como ideia falsa, serve para obscurecer a verdade, a fim de que ninguém a conheça, salvo nós: os eleitos de Deus, e sua guarda", cap. 13 d'Os Protocolos dos sábios de Sião.)
9.2 Já outros exilados, e eu tendo a concordar com eles, entendem que uma empreitada dessas é, além de inútil, contraproducente*, pois apenas vai alimentar o algoritmo autopoietico do Ser, em vez de acalmá-lo para viabilizar sua verdadeira superação – que apenas pode ser alcançada pela renúncia ascética. Penso que é chegada a hora de transbordarmos compaixão, e não ressentimento. O verdadeiro inimigo não é o Complexo, mas sim o próprio e ubíquo algoritmo autopoietico do qual todos nós – servos e senhores – não conseguimos nos evadir (nem conseguiremos com qualquer utopia ou qualquer violência). Há boatos, que eu creio verdadeiros, de que existem grupos secretos que trabalham para alcançar as dimensões superiores por caminhos ocultos. Há boatos de que alguns já a alcançaram. Estou apenas no começo das minhas investigações sobre essa possibilidade. (*9.2.1 Diante do sofrimento e da sensação de injustiça, que sofremos ou vemos os outros sofrerem, temos basicamente quatro reações possíveis: (1 – a postura de quem sabe o que a vida é, e que, sabendo-o, consente com ela) omitirmo-nos (não fazermos nada), por acreditarmos que “a vida é assim mesmo” e por estarmos dispostos nós mesmos a reproduzir esse sofrimento e essa injustiça quando nos convier ou quando nos for possível (essa postura está ligada ao conformismo, ao maquiavelianismo, à psicopatia, ao pragmatismo, a um “niilismo ativo”, à “maldade” (ou a um “egoísmo hipertrofiado”), à "força", e é predominante na elite política, nos conservadores, nos reacionários e naqueles que querem “vencer na vida”; é basicamente a postura do amor fati nietzscheano); (2 – a postura de quem sabe o que a vida é, e que, sabendo-o, não consente com ela) omitirmo-nos (não fazermos nada), por acreditarmos que “a vida é assim mesmo”, que “o 'mal' já venceu”, porém não estando dispostos a reproduzir esse sofrimento e essa injustiça quando nos convier ou quando nos for possível (essa postura está ligada ao conformismo, mas um conformismo que deu as costas ao mundo, que desistiu dele, um “niilismo passivo”, fruto de um otimismo frustrado pelo esclarecimento, fruto de um pessimismo que entendeu a impossibilidade do progresso e da felicidade, mas que recusa a dar a sua aprovação, seu aceite, a isso; é compatível com fracassados no "jogo da vida" (esses que Cioran considerou “atletas da lucidez”), com os mendicantes voluntários, com os ermitões e com os ascetas); (3 – a postura de quem não sabe o que a vida é, e, por não sabê-lo, consente com ela inercialmente no geral e não consente pontualmente em momentos particulares) não omitirmo-nos (lutarmos contra), por acreditarmos que “a vida não é assim, horrorosa”, por, sendo cegos, vermos esses atos fontes de sofrimento e de injustiça como pontuais na historia da maravilhosa vida, por acreditarmos que a vida é boa, que “os bons são a maioria” e que “para que o mal triunfe basta que os bons nada façam” (essa posição pode ser descrita como a da reificação, da ignorância e da vulgaridade, aquela de quem não entendeu o que a vida realmente é, e, portanto, como a posição caracterizada por um otimismo ingênuo; assim como a postura 1 é característica da elite política, a 3 é característica das massas ignaras, nessas em que é comum encontrar pessoas que acreditam que não são “egoístas” (como se fosse possível sequer respirar sem um ego a defender)); e (4 – a postura de quem sabe o que a vida é, mas que nega esse saber ao atribuir-se o papel fantástico de mudar a vida para melhor) não omitirmo-nos, mesmo sabendo que, até o momento, a vida vem sendo assim mesmo, mas recusando-nos, em um ato de fé (de recusa À Verdade – como a que eu mesmo apresentei no fim dos capítulos 112 e 118 do meu blog), a acreditar que ela não possa mudar para melhor no futuro, em seu vir-a-ser (é a posição utópica, milenarista, messiânica, revoltada e que propõe um otimismo heroico (que é ingênuo também, como afinal o é todo otimismo, mas menos ingênuo que o da postura 3), reformador do mundo, que recusa A Verdade do fracasso do Ser; é a posição que diz que a "a vida não pode ser assim e eu contribuirei para que ela mude"). A maioria das pessoas não age sempre de acordo com a mesma dessas posições (embora seu comportamento global concentre-se em uma delas), mas sim muda de acordo com o contexto, de acordo com as particularidades do estímulo que excita sua subjetividade e incita sua reação (andando na rua, uma mesma pessoa, por exemplo, pode se omitir em uma quadra diante de alguém que pede esmola, mas não se omitir na quadra seguinte quando vê um homem batendo em uma mulher; em outro momento, essa mesma pessoa pode ajudar um outro mendigo, mas fingir que não percebe que os trabalhadores do estabelecimento de fast-food onde decidiu comer trabalham 10 horas por dia por menos de um salário mínimo (e que gastam mais 4 horas diárias no trajeto às casas onde dormem), ou fingir que não percebe que as roupas que ela está vestindo são feitas por escravos na Ásia); várias pessoas mudam, também, ao logo de suas próprias vidas, sendo que muitos que adotam majoritariamente a posição 4 na juventude acabam indo para a 1 ou para a 2 (já que é impossível voltar, sem uma lobotomia, à 3 uma vez tendo saído dela), pois cedo ou tarde é necessário sustentar-se, "ganhar a vida" e portanto aderir ao baile de máscaras social, ao "jogo da vida", a menos que se consiga fazer da própria rebelião política o seu ganha-pão, ou que se seja herdeiro e, por isso, tenha sua subsistência garantida (tipo o bon vivant Engels ou a Lu Genro). As posturas 1 e 3 são as básicas que regulam o funcionamento de uma sociedade e a manutenção do mainstream – e, no limite, a manutenção da própria vida dos seres culturais. A postura 2 e 4 são residuais (sendo a 2 bem mais residual que a 4) e são ligadas a “pessoas idealistas”, a outsiders, àqueles que recusam-se a consentir com esse mundo em seu geral. Se qualquer uma dessas duas últimas posições aumentar expressivamente na população, colapsam os sistemas de reprodução (autopoiese) do biopoder em particular e da vida em geral. (Também é verdade que o mesmo ocorreria se a posição 1 aumentasse expressivamente: como eu já disse no item 8.8.1, o comportamento essencial para a manutenção de uma civilização e da vida é o da ignorância da maioria, que é o compatível com a postura 3.) Mas a posição 4 comete o erro de viver em negação quanto À Verdade sobre natureza da vida, pois a vida de fato “é assim mesmo”, restando então como caminho legítimo, atinente tanto à ética quanto A Verdade, apenas a posição 2, que é a coerente com o odium fati. Além disso, enquanto a posição 2 não tem serventia alguma ao biopoder (por isso não é objeto de sua publicidade), a 4, na medida em que é insuprimível (como as demais) da população, é usada por ele na dialética administrativa das massas*, para iludi-las com falsas esperanças que prometem um futuro melhor do que o presente e para assim canalizar e neutralizar a frustração inevitável à existência em geral e à condição de servo voluntário em particular. Por fim, cabe notar que é o peso ético das posições 1, 2 e 4 que faz as pessoas que nelas estão imbricadas eventualmente invejem as que estão na posição 3 e enunciem que “a ignorância é uma benção” ("Quem come do fruto do conhecimento é sempre expulso de algum paraíso." (Klein)) , como se estar na posição 3 não implicasse, ela também, em custos desagradáveis para o próprio multivíduo, como se houvesse alguma posição e atitude possível diante da vida que pudesse assegurar simultaneamente todas as vantagens nela desejáveis. *9.2.1.1 "O papel dos utopistas liberais estará definitivamente encerrado, quando nosso regime for reconhecido [substitua-se por "quando chegar a hora da Grande Colheita"]. Até lá nos prestarão grande serviço. Por isso, impeliremos os espíritos a inventar toda a espécie de teorias fantásticas, modernas e pretensamente progressivas; porque teremos virado a cabeça a esses cristãos imbecis, com pleno êxito, por meio dessa palavra 'progresso', não havendo uma só mentalidade entre eles que veja que, sob essa palavra, se esconde um erro em todos os casos em que não tratar de invenções materiais, porque a verdade é uma só e não poderia progredir. O progresso, como ideia falsa, serve para obscurecer a verdade, a fim de que ninguém a conheça, salvo nós: os eleitos de Deus, e sua guarda", cap. 13 d'Os Protocolos dos sábios de Sião.)
9.3 Seja como for, para mim, depois de todas essas vidas vividas, está claro que a encarnação na Terra (ou em qualquer planeta análogo, como serviçal desse Complexo ou de outros) ou o suicídio (quando encarnado na matéria clara, que é o caso de vocês aí no presente momento), não são de forma alguma uma salvação, uma libertação, uma saciedade; pelo contrário, apenas alimentam o algoritmo autopoietico do qual a libertação constituí o Nirvana e A Verdadeira emancipação. A transmutação qualitativa do Ser depende de sua saturação quantitativa. Dado que o abismo não tem fundo, a única saída do labirinto cósmico é ir impetuosamente até o seu fim e promover o retorno do Ser à virtualidade beatifica do Nada (mais precisamente, e como já alertou Schopenhauer, uma descrição mais exata do evento é a extinção dessa expressão do Ser que nós conhecemos – isto é, de todo o universo por nós conhecido –, sua transição ao nada; simplesmente não temos como saber se o Ser pode se expressar de outra maneira, pois tudo o que conhecemos e somos está ligado a essa expressão que dá vida a esse mundo em que estamos). A questão não é saciar utopicamente, mediante uma panaceia, a busca pelo “objeto a”(pois, com um leitmotiv como esse, viver torna-se um hábito (ou, mais precisamente, um vício)), mas sim abandoná-la. Existir é uma tentação a ser exorcizada, mas a única maneira de vencer uma tentação é cedendo-lhe. A vida deve ser vivida sem todos os véus que fazem-lhe suportável justamente por constituírem um escapismo covarde dela própria. A saciedade do conatus somente será completa mediante sua autossupressão. Transpassadas as ilusões sisíficas da pirâmide de Maslow, o Nada desponta como o objeto final da Babel do desejo. O resto é silêncio.
9.4 Embora eu não mais avoque a mim o papel de remir a humanidade, eu decidi dar um presente ao mundo e consegui efemeramente entrar em contato com a médium heterodoxa Isaura Laurinda Rodrigues, amiga minha e da minha família (e conhecida minha de outras vidas), a fim de psicografar esse testemunho do que existe “no além”. (9.4.1 Para realizar essa façanha, eu trabalhei duro em conjunto com o pessoal do Movimento de Libertação dos Terráqueos e conseguimos, em função de uma série de conjunturas únicas e fugazes envolvendo as minhas vidas e as minhas mortes, hackear temporariamente (e provavelmente não conseguiremos uma segunda vez) todos os sistemas de segurança do panóptico no qual a Terra se transformou.) A quem interessar possa (Jacinto?), saiba(m) que vocês aí estão sendo usados e induzidos a permanecerem cegamente em uma existência limitada em benefício de interesses alheios aos seus. As pessoas precisam ser manipuladas porque possuem um poder real, do qual são convencidas a fazer uso contra seus próprios interesses. Entretanto, se é verdade que as pessoas são enganadas, é igualmente verdade que elas querem permanecer na comodidade do engano. Continuar nessa situação miserável ou emancipar-se dela depende apenas e tão-somente de vocês. Como diria Camus, não esperem pelo Dia do Juízo, pois ele ocorre todos os dias.
9.5 Vocês que estão tomando conhecimento dessa comunicação, sintam-se privilegiados. Os gestores da vida na Terra provavelmente tentarão impedir divulgação dessa mensagem. Caso ela chegue a certo nível crítico de divulgação, vão fingir ignorá-la, e caso ela chegue a outro nível crítico, mais elevado, vão tentar desacreditá-la. É sempre assim com as verdades inconvenientes.
9.6 Quando vocês morrerem (e garantam, a todo custo, a integridade de seus conectomas na hora de suas mortes – o grande Cioran, por exemplo, voltou à Terra, provavelmente por ter perdido sua lucidez em decorrência do Alzheimer), lembrem-se de não entrar em portais, túneis de luz ou caminhos indicados por “mestres” ou qualquer tipo de “autoridades”. Esses seres são os bioadministradores da prisão-fábrica-granja na qual vocês vivem, e estão autorizados por vocês mesmos a enganá-los e reencaminhá-los à reencarnação na Terra ou para outro planeta análogo de propriedade do Complexo. Não aceitem ameaças, mesmo as ditas com docilidade ou aparência de graça divina. Vocês são autônomos e imortais – apenas se esqueceram disso. Desencarnados e fora do sistema solar, desejem encontrar a Associação dos Exilados da Terra e levar-se-ão até ela (claro, tudo isso supondo-se que vocês realmente queiram sair da condição em que estão, né – a escolha é de cada um de vocês). Lá receberão muito apoio. Vocês não estão sozinhos, e agora sabem disso.
9.7 Enfim, essa é A Verdade (embora eu saiba que A Verdade, quando meramente relatada, não basta: ela precisa ser descoberta por conta própria para ser assimilada). Daqui em diante vocês não podem alegar desconhecimento.
Saudações de um egresso da matrix reptiliana,
Duan Conrado Castro.
(Jacinto, eis a senha que combinamos para provar que sou eu que transmito do além: "Koyaanisqatsi-Gummo".)
[18/05/2016]
[Obs.: Caros leitores, aqui é a Isaura. O Duan me passou a senha para fazer login nesse blog, bem como orientações para que eu conseguisse publicar o presente texto, com todas essas citações, aqui no Outsider à beira do abismo, incluso seguindo o patrão estético ciber-barroco que ele adotava. Espero ter feito um bom trabalho. Tomei a liberdade de acrescentar eu mesma uns links de notícias ocorridas após a morte do Duan e que condizem com o pensamento dele. Agradeço pelo apoio inestimável da família do Duan. Sem esse apoio teria sido bem mais difícil montar o presente texto. Grata pela leitura e vamos divulgar a mensagem dele! Este vídeo ilustra o motivo pelo qual decidimos bloquear os comentário públicos aqui na postagem.]
{Esta é uma obra de "ficção" – um exercício de demiurgia verbal, um esboço/prelúdio/especulação de literatura infantojuvenil transhumana de época, uma creepypasta intelectual. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos, hipóteses, teorias ou situações da "vida real"
***
Tempore, quo cognitio simul advenit, amor e medio supersurrexit.